Por Maria do Rosário Caetano*
A sétima edição da Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo exibirá, dessa quinta-feira, 3 de dezembro, até o dia 13, no espaço virtual, filmes de grande valor estético e histórico – caso “Tempestade sobre a Ásia”, de Pudovkin, e “A Infância de Ivan”, de Andrei Tarkovsky. Exibirá, também, filmes realizados já no crepúsculo da era soviética. Um deles – “Moscou Não Acredita em Lágrimas”, de Vladimir Menshov, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1981, e foi lançado, com alarde, no circuito comercial brasileiro.
O CPC-UMES (Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas) realiza sua mostra anual em parceria com o Estúdio Mosfilm, “o maior e mais longevo do mundo”. Juntas, as duas instituições programaram a exibição de 13 longas-metragens, distribuídos em 30 sessões. “Nove deles foram restaurados dentro das técnicas mais modernas” – garante Igor Oliveira, da equipe cinematográfica do CPC-UMES Filmes – e “chegam às sessões on-line com altíssima qualidade técnica”.
Os interessados no cinema do grande país eslavo devem ficar atentos. Afinal, cada uma das trinta sessões será disponibilizada, no endereço cepecista no YouTube, por apenas seis horas.
No próximo dia 10, o Roskino, braço cinematográfico do Ministério da Cultura da Rússia, entrará em campo, no Brasil, para ajudar na complexa tarefa de difusão do cinema eslavo. O filme “Arritmia” dará início à primeira edição do Festival do Filme Russo, composto só com obras contemporâneas. Ou seja, filmes realizados nos últimos três anos. Como a Mostra Mosfilm, o novo evento acontecerá no espaço virtual (no streaming da Spcine, empresa paulistana de fomento ao cinema).
O CPC-UMES Filmes segue firme em seu projeto de difusão da imensa produção armazenada pelo Estúdio Mosfilm, implantado em janeiro de 1920, em Moscou, portanto no alvorecer da Revolução Bolchevique. Nem a queda do império soviético foi capaz de destruir o centenário estúdio.
Além do festival, a trupe cepecista mantém distribuidora de DVDs (e, em alguns casos especiais, blu-ray), que reúne clássicos de Eisenstein (“O Velho e o Novo” e “Alexandre Nevsky”), de Mikhail Romm (“Bola de Sebo”), Tarkovsky (“Andrei Rublev”, “Solaris”, “Stalker”), Elem Klimov (autor do maior hit do catálogo, o inovador drama de guerra “Vá e Veja”), Larisa Sheptiko (do notável “Ascensão”) e de Akira Kurosawa.
O que o mestre japonês tem a ver com o Estúdio Mosfilm? Muito. Quando ele se viu sem produtores nipônicos, nem parceiros ocidentais, encontrou guarida na URSS, que produziu “Dersu Uzala”, filmado em solo soviético, com história e atores idem. O filme transformou-se em um dos maiores sucessos ocidentais do Mosfilm, ganhou o Oscar e foi exibido planetariamente.
Outro nome que brilha no acervo de DVDs do CPC-UMES Filmes é o de Sergei Bondarchuk. Ator e diretor de imenso prestígio na União Soviética, ele foi lembrado, ao longo desse ano – o de seu centenário de nascimento –, em diversas atividades cepecistas. Não seria diferente nesta sétima edição (a primeira virtual) da mostra.
“O Destino de um Homem” (1959), que marca a estreia de Bondarchuk na direção, será o primeiro filme a ser exibido pelo festival. O sucesso desse longa, baseado em obra de Mikhail Sholokhov, que mais tarde ganharia o Prêmio Nobel de Literatura, foi tão grande, que o jovem ator-diretor cacifou-se para comandar o maior projeto da história cinematográfica da URSS: a versão (falada em russo, com intromissões do francês) de “Guerra e Paz”, clássico de Lev Tolstoi. Este filme, que dura mais de sete horas, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro (em 1967) e serviu de vitrine para que Bondarchuk fosse reconhecido, inclusive no Ocidente, como “grande diretor de épicos monumentais”.
