Subiu para 39 o número de mortos em decorrência das chuvas que atingem o Rio Grande do Sul nesta semana. Na capital gaúcha, Porto Alegre, o rio Guaíba, que margeia toda a cidade, atingiu o recorde histórico de sua cheia, com 4,77 metros acima do leito natural. Ao menos 68 pessoas ainda estão desaparecidas.
As águas avançam pela cidade e o nível do Guaíba atingiu 4,77cm, às 21h desta sexta-feira, conforme a Rede Hidrometeorológica Nacional. Trata-se do maior registro já feito na cidade. O número é superior aos 4,76cm registrados na histórica enchente de 1941 em Porto Alegre.
Os diques construídos no entorno da margem do rio protegem o centro histórico da cidade de uma inundação completa e retardam o alagamento. Ainda assim, no Centro Histórico, as águas já superaram o sistema de contenção de cheias e avançaram pelas vias chegando até a Praça da Alfândega.
VOOS SUSPENSOS
Os pousos e decolagens no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, foram suspensos por tempo indeterminado na noite desta sexta-feira. A medida, segundo a Fraport, prevê a segurança de funcionários e passageiros. “Aos passageiros, pedimos que entrem em contato com a sua companhia aérea para mais informações sobre os seus voos”, informa a nota da Fraport.
Além dos mortos no Estado há ainda 68 desaparecidos e 74 pessoas feridas. A Defesa Civil soma 32.248 pessoas fora de casa, sendo 8.168 pessoas em abrigos e 24.080 desalojadas, na casa de familiares ou amigos. Ao todo, 235 dos 496 municípios do estado registraram algum tipo de problema, afetando 351.639 mil pessoas.
“Esses números podem mudar ainda substancialmente ao longo dos próximos dias, na medida em que a gente consiga acessar as localidades e consiga ter a identificação de outras vidas perdidas”, diz o governador Eduardo Leite (PSDB).
CALAMIDADE
O governo decretou estado de calamidade, situação que foi reconhecida pelo governo federal. Com isso, o estado fica apto a solicitar recursos federais para ações de defesa civil, como assistência humanitária, reconstrução de infraestruturas e restabelecimento de serviços essenciais.
“Serão dias difíceis. Pedimos que as pessoas saiam de casa. O nosso objetivo é salvar vidas. Coisas serão perdidas, mas devemos preservar vidas. Nossa prioridade é resgatar as pessoas. Em relação ao restante, nós daremos um jeito posteriormente”, disse o governador Eduardo Leite (PSDB), que já afirmou que o temporal é “o maior desastre do estado” e que o Rio Grande do Sul vive uma “situação de guerra”.
Na quinta-feira (2), a Prefeitura de Porto Alegre determinou o fechamento das comportas do sistema de proteção contra as enchentes e decretou estado de calamidade pública. Por conta da força da água, uma das comportas rompeu.
Os meteorologistas afirmam que os temporais que ocorrem no Rio Grande do Sul são reflexo de, ao menos, três fenômenos que ocorrem na região, agravados pelas mudanças climáticas. Nas próximas 24 horas, há previsão de mais chuva.
A tragédia no estado está associada a correntes intensas de vento, a um corredor de umidade vindo da Amazônia, aumentando a força da chuva, e a um bloqueio atmosférico, devido às ondas de calor.
A previsão é de que a condição se mantenha até o sábado (4) com acumulados que podem chegar até 400 milímetros. O volume deve se somar aos mais de 300 milímetros de chuva registrados nos últimos 4 dias.
MUNICÍPIOS
Os relatos que chegam dos municípios atingidos pelos temporais são aterrorizantes. Como este da prefeita de Sinimbu, cidade de 10 mil habitantes a 195 quilômetros de Porto Alegre:
“O município de Sinimbu está totalmente destruído”, afirma a prefeita Sandra Roesch Backes (DEM).
“Nós não temos acesso às localidades, ficamos sem pontes, sem estrada, sem comércio, sem indústria. Nossa cidade não tem postos de gasolina, não temos supermercados, não temos agência bancária, não temos creche, não temos mais prédios públicos – foram todos destroçados. Não temos água, não temos luz, não temos mais comida. E não temos condições ainda de saber o número de vítimas, as pessoas estão penduradas em árvores, trepadas nos telhados pedindo por socorro, mas só temos uma pequena embarcação. É uma total impotência.”
O Rio Taquari, que atravessa 390 km do estado, ultrapassou o nível de 30 metros pela primeira vez na história, fechando a BR 386. A Polícia Rodoviária Federal reportou 30 bloqueios totais de rodovias no estado.
Há risco de rompimento de uma represa em Caxias do Sul. São aproximadamente 169 mil pontos sem energia elétrica, e mais de 440 mil sem abastecimento de água. O governo pediu que os moradores do Vale do Taquari deixem suas casas nas cidades de Santa Tereza, Muçum, Roca Sales, Arroio do Meio, Encantado e Lajeado. Há mais de 1000 pessoas em abrigos improvisados.
Dezenas de cidades enfrentam destruição parecida com a de Sinimbu. Em Canudos do Vale, pequena cidade com pouco mais de 1.600 habitantes, três pontes que ligavam o município a outras cidades foram destruídas.
