O assassinato de Mestre Moa do Katendê – Romualdo Rosário da Costa – em Salvador, foi uma espécie de protótipo ou demonstração do que é o bolsonarismo e do que ele desperta nas pessoas que aderem a ele.
Caetano Veloso tem bastante razão quando disse que o assassinato de Moa do Katendê “é um sinal de que a gente não deve seguir o caminho que as pessoas ilusoriamente pensam que é superação, quando é atraso, é volta, é medo da responsabilidade da civilização”.
Restaria apenas dizer que a maioria do povo brasileiro não seguiu e não segue esse caminho – afinal, 67% dos eleitores não votaram em Bolsonaro (v. Agora é unir 67% dos brasileiros para votar contra Bolsonaro e sua ditadura).
Muitos falaram, sobre o assassinato do Mestre, contra o ódio e a intolerância.
É compreensível que assim falem, considerando a carga de ódio e intolerância dos seguidores de Bolsonaro.
Entretanto, não temos o poder de eliminar o ódio e a intolerância dos inimigos do povo e do Brasil.
E não deveríamos temê-los: o ódio e a intolerância deles para com o povo – e, sobretudo, para com as figuras que condensam o nosso povo, como é o caso de Mestre Moa do Katendê – deve ser recebida como uma condecoração, como uma homenagem do mal ao bem.
Ruim seria se essa malta começasse a nos amar. Provavelmente, teríamos feito algo de muito errado, muito errado, se isso acontecesse.
Mas há outro aspecto – que, talvez, seja o principal.
Ilya Ehrenburg, que foi repórter na frente russa durante a Segunda Guerra Mundial, conta em suas memórias que assistiu à Corte Marcial dos oficiais e soldados de uma bateria que não disparou seus canhões quando os nazistas se aproximavam.
Interrogado pelos juízes, o comandante da bateria declarou que esperava convencer os alemães de que estavam errados em obedecer a Hitler. O oficial argumentou que os alemães eram um povo culto, o que era demonstrado pelo fato de Goethe e Marx terem nascido lá.
Obviamente, os nazistas passaram, desencadeando uma efusão de sangue em gente imensamente melhor que eles, quando poderiam ser detidos pelo fogo da bateria – ou, pelo menos, pagar algum preço pelos seus crimes.
Ehrenburg saiu impressionado daquele julgamento – e, de volta à redação do jornal em que trabalhava, escreveu seu famoso artigo sobre o “direito ao ódio”, que está na coletânea “Morte ao Invasor Alemão”.
Era preciso, escreveu Ehrenburg, odiar os nazistas, odiar o mal, para que a guerra contra o nazismo fosse vencida. Naquele momento, observou o escritor, os soviéticos ainda não odiavam suficientemente os nazistas.
Realmente, é um conhecimento quase intuitivo – quando não um sentimento – o de que o ódio às injustiças, como escreveu alguém, é a véspera do amor. Não é possível amar o ser humano sem odiar os que querem destruí-lo ou escravizá-lo.
Não existe nada errado em odiar o mal, em odiar o fascismo, em odiar os inimigos da espécie humana.
Da mesma forma, a nossa tolerância não pode se estender às aberrações – ao nazismo, aos assassinatos e às torturas, por exemplo.
O assassinato de Mestre Moa do Katendê ficará na História como um momento em que milhões de pessoas, no Brasil, tomaram consciência de uma ameaça: a instalação de uma ditadura (e muito pior que a anterior) no país.
Portanto, mesmo depois de não mais estar neste mundo, Mestre Moa continuará contribuindo para a luta e para a vitória do povo brasileiro.
C.L.
Na quarta-feira, Mestre Moa do Katendê, assassinado por um bolsonarista na madrugada de segunda-feira, foi homenageado no Largo do Pelourinho, em Salvador.
“A gente espera que a justiça seja feita, porque ele [o assassino] tirou a vida de um pai de família, um inocente”, declarou a filha de Mestre Moa, Somanali Costa.
