Para Roberto D´Araújo, “o governo vai adotar uma intervenção sem um diagnóstico sobre a elevação da tarifa de energia”. Já Íkaro Chaves afirma que, além de não enfrentar os problemas estruturantes, a MP “legitima a privatização da Eletrobrás”
O presidente Lula assinou na terça-feira (9) uma medida provisória com o objetivo de diminuir a conta de luz em 3,5% neste ano. Para atingir esse objetivo, a MP determina a antecipação dos recursos previstos na lei de privatização da Eletrobrás para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) com o objetivo de destiná-los ao pagamento da “conta Covid” – quando as distribuidoras ficaram sobrecontratadas, pela queda de demanda – e da “conta escassez hídrica” – quando elas contrataram energia mais cara.
MP QUESTIONADA
A reação à MP foi muito forte e Lula resolveu ouvir especialistas da área de energia. Após a reunião realizada nesta quarta-feira (10), o presidente determinou a criação de um grupo de trabalho para propor um novo programa energético capaz de reduzir a conta de luz com medidas estruturais. Segundo o setor de energia, a MP tem um efeito inverso: faz redução momentânea de curto prazo mas eleva o preço para o consumidor no longo prazo.
A MP prevê ainda a extensão dos subsídios para os usuários de energia fotovoltaica. Os recursos previstos pela medida provisória viriam da antecipação de cerca de R$ 26 bilhões da Eletrobrás, que seriam depositados na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE); do fundo regional do Norte previsto na privatização da Eletrobrás, que seria usado nas tarifas dos estados da região – entre eles, o Amapá e de investimentos obrigatórios em pesquisa, desenvolvimento e eficiência energética por parte das distribuidoras.
Especialistas do setor ouvidos pelo HP também avaliam que a medida, apesar de dar um pequeno alívio imediato nas tarifas, trará problemas futuros. “Na realidade, mais uma vez, o governo vai adotar uma intervenção sem um diagnóstico sobre a elevação da tarifa de energia”, aponta Roberto D´Araújo, ex-diretor do Instituto Ilumina. Ele tem denunciado que, após as privatizações, ao contrário dos que defendiam as vendas das empresas públicas, as tarifas de energia subiram muito mais do que a inflação no Brasil.
“Na realidade, mais uma vez, o governo vai adotar uma intervenção sem um diagnóstico sobre a elevação da tarifa de energia”, argumenta D’Araújo.
Veja nos gráficos abaixo, de Roberto D´Araújo, a elevação contínua das tarifas após privatizações
“Esse bônus originado da venda do controle acionário da Eletrobrás jamais deveria ser usado para compensar altas tarifárias, pois é parte de um ativo que era do estado”, acrescenta. “A mesma equivocada política adotada pela Dilma na MP 579”, aponta o engenheiro, destacando que as decisões sem um diagnóstico claro “estão criando um caos no setor elétrico”, enfatizou, ainda.
SEM PLANEJAMENTO
“O que deveria deixar qualquer um pasmo é que hoje o preço spot do mercado livre está no seu valor mínimo há quase 2 anos”, aponta Roberto D´Araújo. “A pergunta que deveríamos fazer é: Sem subsídios haveria investimento privado? Sem parceria da Eletrobras haveria investimento privado em hidroelétricas?” “O que agrava ainda mais é que a expansão dessas novas renováveis não resultou de um planejamento”, complementa.
Ikaro Chaves, ex-dirigente sindical e ex-conselheiro eleito do Conselho de Administração (Consad) da Eletronorte, uma subsidiária da Eletrobrás, também critica a medida. Segundo ele, “a ideia do governo atual é fazer um empréstimo com bancos, pegar esses 27 bilhões de reais que a Eletrobrás deve em 30 anos para a CDE, e que seriam antecipados pelos bancos, e vão quitar as contas da covid e da escassez hídrica”.
“Ele vai dar como garantia para o empréstimo os recursos que tem a receber da Eletrobrás. É como se ele fizesse uma antecipação, só que com pagamento de juros. É uma engenharia financeira que vai trazer um alívio no curto prazo. Serão usados também no abatimento das dívidas os recursos, em torno de 9 bilhões de reais, que a Eletrobrás tem que pagar em 30 anos para a CDE, que seriam destinados à proteção de bacias hidrográficas”, diz Ikaro.