Ninguém entra e ninguém sai, deixando moradores em desespero. Serviços básicos como postos de saúde não estão funcionando. As aulas na rede municipal foram suspensas por tempo indeterminado.
As informações sobre a situação são divulgadas pela técnica em agropecuária Graziela Petry, da Instituição de Assistência Técnica e Extensão Rural e Social (Emater), que está na vizinha Lajeado e conseguiu contato com a prefeitura local.
“Canudos do Vale passa por uma situação muito difícil”, ela disse ao portal Folha de S. Paulo. “Mas neste momento não temos risco de morte”. Segundo a técnica, apesar dos estragos, não há informações sobre mortos ou feridos.
Segundo Marina Bernardes, que é professora do curso de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, “do ponto de vista de plano de contingência, que é uma luta que nós temos nas nossas cidades gaúchas para que as pessoas não sejam pegas de surpresa, o município precisa ter mapas com as cotas de inundação, as áreas de risco. As pessoas tinham que ter sido evacuadas na semana passada e a gente está vendo o governador afirmar hoje que não tem como resgatar todo mundo”.
Em Estrelas, a prefeitura pediu ajuda de helicópteros para resgatar pessoas ilhadas. Em Montenegro foi cancelado o transporte de pacientes pela Secretaria Municipal de Saúde. Na quinta, apenas as pessoas que têm hemodiálise agendada serão transportadas.
No município de Muçum, o prefeito Mateus Trojan (MDB) informou que a situação na área rural é desconhecida por falta de comunicação e acesso. Ele trabalhou na madrugada desta quinta em uma sala do hospital municipal. “Foi o único local que restou para fazermos alguma organização administrativa”, explicou.
GOVERNADOR IGNOROU PREVENÇÃO DE TRAGÉDIAS
O deputado estadual Adão Pretto Filho (PT) denunciou que o governador Eduardo Leite ignorou relatório elaborado pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
O documento, produzido por uma Comissão de Representação Externa (CRE) e concluído em agosto de 2023, traz diversas propostas para combater os efeitos das mudanças climáticas nos municípios gaúchos.
“O governo do estado tem se preocupado muito pouco com a questão. No orçamento de 2024, foram previstos apenas R$ 50 mil* para a Defesa Civil estadual. (*O deputado esclareceu depois que esse é o valor para compra de equipamentos para Defesa Civil). Ou seja, é muito preocupante a ação do governo, que é muito inferior às necessidades que o Rio Grande do Sul vem tendo ao longo desses últimos dez anos. É preciso pensar a médio e longo prazos”, critica o deputado.
O deputado, que é coordenador do relatório, produzido logo após o ciclone extratropical que atingiu o Rio Grande do Sul, em junho passado, considerado o maior desastre natural relacionado às chuvas dos últimos 40 anos, acrescentou que, no estado, 90% dos municípios já sofreram com os efeitos da mudança climática.
“O estado tem sofrido com fortes secas ou estiagens e também com ciclones extratropicais. Mas, na minha opinião, em relação à peça orçamentária com recursos para precaução, para prever desastres, o governo do estado tem sido um pouco irresponsável. E a população está pagando essa conta altíssima, inclusive, infelizmente, com vidas “, acrescenta.
Adão lembra ainda que o relatório apontava uma série de iniciativas que deveriam ser implementadas pelo governo estadual.
Segundo ele, faltam políticas públicas voltadas às populações mais vulneráveis às tragédias do clima, com investimentos em prevenção nos municípios.
“Apresentamos o relatório ao Palácio Piratini apontando a necessidade de ter mais políticas públicas de prevenção, mais orçamento. Mas o que a gente viu, eu fiquei abismado, é que o governo do estado, não adotou ação efetiva concreta, quando tudo indicava que, ao longo deste ano, teremos muitos eventos climáticos”, afirma.
O relatório aponta ainda que diversas cidades gaúchas não têm Defesa Civil capacitadas para responder com agilidade às demandas. O documento solicita também que o governo estadual busque a capacitação, estruturação e políticas preventivas.
“Fizemos um apontamento da necessidade para que os municípios passem a ter essa preocupação, porque é lá na ponta, nas cidades, que são os primeiros a serem afetados. Os municípios têm que estar respaldados, precisam ter organização, equipes”, avalia.
Outra recomendação do relatório prevê o remanejamento das famílias que vivem em áreas de risco no Rio Grande do Sul. Para tanto, o documento aponta a criação de novas moradias em locais seguros.
Adão Pretto Filho também critica o orçamento deixado pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O deputado lembra que os recursos destinados à Defesa Civil nacional para 2023 foram de apenas R$ 25 mil, o que não “dava nem para comprar um automóvel popular”.
As verbas federais só tiveram aumento com a aprovação da PEC da Transição, que garantiu orçamento de R$ 1,3 bilhão para a Defesa Civil nacional. Mesmo assim, segundo o deputado, o governo do estado foi na contramão do governo federal ao manter orçamento irrisório de R$ 50 mil para a Defesa Civil gaúcha.
“O governo federal tem buscado dar atenção aos estados e municípios que sofrem com os efeitos climáticos, mas o Rio Grande do Sul parece ignorar. Me parece, eu não quero acreditar nisso, mas parece que há uma espécie de negacionismo da mudança climática”, avalia.