Dino de Laurentiis, o poderoso produtor internacional, associou-se à URSS e à Inglaterra para realizar “Waterloo”, com Rod Steiger na pele de Napoleão Bonaparte, e Christopher Plummer, como o General (e Duque de) Wellington. Bondarchuk faria, ainda, o épico (também monumental) “Boris Godunov”, baseado em Pushkin, e reconstruiria a epopeia de John Reed na Revolução Mexicana (“Sinos Vermelhos – México em Chamas”) e na Revolução Bolchevique (“Sinos Vermelhos 2”).
Igor Oliveira lembra que “O Destino de um Homem” homenageará seu realizador e protagonista e evocará os 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, que os russos chamam de Guerra Patriótica. A evocação reunirá, ainda, dois dramas de guerra: o tarkovskiano “A Infância de Ivan” e “Neve Ardente”, realizado em 1972, por Gavril Eguiazarov. Não é temerário afirmar, embora faltem estatísticas: ninguém filmou mais a Segunda Guerra Mundial que os soviéticos. E eles o fizeram em documentários realizados no calor da hora dos embates entre o Exército Vermelho e as forças de Hitler, e em centenas e centenas de ficções.
Sob censura, os diretores da imensa URSS encontravam na “guerra patriótica” um tema possível (e até incentivado). Tantas imagens bélicas acabaram inseminando aquele que hoje é considerado o maior (e mais influente) filme de guerra contemporâneo (“Vá e Veja”, de Elem Klimov, que influenciou, com seu clima de pesadelo e trato sonoro de vanguarda, diretores como Steven Spielberg e o Christopher Nolan de “Dunkirk”).
Outro destaque da Mostra Mosfilm 7 é o drama social “Moscou Não Acredita em Lágrimas”, laureado com o Oscar de melhor produção estrangeira. A trama gira em torno de três amigas operárias, que deixam sua pequena cidade natal para tentar a vida em Moscou. Um filme indicado, especialmente, ao público feminino. Afinal, se submetido ao Teste Bechmel, seria aprovado com louvor. O Teste, para quem ainda não sabe, é aquele criado nos EUA para avaliar o peso narrativo de personagens femininas – se seres complexos ou meras “escadas” para personagens masculinos. As operárias de Vladimir Menshov foram estruturadas como seres complexos, com sonhos profissionais, familiares e existenciais, que dificilmente se realizariam. Rever o filme será uma experiência nova e instigante. Terá resistido à ação do tempo?
Quem gosta de “Quando Voam as Cegonhas” (Palma de Ouro em Cannes, 1957) e “Soy Cuba” (aquele com o monumental plano-sequência que encantou Scorsese, Coppolla e virou filme de Vicente Ferraz – “O Mamute Siberiano”) não pode perder “A Carta Não Enviada” (1960), do mesmo diretor, Mikhail Kalatozov. Depois de apreciar esse filme, batalhem para conseguir alguma forma de assistir à desesperadora obra-prima do cineasta: “Sal para Svétia” (1930), um média-metragem documental de tirar o fôlego. Há quem diga que foi uma das fontes de influência do Buñuel de “Terra sem Pão” (“Las Hurdes”, 1933).
Depois da sessão inaugural (com “O Destino de um Homem” e homenagem a Bondarchuk), a Mostra Mosfilm 7 apresentará “O Sol Branco do Deserto”, de Vladimir Motyl (1969). Trata-se de produção que uniu, mais uma vez, a poderosa produtora de Dino de Laurentiis ao Estúdio Mosfilm. O filme levou 36 milhões de espectadores aos cinemas, quando de seu lançamento comercial na URSS.
A produção mais antiga da sétima mostra é o épico silencioso “Tempestade sobre a Ásia” (1928), de Vsevolod Pudovkin. Vale repetir que o diretor de “A Mãe” forma com Eisenstein, Dziga Vertov e Dovchenko, o mais famoso quarteto da vanguarda bolchevique, aquela que ajudou a mudar a história do cinema. E o fez com as ousadias do Construtivismo Soviético. Concebido como “O Herdeiro de Gengis Khan”, o filme – escrito por Osip Brik e Ivan Novokshonov – levou Pudovkin à parte oriental do grande império soviético e fechou sua trilogia revolucionária (iniciada com “A Mãe” e sequenciada com “O Fim de São Petersburgo”). Mas não agradou aos burocratas do poder cultural e político da era Stálin.
