Os boletins de atendimento médico de cinco dos 28 homens mortos por policiais civis no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, na última semana, registram que corpos chegaram com faces dilaceradas e membros superiores fraturados. O documento informa ainda que os cinco já chegaram mortos na emergência do Hospital Municipal Evandro Freire, na Ilha do Governador, Zona Norte.
Nas descrições do boletins, divulgadas pelo portal G1, apontam que as vítimas tinham lesões como “faces totalmente dilaceradas”, “dilacerações” e “membros superiores com desvios ósseos e dilacerações compatíveis com disparos de arma de fogo”. Os cinco baleados que tiveram o boletim médico divulgado estavam sem identificação e foram descritos como homem negro, homem negro II, homem negro III, homem pardo I e homem pardo II. A identificação dos corpos está sob responsabilidade do Instituto Félix Pacheco e do Instituto Médico Legal.
Na terça-feira (11), a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS) havia informado que pelo menos 26 das 27 pessoas mortas já foram encaminhadas sem vida aos hospitais da cidade do Rio. O procurador de Direitos Humanos da OAB Rio, Rodrigo Mondego, declarou na ocasião, em entrevista ao RJTV, que o fato dessas pessoas já chegarem mortas aos hospitais significa que as cenas de crime foram desfeitas, o que impediria a perícia nos locais com os corpos.
“É um indicativo de que possa ter acontecido desfazimento de cena de crime e fraude processual ao tirarem os corpos do local, não permitir a perícia para a gente não chegar ao que aconteceu de fato, na quinta-feira, no Jacarezinho. Existiu troca de tiros, mas há indicativos também que, além dessa troca de tiros, houve execuções sumárias também lá no local”, disse Mondego.
Divergência nos Boletins de Ocorrência
Após os depoimentos feitos à Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro pelos agentes que participaram da ação, a Ouvidoria da Defensoria Pública está investigando se houve uma tentativa de desfazer a cena do crime durante a operação policial que mais deixou mortos na história do estado.
Em dez dos 12 boletins de ocorrência, policiais disseram ter encontrado feridos após revidar tiros de criminosos ligados ao tráfico, os baleados foram então levados a hospitais. Porém, em ao menos quatro casos as pessoas morreram na favela, diferentemente do que disse a polícia.
Um dos casos envolveu a morte de um homem no quarto de uma menina de 9 anos em uma localidade conhecida como Beco da Síria. Segundo agentes da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), unidade de elite da Polícia Civil, o suspeito identificado como Omar Pereira da Silva, 21, foi atingido em uma troca de tiros e levado ao hospital.
Porém, a família que presenciou o assassinato contradiz a versão da polícia, de acordo com o casal, o jovem com um ferimento de tiro no pé estava desarmado e morreu no quarto da criança após ser alvejado por policiais. Apenas duas das 12 ocorrências da operação no Jacarezinho citam que foi solicitada a perícia para a remoção de cadáver.
Um vídeo gravado por moradores após a operação mostra dois homens mortos no chão. Em outro, uma moradora registra a cena de um jovem em óbito em uma laje. Ambos os casos também foram registrados como baleados socorridos ainda com vida.
“O crime de desfazimento de cena é muito grave porque inviabiliza a elucidação dos fatos e joga contra a perícia, que é a prova técnica. Isso dificulta a possibilidade de esclarecimento do que realmente aconteceu. Se isso for comprovado, é preciso identificar os responsáveis, fazê-los responder por esse crime e reforçar os protocolos da polícia”, diz Guilherme Pimentel, ouvidor-geral da Defensoria Pública,
Segundo ele, denúncias do tipo na operação do Jacarezinho não são casos isolados. “Recebemos com alguma frequência denúncia de moradores falando da retirada de corpos que já estariam mortos em operações policiais. Esse tipo de situação que se repete reforça a necessidade de uma investigação séria em relação a esse tipo de denúncia”, completa.
A Polícia Civil diz que o fato de os baleados terem chegado mortos aos hospitais não descarta a hipótese de que tenham sido socorridos.
Ocorrência no Jacarezinho, no Rio, envolveu “um elemento com ferimentos de arma de fogo sentado em uma cadeira”. Foto que viralizou mostra o rapaz já morto, identificado como Matheus Gomes dos Santos, 21 anos. O perito criminal aposentado Cássio Thyone Almeida de Rosa, integrante do conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, contesta a versão da polícia. Segundo ele, a imagem sugere que o corpo do jovem já morto foi posicionado na cadeira.
“O corpo está em uma posição extremamente incomum, com o tronco ereto. Chama a atenção as manchas de sangue. Provavelmente estava de pé quando as manchas de sangue se formaram”, explica.
“São várias manchas de contato nas pernas, cotovelo, braços e pés, dando a ideia de que esse corpo pode ter sido transportado até a cadeira”, completa.
Depoimentos parecem ter sido orquestrados
Ainda de acordo com Cássio Thyone, há indícios de desfazimento da cena do crime com base na repetição das versões contadas pelos agentes que participaram da operação no Jacarezinho.
“O alinhamento das versões nos boletins de ocorrência sugere um padrão construído para que as ações policiais sejam menos questionadas. Os depoimentos são parecidos. Parecem ter sido orquestrados e só favorecem quem estava na ação. A ação é no mínimo suspeita”, analisa Cássio Thyone Almeida de Rosa.