Subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado ingressou com representação no tribunal na semana passada em que pede apuração do caso e suspensão da compra
O Ministério Público de Contas, órgão de controle externo do TCU (Tribunal de Contas da União), apontou possível crime de responsabilidade na compra de tratores pelo governo Jair Bolsonaro (PL), com recursos que deveriam ser usados para amenizar o impacto da pandemia da Covid-19 para a população pobre.
O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado ingressou com representação no Turibunal na semana passada em que pede apuração do caso. No documento, ele requisita ainda a suspensão dos pagamentos à empresa que fornece os maquinários ao governo Bolsonaro, a XCMG.
Reportagem no jornal Folha de S.Paulo veiculou, no último domingo (22), que o Ministério da Cidadania usou R$ 89,8 milhões no apagar das luzes do ano passado para comprar esses máquinários. Os recursos estão no âmbito do programa Fomento Rural, para as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza da zona rural — contexto estranho ao uso de maquinários de grande porte.
DRIBLE À DETERMINAÇÃO DO TCU
A assinatura do contrato com a XCMG e o empenho dos recursos envolveu drible à determinação do TCU. O acórdão do tribunal autorizou a utilização do dinheiro desde que aplicado “exclusivamente ao custeio de despesas com enfrentamento do contexto da calamidade relativa à pandemia de Covid-19 e de seus efeitos sociais e econômicos e que tenham a mesma classificação funcional da dotação cancelada ou substituída”.
Essas condições não foram atendidas pelo governo Bolsonaro. As compras de tratores são investimento, não custeio, e não há relação com a covid. Esses recursos eram originados da transição do extinto programa Bolsa Família para o Auxílio Brasil.
O Ministério da Cidadania comprou 247 máquinas agrícolas ao aderir a atas de registro de preços elaboradas a partir de licitação do Ministério do Desenvolvimento Regional. Essas atas de registro, em nome da XCMG, têm sido usadas pelo governo e agentes políticos para distribuir tratores a municípios de aliados.
SÍMBOLO DE CLIENTELISMO POLÍTICO
Os tratores tornaram-se símbolo de clientelismo político no governo Bolsonaro. As primeiras informações sobre as compras de tratores foram noticiadas pelo jornal O Estado de S. Paulo, com uso das emendas de relator do Orçamento, controladas pelos líderes do Centrão, o chamado “orçamento secreto”.
Neste caso, das compras no Ministério da Cidadania, há a digital do governo federal: os recursos são do Orçamento da União.
As máquinas ainda não chegaram a ser distribuídas — estariam ainda no pátio da empresa, em Pouso Alegre (MG), segundo documentos. O Ministério da Cidadania realizou a compra sem ao menos ter a lista de municípios que serão beneficiados, o que denota a ausência de critérios técnicos.
Há no processo apenas a quantidade de maquinários por Estado. O maior beneficiado é a Bahia, onde o ex-ministro da Cidadania, João Roma (PL), que assina a liberação para as compras, é pré-candidato ao governo estadual da Bahia. O ex-ministro, óbvio, negou irregularidades.
BURLA AOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
“Desta forma, a meu ver, o governo novamente age em desacordo com os princípios que deveriam nortear a atuação do administrador público, em especial, confronta os princípios da impessoalidade e da legalidade”, afirmou o subprocurador-geral do Ministério Público na representação.
Lucas Rocha Furtado pede a atuação do tribunal para verificar se houve desrespeito ao acórdão do próprio TCU e favorecimento a aliados do governo.
“Os fatos noticiados pela Folha denotam, em tese, inadequada execução orçamentária, motivada supostamente por interesses políticos e em desvirtuamento do princípio da impessoalidade que orienta a distribuição de recursos públicos, podendo caracterizar eventual crime de responsabilidade, por atentar contra a lei orçamentária”, completou.
Para o subprocurador-geral, o TCU deve determinar a suspensão das compras “até que esta Corte de Contas decida sobre a legalidade”.
FINGINDO-SE DE MORTOS
O Ministério da Cidadania tem sido procurado desde o dia 19 de maio, mas não se manifestou até agora. A pasta foi questionada novamente na última sexta-feira (27) e silenciou.
A preferência para os tratores se deu em momento em que a área técnica da pasta solicitava R$ 108 milhões para incluir 45 mil famílias no Fomento Rural. A atividade principal do programa é a transferência de renda para agricultores de baixa renda.
A liberação do recurso para atender essas famílias foi negada até agora. O número de beneficiados do Fomento Rural desabou sob o governo Bolsonaro.
A compra dos tratores envolveu pressão para a liberação dos recursos e também a publicação de portaria específica para criar MAG-SAN (Estrutura de Mecanização Agrícola) no Sisan (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional).
MAIS DESVIOS
Essa portaria foi a base de outro pedido do governo federal para gastar R$ 1,2 bilhão na aquisição de novas máquinas, ignorando, ainda, a fila de famílias fora do programa de Fomento Rural.
Documento de Formalização de Demanda, de 30 de março, aponta para a compra de 2.900 maquinários. São citadas 600 escavadeiras hidráulicas, 500 motoniveladoras, 1.200 pá-carregadeiras e 600 retroescavadeiras.
HISTÓRICO E LINHA DO TEMPO DO ESQUEMA
O jornal montou linha do tempo para efeito de entendimento do esquema que foi montado pelo Ministério da Cidadania para que os agentes políticos pudessem se locupletar com os recursos públicos:
Junho de 2021 – Acórdão do TCU permitiu ao Ministério da Cidadania o uso de dinheiro a partir de sobra do Bolsa Família exclusivamente para ações de custeio para enfrentamento pandemia e os respectivos reflexos.
Novembro de 2021 – Governo abriu crédito suplementar de R$ 90 milhões direcionado à ação orçamentária “Inclusão Produtiva Rural”. Não se trata de emendas parlamentares, mas de orçamento da própria União.
7 de dezembro de 2021 – Ministério da Cidadania adere a atas de registro do Ministério do Desenvolvimento Regional que tem a empresa XCMG como fornecedora de equipamentos, como tratores.
27 de dezembro de 2021 – João Roma, então ministro da Cidadania, autoriza contratação da XCMG pelas atas de registro.
28 e 29 de dezembro de 2021 – Ministério faz 37 empenhos no valor total de R$ 89,8 milhões em favor da XCMG para compra dos equipamentos agrícolas.
30 de dezembro de 2021 – Pasta assina contrato com a empresa.
22 de março de 2022 – Portaria 755 cria estrutura de mecanização agrícola no âmbito do Sisan (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), em especial do Fomento Rural. Novo modelo permite a compra de equipamentos como retroescavadeiras, pá-carregadeiras e caminhões.
16 de maio de 2022 – Ministério Cidadania pede liberação de mais R$ 1,2 bilhão para comprar tratores. Pasta usa como base a portaria 755.
