“Raios caem sobre linhas e subestações quase todo dia e, se o padrão do nosso sistema fosse a da ISOLUX, nós estaríamos no escuro”, afirma o especialista Roberto Pereira D’Araujo
Mesmo diante do apagão provocado pela empresa espanhola Isolux que deixou cerca de 90% da população do Amapá sem energia elétrica, sem água potável, sem segurança, sem comida, em plena pandemia da Covid-19, desde o dia 3 de novembro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, voltou a defender, nesta quinta-feira (19), a privatização da Eletrobrás.
Sem qualquer proposta para a crise econômica, agravada pela pandemia, com milhões de desempregados e milhares de empresas fechadas, Guedes só pensa em torrar o patrimônio público para pagar bancos. A tentativa de privatizar a Eletrobrás, desde o início do governo Bolsonaro, encontra forte resistência dos mais diversos setores da sociedade, agora mais ainda com o escandaloso apagão do Amapá.
Para o engenheiro eletricista Roberto Pereira D’Araujo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina), “a ameaça de perder a Eletrobras, cuja subsidiária Eletronorte é a salvação do Amapá, pode nos deixar sem saída para outras surpresas previsíveis”.
O especialista alerta, em artigo publicado no Ilumina, “Amapá – a ponta do Iceberg”, que reproduzimos a seguir, sobre “a fragmentação generalizada que tomou conta do setor elétrico brasileiro”.
Amapá, a ponta do iceberg
Roberto Pereira D’Araujo (*)
“A metáfora do título, apesar de estranha, é apropriada. Esse estado é uma das pontas do norte do Brasil, tem quase 150 mil quilômetros quadrados com uma população de quase 800 mil habitantes. A Grécia cabe dentro dele com folga.
Estando no extremo norte do país, foi um dos que não conseguiram atrair o capital privado no processo de privatização do setor elétrico da década de 90. Não ficou sozinho nessa rejeição. Acre, Rondônia e Roraima também não conseguiram. Esses, se juntaram ao Piauí e Alagoas e foram parar na Eletrobras, que, por ordem do seu acionista majoritário, o governo, foi obrigada a se endividar para comprar as distribuidoras desses estados. Note-se que a estatal nunca teve a distribuição de energia como um dos seus objetivos. É bom não esquecer esse detalhe nessa parte submersa.
O Brasil é um dos recordistas mundiais de raios com mais de 77 milhões de descargas por ano segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Eles atingem linhas de transmissão e subestações e provocam desligamentos. Mas disjuntores de proteção adequados atuam para preservar os equipamentos. Mesmo se as estações estiverem seguras, ocorrem interrupções de suprimento que, com alguma manobra, podem ser restauradas em pouco tempo.
O Amapá está na fronteira do Brasil e, em qualquer rede que interligue o país, ele estará na periferia desse circuito. Por isso mesmo, os equipamentos e subestações que exercem essa conexão precisam de cuidados especiais. Ali não há outro caminho. Tudo se passa como se fosse um território isolado por um abismo físico com o resto e, portanto, uma ponte que o interligasse teria que ser muito bem construída e monitorada.
Certamente, esse não foi o caso da subestação LMTE (Linhas de Macapá Transmissora de Energia), concessão vencida pela empresa privada espanhola ISOLUX, em 2008.
Com certeza houve defeitos de projeto, tais como aterramento insuficiente, disjuntores incorretamente ajustados e buchas de má qualidade. Também houve falha de manutenção e ausência de equipamentos de redundância, como transformadores e equipes extras. Entretanto, raios caem sobre linhas e subestações quase todo dia e, se o padrão do nosso sistema fosse a da ISOLUX, nós estaríamos no escuro.
Portanto, não há muito sentido em detalhar as falhas, pois vários órgãos da imprensa já revelaram que a ISOLUX estava falida, foi adquirida por um grupo de investidores que tem a característica de assumir empresas com dificuldades financeiras e, através da Gemini Energy, adotou a concessão com uma política de contenção de custos. Tudo isso pode ser verificado por qualquer cidadão na internet.