“Meu pai não tinha envolvimento em confusão nenhuma, se fizer uma sindicância no bairro em que ele morava, vai ver o grande homem, o mestre de capoeira, mestre Moa do Katendê. Ele só queria educar as pessoas, trabalhar com os alunos dele. Desculpa não vai trazer a vida de meu pai de volta, não vai formalizar aquela família, que estava bonita. Uma felicidade que a gente estava.”
Na sexta-feira, Mestre Moa será homenageado em Minas Gerais, com manifestação na Praça Sete de Setembro, em Belo Horizonte, às 17 h.
No sábado, (13/10), em Fortaleza, às 16 h, haverá ato em homenagem ao Mestre, na Praia dos Crush.
Em Brasília, a homenagem é na Praça Zumbi dos Palmares.
No domingo, no Rio de Janeiro, a homenagem ao Mestre será às 13 h no Arco do Teles.
No mesmo dia, às 15h30, no Parque da Redenção, em Porto Alegre, Mestre Moa será homenageado, assim como, às 10 h, no Calçadão de Alegrete.
Também no domingo (14/10), às 11 h, Mestre Moa será homenageado por uma manifestação na Praça da República, em São Paulo, local da mais tradicional roda de capoeira do Estado de São Paulo.
As homenagens espraiam-se por todo o país, de uma das grandes figuras de sua cultura, covardemente assassinado.
DESPEDIDA
Na tarde da segunda-feira (8), o corpo do Mestre foi sepultado, sob clima de comoção e revolta, no cemitério Quinta dos Lázaros, no bairro da Baixa de Quintas, em Salvador.
O Mestre foi assassinado a facadas, na madrugada do mesmo dia, depois que expressou sua posição política contrária ao candidato à Presidência Jair Bolsonaro (PSL).
O irmão do Mestre, Reginaldo Rosário, de 68 anos, relatou que estavam bebendo com um primo, Germínio do Amor Divino Pereira, de 51 anos, no Bar do João, em frente ao Dique do Tororó, em Salvador.
Os três falavam do resultado da apuração do primeiro turno das eleições para Presidente da República, quando Paulo Sérgio Ferreira de Santana, de 36 anos, intrometeu-se na conversa, dizendo que Bolsonaro é que devia ganhar as eleições.
“Eu respondi a ele: ‘rapaz, você é novo, ainda não sabe nada da vida’”, contou o irmão de Mestre Moa. “Ele aí já veio com grosseria e Moa se meteu, também dizendo que ele não sabia pelo que já passamos. Disse assim: ‘você não sabe o quanto sofri pra ter liberdade’. Eles ficaram discutindo e até João [dono do bar] falou pro cara: ‘rapaz, olhe com quem você tá discutindo, com um senhor’. Aí ele se afastou, pagou a conta e foi embora”.
Cinco minutos depois, Paulo Sérgio voltou com uma faca e atacou Mestre Moa pelas costas.
“Eu só vi o vulto. Ele veio do nada e passou junto de mim já dando facada. Germínio tentou defender, mas não adiantou”, disse o irmão de Mestre Moa. “Como é que o cara dá 12 facadas assim em meu irmão? Chegou na covardia. Foi uma discussão de política e pronto. Se fosse coisa séria, a gente ia ficar lá sentado bebendo?”.
Germínio, primo de Mestre Moa, foi também ferido pelo bolsonarista.
Com Mestre Moa do Katendê já no chão, o assassino ameaçou esfaquear quem se aproximasse dele – e fugiu. Foi preso logo depois. Em nota, a Polícia Militar da Bahia informou: “Os policiais da 26ª Companhia Independente de Polícia Militar avistaram um rastro de sangue que levava até uma casa e prenderam em flagrante o homicida. Ele já estava com uma mochila com roupas, no intuito de fugir”.
A filha de Mestre Moa, Somanali, de 35 anos, declarou que foi a acordada por uma amiga, à meia-noite e meia, com a notícia da morte do pai: “Tomei aquele susto quando o celular tocou e já acordei me tremendo, porque perdi minha mãe há um mês de infarto. Era uma amiga com essa notícia. Bateu o desespero, acordei meu irmão, a gente saiu correndo. Quando cheguei, só vi meu pai lavado de sangue. Não dá nem pra acreditar nisso”.