NÃO RESOLVE PROBLEMAS
“Essa antecipação”, afirma o ex-sindicalista, “não resolve nenhum dos problemas estruturantes do setor elétrico, que começaram há 30 anos, com a privatização e a mercantilização do sistema”. “O resultado dessas privatizações e da mercantilização do sistema, nós estamos vendo hoje. A conta de luz dos brasileiros, que era das mais baratas do mundo – um diferencial, inclusive para a nossa industrialização -, que já era uma energia limpa, renovável e barata, que ajudou a industrialização do Brasil, a partir do momento em que o processo de privatização começou, tivemos um encarecimento progressivo da conta de luz. Além disso, estamos vendo uma piora na qualidade dos serviços em todo o país, não é só em São Paulo, mas em todo o país”, denunciou.
“A Eletrobrás foi vendida por 67 bilhões de reais. Desse valor, o governo ficou com 30 bilhões de reais. A CDE receberia 32 bilhões de reais em 30 anos”, explicou Íkaro. “Esta conta recebe 40 bilhões por ano, pagos pelo consumidor. Isso corresponde a 15% da tarifa de energia”, aponta o engenheiro.
“No governo Bolsonaro, parte dos 32 bilhões de reais foram usados para reduzir o impacto da CDE”, apontou Íkaro. Esse compromisso da Eletrobrás, segundo o especialista, corresponde a cerca de 400 milhões de reais que são repassados por ano. Ele explica que, em 2022, “o governo resolveu antecipar 5 bilhões de reais dos recursos da privatização para colocar na CDE, com objetivo de obter uma redução momentânea nas tarifas. Sobraram 27 bilhões de reais”.
RECURSOS FARÃO FALTA
Na opinião de Íkaro Chaves, “a antecipação proposta pela MP atual alivia no curto prazo, mas no longo prazo, isso vai ter impacto”. “É uma antecipação de recursos que farão falta na frente. É o mesmo que antecipação do décimo terceiro, alivia agora, mas depois aperta e ainda vai pagar juros sobre esse adiantamento”, apontou.
“É uma antecipação de recursos que farão falta na frente. É o mesmo que antecipação do décimo terceiro, alivia agora, mas depois aperta e ainda vai pagar juros sobre esse adiantamento”
“Além disso”, alertou, “essa antecipação legitima a privatização da Eletrobrás, porque vai ser usado o recurso da privatização”. “Uma eventual reestatização da Eletrobrás fica descartada e a oferta de energia barata, como ela fazia no passado fica praticamente inviabilizada com o uso desses recursos, afinal, esse financiamento vai ter que ser pago”, afirmou o dirigente sindical.
“Essa é a lógica da privatização. No curto prazo alivia as tarifas e no longo prazo há a elevação das tarifas. Com isso, o governo dá um arremate na privatização da Eletrobrás. Isso mata qualquer possibilidade do Brasil retomar sua soberania energética. Tudo isso para reduzir a cota de luz por um ou dois anos”, complementa.
SUBSÍDIOS DESNECESSÁRIOS
“Outra coisa grave”, diz ele, “é a extensão do subsídio para a energia fotovoltaica”. “Hoje o maior impacto na conta de desenvolvimento energético, que é paga pelo consumidor, inclusive os mais pobres, que não têm dinheiro para colocar um sistema desses em casa, é este subsídio. As famílias mais pobres estão subsidiando as famílias mais ricas e as empresas porque qualquer empresa pode colocar um sistema desses. Hoje esse subsídio não faz nenhum sentido”, afirma Íkaro.
Ele conta que havia um projeto no Congresso de ampliação do prazo deste subsídio. “No governo passado foi feito um outro projeto com um prazo para a existência deste subsídio. Abriu-se então um período que foi chamado de ‘corrida do ouro’ da energia fotovoltaica. Porque foi criada uma janela de oportunidades que terminou em janeiro de 2023 para projetos fotovoltaicos com o subsídio. Houve uma pressão muito grande do setor para estender essa janela em que eles poderiam usar os subsídios. O projeto de extensão dos subsídios havia sido engavetado e, agora, no governo Lula, vem a proposta de estender os subsídios. Isso vai trazer mais impacto para a conta de luz”, denuncia.
Íkaro diz que “as associações de consumidores estão protestando porque há uma redução de tarifas no curto prazo, justifica-se ideologicamente a privatização da Eletrobrás, dificulta qualquer perspectiva de reestatização da empresa e traz mais um aumento estruturante da conta de luz”. “O Brasil tem energia sobrando hoje, principalmente de energia fotovoltaica. Se o Brasil colocasse todos os projetos de fotovoltaicas que ele tem em funcionamento, não haveria para onde escoar essa energia toda. Falta linha de transmissão, falta capacidade de armazenamento, falta regulação, mas não falta energia”, completa.
SÉRGIO CRUZ