MP defende fim das plataformas digitais obrigatórias de Feder na educação de São Paulo

Tarcísio de Freitas, e o secretário estadual de Educação, Renato Feder, em 23 de junho de 2023. Foto: Fernando Nascimento/Governo de São Paulo

Imposição de plataformas privadas na educação pública viola liberdade docente e prejudica ensino, aponta relatório do Grupo de Atuação Especial de Educação

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), por meio do Grupo de Atuação Especial de Educação (GEDUC), divulgou um relatório contundente contra a obrigatoriedade do uso de plataformas digitais na rede estadual de ensino. Segundo o órgão, a medida viola direitos constitucionais e pedagógicos, além de representar risco à saúde mental de crianças e adolescentes.

O documento aponta que o modelo imposto pela Secretaria de Educação de São Paulo viola a liberdade docente, interfere na gestão democrática das escolas e representa riscos à saúde de crianças e adolescentes. Segundo o Ministério Público, trata-se de uma “afronta à liberdade de ensinar”.

Desde 2023, a Secretaria da Educação passou a impor o uso de ao menos oito plataformas digitais privadas, com conteúdos padronizados e baseados em inteligência artificial, como o ChatGPT-4. Professores e estudantes foram obrigados a utilizá-las, sem consideração pelos Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) das escolas.

Segundo o MP-SP, a medida compromete a liberdade de cátedra, garantida pela Constituição Federal. Professores relataram que são impedidos de modificar os materiais digitais e que as atividades são enviadas automaticamente pelas plataformas, sem participação docente.

As constatações do Ministério Público baseiam-se em uma pesquisa com quase 30 mil professores. Dentre eles, 93% confirmaram que o uso das plataformas é obrigatório. Mais de 18 mil afirmaram que livros didáticos e atividades culturais foram abandonados para atender às metas de uso da tecnologia. Também resultou de uma audiência pública ocorrida em fevereiro de 2025, com a presença de parlamentares, professores universitários, docentes da rede estadual de educação, entre outros servidores.

Além de comprometer o trabalho pedagógico, o modelo instaurou um ambiente de pressão e insegurança nas escolas. Diretores e professores vêm sendo avaliados com base na frequência de uso das plataformas digitais, e o não cumprimento das metas tem gerado punições, como remoções forçadas e perda de cargos de gestão.

Embora não existam normas formais que obriguem o uso, o MP-SP destaca que a Secretaria de Educação implementou um sistema de controle que, na prática, torna as plataformas mandatórias. O controle ocorre por meio do sistema “Escola Total”, que monitora em tempo real a frequência e o tempo de conexão de professores e estudantes. Além disso, a Resolução SEDUC nº 4/2024 atrela o desempenho de diretores escolares aos índices de uso dessas ferramentas, estabelecendo sanções administrativas, como a perda de cargo ou a remoção de função.

O documento menciona ainda denúncias de assédio institucional e pressão hierárquica. A lógica gerencial implantada, segundo o MP, valoriza métricas de uso em detrimento da qualidade do ensino.

Apesar da digitalização obrigatória, muitas escolas não possuem infraestrutura adequada. Em diversas unidades, três a quatro alunos precisam dividir um único equipamento. Fora do ambiente escolar, estudantes de baixa renda enfrentam exclusão digital por falta de internet ou dispositivos em casa, o que acentua desigualdades educacionais e compromete o acesso ao aprendizado.

USO DE TELAS 

O uso prolongado de telas também preocupa. Estudantes estão passando mais de três horas semanais conectados às plataformas, dentro e fora da sala de aula, sem qualquer tipo de mediação, controle ou orientação. O Ministério Público alerta para os riscos à saúde mental e emocional de crianças e adolescentes e denuncia a ausência de programas de prevenção ou formação adequada para os professores lidarem com esse cenário.

A prática, segundo o texto, representa violação ao direito à educação e à proteção integral da infância e da adolescência, garantidos pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O relatório aponta que a política educacional adotada pelo governo de São Paulo desrespeita diversas normas legais e constitucionais, entre elas:

  • A Constituição Federal, no que se refere à liberdade de ensinar, à gestão democrática do ensino, ao padrão de qualidade da educação, à repartição de competências educacionais e à proteção integral da infância e juventude.
  • A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que assegura a autonomia pedagógica das escolas, a valorização dos profissionais da educação e o direito a uma educação de qualidade.
  • O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante o direito à saúde, à educação, à proteção contra riscos e à participação na vida escolar.
  • A Resolução e o Parecer do Conselho Nacional de Educação sobre Educação Digital, que estabelecem diretrizes para o uso pedagógico de tecnologias com foco em segurança, equidade e participação democrática.
  • A Política Nacional de Educação Digital, que orienta a integração responsável das tecnologias ao processo de ensino e aprendizagem, respeitando a realidade de cada comunidade escolar.
  • A legislação estadual sobre o uso pedagógico de dispositivos eletrônicos por estudantes, que define critérios e limites para o uso de tecnologias digitais nas escolas públicas.

O MP-SP ressalta que não é contrário ao uso de tecnologias no ambiente escolar e reconhece sua importância no contexto educacional atual. No entanto, critica a forma como a política foi implementada, sem diálogo com a comunidade escolar, sem respeito à autonomia dos educadores e sem considerar os impactos sobre a saúde e o aprendizado dos estudantes.

RECOMENDAÇÕES

Diante das irregularidades constatadas, o MP-SP emitiu uma recomendação formal, instrumento extrajudicial previsto na Resolução CPJ, com o objetivo de evitar judicialização e permitir a correção voluntária das práticas ilegais por parte do poder público.

  • A recomendação, encaminhada à Fazenda Pública do Estado e ao secretário de Educação em exercício, Renato Feder, exige mudanças estruturais na condução da política educacional. Entre os principais pontos estão:
  • A criação de um plano permanente de atenção à saúde mental de crianças e adolescentes, com foco na prevenção e mitigação dos impactos do uso excessivo de dispositivos eletrônicos, incluindo a formação de educadores para identificar sinais de sofrimento emocional.
  • A edição de diretrizes públicas, claras e transparentes sobre o uso das plataformas digitais, garantindo que sua adoção seja facultativa, em respeito à autonomia dos docentes e aos projetos pedagógicos das escolas.
  • A garantia de autonomia administrativa e pedagógica das escolas, com participação efetiva da comunidade escolar na definição das formas de uso das tecnologias, respeitando as especificidades sociais e territoriais.
  • A revogação imediata de atos normativos que impõem metas obrigatórias de uso das plataformas digitais, especialmente a Resolução SEDUC nº 4 de 2024, e o cancelamento de todas as punições aplicadas com base nessas metas.
  • A reversão das penalidades aplicadas a professores, diretores e demais profissionais da educação, permitindo que, caso desejem e haja compatibilidade com o interesse público, retornem às suas funções ou unidades escolares de origem.

A Secretaria de Educação tem um prazo de trinta dias para informar formalmente o acolhimento da recomendação e apresentar documentação que comprove a adoção das medidas propostas. A aceitação somente será considerada válida mediante o cumprimento integral dos pontos indicados.Caso as exigências não sejam atendidas, o Ministério Público afirmou que adotará todas as providências legais cabíveis, inclusive o ajuizamento de ação civil pública, para assegurar a proteção dos direitos das crianças, adolescentes e profissionais da educação. “A presente ciência inequívoca é conferida à autoridade nomeada quanto às ilegalidades verificadas e minuciosamente descritas”, conclui o documento.

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