CAETANO
Em texto publicado no dia seguinte, Caetano Veloso homenageou o Mestre:
“Mestre Moa do Katendê, a quem devo a revelação que foi ver e ouvir o grupo de pessoas na rua cantando ‘Misteriosamente o Badauê surgiu’, foi morto a facadas por ter dito que votara em Haddad. O assassino, um bolsonarista apaixonado, foi encontrado quando tentava fugir. Moa era meu amigo e foi uma das figuras centrais na história do crescimento dos blocos afro de Salvador. Estou de luto por ele. Fundador do Badauê, compositor, mestre de capoeira, Moa vive na história real da cidade e deste país.”
Mestre Moa foi apresentado à capoeira aos 8 anos de idade, por Mestre Beto Bobó, de quem se tornou discípulo, e, depois, herdeiro de seu legado cultural.
Foi, também, integrante do grupo de dança afro Viva Brasil, e compôs “Badauê”, para o bloco Ilê Aiyê.
Ao saber do assassinato de Mestre Moa, Antônio Carlos dos Santos, o Vovô, do Ilê Aiyê, declarou: “Moa era um artista incrível, um talento reconhecido no mundo inteiro. Jogava capoeira, dançava, escrevia. É uma perda imensa para a cultura da Bahia e do Brasil”.
Em 1978, Mestre Moa criou o afoxé Badauê, que Caetano Veloso lembrou, no vídeo que foi divulgado pelo jornal “O Globo” (ver abaixo).
O funeral de Mestre Moa reuniu centenas de familiares e amigos, sendo marcado por gritos de salvas de palmas intensas e gritos de “Ele Não” e “Nós não vamos parar, nós não vamos parar, nós não vamos parar”.
O autor das facadas, Paulo Sérgio Ferreira de Santana, preso em flagrante, teve a prisão preventiva decretada na tarde desta terça-feira (9). A decisão foi do juiz Horácio Pinheiro. Agora, o suspeito será encaminhado para o sistema prisional, onde vai aguardar o julgamento.
Em seu vídeo, Caetano Veloso, em luto pelo amigo, apontou Mestre Moa como “uma das figuras centrais na história do crescimento dos blocos afro de Salvador”.
“Ele foi assassinado por causa de uma discussão política”, disse Caetano. “Isso dá a impressão que a mente brasileira está num estado que precisa ser superado. É verdade que todo mundo precisa colocar pra fora um monte de coisa pra ver se muda o modo de ser da mente do brasileiro, o inconsciente coletivo. Pra isso acontecer, a gente tem de se reconhecer que a gente está maduro o suficiente para não se entregar a coisas como essa, porque isso é muito simbólico do que está se esboçando no Brasil.
“A mente de todos os brasileiros que são capazes de pensar, acalmar a cabeça para receber as coisas, o coração para metabolizar os sentimentos humanos, precisa reconhecer que não pode reduzir o Brasil a essa coisa bárbara.
“O assassinato de Moa do Katendê é um sinal de que a gente não deve seguir com força no caminho que as pessoas ilusoriamente pensam que é superação, quando é atraso, é volta, é medo da responsabilidade da civilização”, disse Caetano.
COVARDES
Em texto publicado na quinta-feira, o cantor e compositor Chico César homenageou Mestre Moa:
“Minhas homenagens a todo o povo da capoeira e à família do Mestre Moa do Katendê, assassinado pela covarde intolerância fascista em Salvador da Bahia.”
Em seguida, Chico César divulgou vídeo, com versos em homenagem ao Mestre Moa do Katendê: “Quando morre um capoeira / Morto assim à traição / Fica íngreme a ladeira / E mais pesado o caixão / Mesmo que a gente não queira / Trinca o dente e o coração/ Moa nem de brincadeira / Vamos te esquecer irmão”.
Abaixo, Caetano Veloso sobre o assassinato de Mestre Moa do Katendê (vídeo de “O Globo”):