A julgar pela enorme manifestação desta sexta-feira (15) em Argel e por todo o país, não terá vida fácil a proposta do octogenário presidente argelino Abdelaziz Bouteflika de uma transição sob controle palaciano, em troca de não concorrer ao quinto mandato, conferência nacional para reescrever a constituição, referendo e eleições sob comissão eleitoral independente.
Uma faixa exposta em um dos atos políticos sintetizou o que moveu tanta gente às ruas: “queríamos eleições sem Bouteflika, e nos mandam Bouteflika sem eleições”. Nas manifestações, a palavra de ordem dos protestos mudou de “Bouteflika, não haverá 5º mandato” para “Bouteflika, nem um minuto a mais”.
Na carta em que se dirigiu na segunda-feira (11) ao povo argelino, Bouteflika havia assinalado que “seu último dever” para com o país era contribuir com a “fundação de uma nova República e de um novo sistema que estará nas mãos das novas gerações”.
As manifestações também se estenderam à região berbere, a Cabília, e a Oran e Constantine, as duas maiores cidades depois da capital Argel. Na região do maior campo de gás da Argélia, Hassi Rmel, centenas de trabalhadores da estatal Sonatrach pararam para apoiar os protestos.
Na Argélia inteira, nenhum incidente grave foi relatado, segundo as agências de notícia. Os manifestantes voltaram a aplaudir os policiais, como tem ocorrido nas mobilizações anteriores. ‘Silmiya’ (‘Pacífica’) é a conclamação que todos fazem e que tem sido acatada.
O clima é festivo, muitas famílias, inclusive crianças, com o ato engrossando após as orações de sexta-feira nas mesquitas. Muitas bandeiras argelinas e são vistas também estandartes palestinos. Presença também das torcidas dos dois maiores times de futebol do país, que deram início aos protestos nos estádios, que se desdobraram nas convocações pelas redes sociais.
Uma impressionante participação da juventude, que escracha a clã palaciana, apelidada irreverentemente de ‘el issaba’ (a gangue). “Hei oh, quando tivermos demitido a gangue, vamos ficar bem”, é um dos cânticos preferidos dos estudantes [em árabe, isso rima]. Grandes cartazes em formato de carta dirigida a Bouteflika eram exibidos. “Você está doente e queremos visitá-lo e nos tranquilizar”, conforme a irônica mensagem.
Como nos atos anteriores, a presença de personalidades da luta de independência veneradas pela população se repete, revelando a amplitude da rejeição do atual estado de coisas. Desta vez, Drifa Ben M’hidi, irmã de Larbi Ben M’hidi, herói da guerra da Argélia, torturado e executado sem julgamento pelo exército francês durante a batalha de Argel, em 1957.
A multidão não poupou o presidente francês Emmanuel Macron, que após o discurso de Bouteflika disse esperar uma “transição de duração razoável”. “Macron, cuide dos seus coletes amarelos, isso é o suficiente para você”, caçoou uma faixa.
Na véspera, o novo primeiro-ministro Noureddine Bedoui – que substituiu o detestado Ahmed Ouyahia – e o veterano diplomata Ramtane Lamamra, agora seu vice, buscaram em vão aplacar as desconfianças e anunciaram que estão em andamento as consultas para a formação do governo da transição e da conferência de convergência nacional.
Disse ainda que “se os membros da oposição e da sociedade civil desejarem estar presentes no governo, serão bem-vindos”, após salientar querer “novos rostos, mulheres e jovens neste novo executivo”.
Indagado o que o governo faria se os manifestantes não se convencessem das suas propostas de transição, o veterano Lamamra asseverou que “vamos usar todos os canais de comunicação para convencê-los”.
Na manifestação, esse esforço foi ridicularizado. “Você finge que nos entende, nós fingimos ouvi-lo”, disseram manifestantes em frente aos Correios.
Sob o colapso do preço do petróleo, em que está baseada a economia argelina e do qual o orçamento público depende em 60%, agravou-se o desemprego entre os jovens, que ultrapassa os 28% em um país em que 54% da população tem até 30 anos.
Em cinco anos, a receita do petróleo caiu quase pela metade, para US$ 37,4 bilhões em 2017. Ao que se somam as denúncias de corrupção envolvendo empreiteiros e o irmão do presidente, Said, que é visto como quem efetivamente exerce o poder em decorrência do precário estado de saúde de Bouteflika.
Ainda, o pequeno crescimento da economia, que ficou em 2,3% no ano passado e em 1,4% no ano anterior, acrescido do arrocho sob instruções do FMI para a “consolidação fiscal”.
Há sete anos, Bouteflika sofreu um derrame e desde então não fala em público. Mesmo assim se reelegeu para o quarto mandato sem ir a um comício, devido ao seu papel na reconciliação nacional após a ‘década negra’ – a luta contra a insurgência extremista islâmica que queria instaurar uma teocracia, em que morreram 150 mil pessoas.
Ele também era considerado uma das principais figuras da Frente de Libertação Nacional (FLN), o partido que encabeçou a conquista da independência, apesar da tortura generalizada e do massacre de 1,5 milhão de patriotas pelas tropas francesas.
Segundo análise da Reuters, no período anterior, Bouteflika evitou que as revoltas da chamada Primavera Árabe chegassem à Argélia “gastando o dinheiro do petróleo com a população, distribuindo empréstimos a juros baixos e moradia”.
Assim, as questões de fundo da crise são a incapacidade da liderança da FLN de romper com o rentismo do petróleo – e industrializar o país – e sua dificuldade em lidar com a troca de geração. A ponto de o regime precisar de um ancião doente de 82 anos para se manter. Um oposicionista cinicamente disse que é hora de ajudar “nossos anciãos a descansarem”.
Importantes setores das bases da FLN se posicionaram pelas mudanças e contra a praga da corrupção. Como a Organização Nacional dos Mujahideen, que congrega os veteranos da guerra de independência e exige o fim “do conluio entre as partes influentes no poder e empresários corruptos”.
Parlamentares deixaram o partido e ex-ministros têm vindo a público dizer que basta. As mudanças também vêm sendo reivindicadas por juízes, advogados, clérigos e jornalistas. Setores da central sindical UGTA se incorporaram à greve geral que ajudou a enterrar o quinto mandato.
A urgência de evitar uma fratura na maior nação africana já fez o vice-ministro da Defesa e chefe do Estado Maior, Ahmed Gaid Salah – chamado pelo ‘Jeune Afrique’ de o sabre que sustenta Bouteflika -, mudar de foco, passando a salientar que o exército nacional popular e as mobilizações “tinham a mesma visão de futuro” para o país e que “os filhos da Argélia exibem hoje um patriotismo sincero”.