De Karen Shakhnazarov, diretor geral do Mosfilm e parceiro do CPC-UMES (ele até veio ao Brasil para o lançamento de “Anna Karenina: A História de Vronsky”, em junho de 2018), será exibido “Nós Somos do Jazz”, seu segundo filme, realizado em 1983. Diretor prolífico, Shakhnazarov é autor de envolvente recriação do romance “Anna Karenina”, de Tolstoi (inseminado por outro livro – “Notas de um Médico sobre a Guerra Russo-Soviética”, de Vikenty Veresaev). Só que a trágica heroína se revela a partir da história do Conde Vronsky, o amante que tanto a infelicitou.
Dois filmes merecem conferência atenta. Mais pelo histórico de seus autores, que por terem se destacado na história fílmica da União Soviética: “Nove Dias em um Ano” (1961), de Mikhail Romm, e o musical “Tanya” (1940), de Grigori Aleksandrov. Romm é autor de pelo menos dois filmes notáveis: “Bola de Sebo”, a mais inventiva recriação do clássico conto de Maupassant (peça literária amada por marxistas, mundo afora), e o documentário “O Fascismo de Todos os Dias”. Fez, ainda, dois filmes sobre Lênin (“Lenin em Outubro” e “Lenin em 1918”) e trabalhou incansavelmente. Sua filmografia é volumosa e desigual.
Grigori Aleksandrov iniciou sua carreira com o pé direito: como assistente e co-roteirista de Sergei Eisenstein. Coassinou “A Greve” e participou da tumultuada passagem do gênio letão pelo México. Portanto, ajudou na realização do inacabado “Que Viva México!”, que teve seus negativos confiscados pelo produtor norte-americano (o escritor Upton Sinclair).
Quando Eisenstein e Aleksandrov regressaram à União Soviética, os dois tomaram caminhos diferentes. Preocupadas com a falta de filmes que levassem grandes plateias aos cinemas, as autoridades culturais bolcheviques passaram a exigir produções de corte popular. O ex-parceiro de Eisenstein estudou, então, o musical norte-americano e enveredou por esse caminho. Realizou a comédia – musical e metalinguística – “Circus” (1936), um filme que tem valores dignos de atenção e que introduziu um personagem negro na cinematografia eslava. Além de contar com um sósia do inesquecível Carlitos, de Charles Chaplin (amado também pelos soviéticos). Mas a obra de Aleksandrov acabou dissolvendo-se no Realismo Socialista da era Stálin. Resta ver se há em “Tanya”, o musical programado pela mostra, valores que lhe garantam sobrevivência.
Um único filme dirigido por nome feminino (Larissa Sadilova, de 57 anos) destaca-se na programação da Mosfilm 7: o drama “Ela” (2013), portanto, a produção mais recente do festival. Curioso notar que nem a Revolução Russa foi capaz de ampliar a participação das mulheres na direção cinematográfica. Na era revolucionária, só Olga Preobrazhenskaya (diretora do belo “Mulheres de Ryazan”), Esfir Shub, grande montadora e companheira de Pudovkin (com ele, dirigiu o longa documental “20 Anos de Cinema Soviético”) e Yuliya Solntseva, atriz e companheira de Dovchenko (depois diretora de vários filmes) conseguiram destacar-se.
Completam a programação, os filmes “Ivan Vassilevich Muda de Profissão”(1973), comédia de Leonid Gayday, o rei do blockbuster soviético, e “As Garotas”(1961), de Yury Chulyukin.
7ª Mostra Mosfilm de Cinema Soviético e Russo
Data: 3 a 13 de dezembro
Com exibição gratuita de 13 filmes, distribuídos em 30 sessões (cada uma será disponibilizada por 6 horas)
No canal do CPC-UMES Filmes no Youtube
*Publicado no portal Revista de Cinema