O que o iceberg submerso não mostra é a fragmentação generalizada que tomou conta do setor elétrico brasileiro desde a reforma mercantil de 1995. Essa segmentação ocorre nos circuitos físicos e na responsabilidade dos órgãos que atuam no setor.
Além da ANEEL, que mostrou não ter um corpo técnico para fiscalizar um sistema com mais de 140 mil km de extensão, o país tem o Operador Nacional do Sistema, a Empresa de Pesquisa Energética e a Câmara de Comercialização de Energia.
Todos cuidam do mesmo sistema físico sob diferentes óticas e, consequentemente, deveriam ter uma coordenação exemplar. Esse caso é apenas uma demonstração da fragmentação de responsabilidades geradas pela estrutura adotada no Brasil. No trajeto de 1995 até agora, já ocorreram inúmeros conflitos de critérios entre essas instituições. Portanto, não é surpresa que um órgão reconheça antecipadamente um problema como o do Amapá e nenhuma medida concreta seja tomada.
No mundo físico também há essa fragmentação. Apenas como um exemplo, a subestação de Samambaia no Distrito Federal, concessão de Furnas, recebe linhas de transmissão de cinco empresas diferentes. Como as linhas se conectam dentro da estação, técnicas, equipes, tipos de aparelhos podem ser distintos, o que exige um amplo monitoramento que evite confusões. Tudo isso resulta em custos e riscos. Não é à toa que a Inglaterra, um dos ícones da mercantilização da energia, preferiu manter a sua rede de transmissão nas mãos da estatal National Grid.
Na enorme quantidade de análises que surgiram, algumas chegaram a contestar a estratégia de alimentar o Amapá com a energia do sistema interligado. Isso mostra o alto grau de desinformação sobre o nosso singular setor, que, por incrível que pareça, está ligado à geografia brasileira. Talvez muitos não tenham se dado conta que o Brasil ocupa um território com a maior diferença de latitude do planeta. Traduzindo, nós somos o país com a maior distância norte-sul e, portanto, temos climas e hidrologias diferentes.
Como temos uma matriz 70% de usinas hidráulicas, isso permite que possamos transferir o equivalente a quase toda energia de Itaipu por esse imenso território. Nosso sistema, arquitetado e construído pela Eletrobras, é uma raridade, pois os fios funcionam como vasos comunicantes entre reservatórios distantes. Nenhum país tem arquitetura semelhante.
Assim, como negar essa vantagem a um estado que, com quase 5,000 km2 de florestas, colabora com os nossos “rios voadores” que ajudam esses mesmos reservatórios? Na realidade, a interligação do Amapá na rede nada mais é do que uma obrigação de um país que conhece seu singular território e compartilha suas vantagens.
Entretanto, desde 2014 nosso sistema de reservatórios interconectados não enchem. Um dos motivos é que diversos rios têm apresentado afluências abaixo da média de longo termo. Os rios Grande, Paranapanema, Paranaíba, Tocantins, São Francisco, Paraíba do Sul apresentam dados preocupantes. Uma outra razão, um pouco mais difícil de entender é que, quando parte da oferta de energia está associada à usinas térmicas caras, até que haja a decisão de usa-las, quem gera no lugar delas são as hidráulicas. Nem a recessão econômica e a pandemia, que reduziram drasticamente o consumo de eletricidade, conseguiram recuperar o nosso estoque. Infelizmente, desde a adoção do modelo mercantil, multiplicamos a capacidade térmica por seis.
O cenário futuro é dramático, pois a ameaça de perder a Eletrobras, cuja subsidiária Eletronorte é a salvação do Amapá, pode nos deixar sem saída para outras surpresas previsíveis.
Só resta esperar que a tragédia do Amapá nos ajude a perceber o fragmentado iceberg submerso que nos ameaça.
(*) Engenheiro Eletricista M. Sc. Diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico.