
No mundo inteiro, explode a indignação diante das imagens de crianças esqueléticas em Gaza e da fome que mata em massa
Segundo o Ministério de Saúde palestino, 54 palestinos morreram de desnutrição extrema em uma semana em Gaza, 24 deles nas últimas 48 horas, a grande maioria, crianças.
O Programa Mundial de Alimentação da ONU advertiu que uma em cada três crianças está desnutrida. Conforme a Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC), em maio, cerca de meio milhão de pessoas em Gaza enfrentavam uma fome catastrófica (IPC Fase 5).
Nenhuma surpresa aí: depois de dois meses de zero caminhões com ajuda desde março, Israel passou a permitir a entrada a conta-gotas, 28 por dia em média – quando antes eram 500 por dia. Ou seja, 5% da comida necessária, enquanto os pais e irmãos dessas crianças esquálidas, morrem a tiros de tanque em matadouros disfarçados de centros de distribuição de ajuda, sob o bloqueio dos fascistas israelenses à entrada de 6.000 caminhões com comida da agência da ONU para os refugiados palestinos.

Não é mais possível ignorar que o genocídio sob bombas perpetrado por Israel se degenerou para a matança pela fome, a ponto de grandes jornais das ex-potências coloniais, como o britânico The Guardian colocar na manchete ‘Já enfrentamos fome antes, mas nunca assim’: crianças esqueléticas enchem enfermarias de hospitais enquanto a fome toma conta de Gaza. Ou o New York Times: “Fome severa toma conta de Gaza, onde as pessoas estão morrendo por inanição”.
A fome em Gaza bate em todas as portas como um “show de horrores”, repudiou o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, que denunciou ainda que ao sistema de ajuda da ONU “estão sendo negadas as condições para funcionar. Negado o espaço para entregar. Negada a segurança para salvar vidas”.

A agência da ONU para os refugiados palestinos (UNRWA) reiterou que tem 6.000 caminhões e comida com capacidade para atender três meses, e que só não entra em Gaza porque Israel não permite.
Mais de 100 entidades humanitárias, entre elas Médicos Sem Fronteiras, Oxfam Internacional e Anistia Internacional, exigiram que Israel liberasse imediatamente suprimentos para deter a fome, denunciando que o cerco total de Israel a Gaza criou “caos, fome e morte”.
Uma fome fabricada: “Nos arredores de Gaza, em armazéns – e até mesmo dentro da própria Gaza – toneladas de alimentos, água potável, suprimentos médicos, itens de abrigo e combustível permanecem intocados, com organizações humanitárias impedidas de acessá-los ou entregá-los”.
É “fome em massa e provocada pelo homem”, pelo bloqueio de Israel, manifestou-se a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao condenar a matança.
“INACEITÁVEL”
No início da semana, França, Canadá, Itália, Bélgica, Irlanda, Espanha, Japão, Austrália e mais 18 países se pronunciaram tachando de “inaceitável” a recusa de Israel em fornecer assistência humanitária essencial à população civil, condenando os mais de 1.000 mortos nos centros de distribuição instalados por Israel, e clamando por um “cessar-fogo imediato, incondicional e permanente”.

O vice-primeiro-ministro irlandês, Simon Harris, descreveu a fome em massa em Gaza como “uma afronta à nossa Humanidade coletiva”. “Pessoas estão morrendo todos os dias por falta de alimentos e remédios. As crianças estão morrendo de fome diante de nossos olhos. Centenas foram mortos enquanto tentavam coletar a pouca comida disponível”.
Nesta sexta-feira (25), o assim chamado E3 (França, Reino Unido e Alemanha), diante da repercussão no mundo inteiro da morte por fome de crianças em Gaza, emitiu um comunicado, após telefonema entre o presidente Macron e os primeiros-ministros Starmer e Merz, pedindo que Israel suspenda imediatamente todas as restrições à entrada de ajuda e permita que agências da ONU e organizações humanitárias operem de forma segura e eficaz em Gaza.
Na véspera, em um importante deslocamento, Macron anunciou que a França promete reconhecer o Estado da Palestina na Assembleia Geral da ONU, em setembro.
Tentando driblar os protestos, o governo de Israel anunciou que iria voltar a permitir o lançamento de pacotes de comida por via aérea, o que já foi feito em momento anterior, um modo pouco efetivo, ainda mais sob uma situação tão desesperadora e quando há alternativas comprovadas.
O primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, pediu que “todos os esforços sejam feitos” para acabar com o sofrimento e a fome do povo de Gaza, e descreveu a situação como uma “catástrofe humanitária”.
No Reino Unido, um terço dos parlamentares pediu a Starmer que acompanhe Macron no reconhecimento da Palestina na ONU, o que na Europa já é apoiado também pela Irlanda, Espanha e Noruega.
Na semana passada, conferência em Bogotá com 30 países, organizada conjuntamente pela Colômbia e África do Sul, à qual o Brasil compareceu, aprovou carta pelo cessar-fogo, pela entrada imediata de comida em Gaza e pela paz com a Solução dos Dois Estados.
“CADÁVERES AMBULANTES”
A fome está tão disseminada que esta semana a UNRWA informou que os trabalhadores humanitários estão tão famintos quanto a população a quem tem de prestar assistência.
O comissário-geral da UNRWA, Philippe Lazzarini, disse que seus trabalhadores estão desmaiando de fome e que as pessoas em Gaza são “são cadáveres ambulantes’: um colega em Gaza me disse esta manhã”.
“Os profissionais de saúde da linha de frente da UNRWA estão sobrevivendo com uma pequena refeição por dia, muitas vezes apenas lentilhas, se é que sobrevivem. Eles estão cada vez mais desmaiando de fome durante o trabalho.”
A agência de notícias France Presse solicitou a Israel autorização de saída de seus jornalistas palestinos e famílias, que já não conseguiam fazer seu trabalho de tanta fome que passam.
Jornais destacados fizeram comunicato conjunto exigindo de Israel que permita a entrada adequada de alimento na Faixa: “Estamos desesperadamente preocupados por nossos jornalistas em Gaza, que estão, cada vez mais, incapaze de se alimentarem e a suas famílias”, diz a declaração divulgada por Associated Press, Agence France-Presse, Reuters e BBC.

Desde o campo de refugiados de Jabalia, o Middle East Eye relatou o desabafo de Basem Munir al-Hinnawi, de 32 anos, de que no mês passado ele e sua família só puderam comer pão “uma vez a cada quatro ou cinco dias”. Ele é o único provedor de duas famílias desde que seu pai foi morto no início da guerra.
“Ultimamente, tenho sofrido de fadiga extrema e não consigo me mover facilmente. Estou constantemente tonto e severamente emaciado. Desde o início da guerra, perdi 39 quilos. Todos os meus irmãos perderam entre 15 e 20 quilos”, acrescentou.
“A cada poucos dias, temos que levar minha irmã ao hospital depois que ela desmaia devido à desnutrição, enquanto minha esposa, que está amamentando, sofre de fadiga ainda mais extrema, tontura e fraqueza. Ela não consegue mais administrar nenhum trabalho doméstico simples.
“Fui aos pontos de distribuição de ajuda cinco vezes e voltei de mãos vazias. Fui exposto a um perigo extremo, incluindo tiros de tanques e quadricópteros”, lembrou.
“Nós, adultos, às vezes podemos suportar essa fome. Mas como uma criança pequena pode entender?” Hinnawi acrescentou. “Como eles poderiam entender que não somos nós, seus pais, que não queremos que eles comam?”
NÃO SE PODE MATAR DE FOME POR “ACIDENTE”
Ao Guardian, Alex de Waal, diretor executivo da World Peace Foundation da Tufts University e autor de Mass Starvation: the History and Future of Famine, disse que, por controlar as fronteiras terrestres e marítimas de Gaza, Israel tem supervisão total da quantidade de alimentos que entram no território, e as informações detalhadas da ONU sobre a desnutrição entre os palestinos significam que seus líderes não podem dizer que a fome é um resultado imprevisto.
“Você não pode matar ninguém de fome por acidente, você pode atirar em alguém por acidente, mas … ao infligir fome, [você] tem 60 ou 80 dias em que [você] pode remediar o erro”, disse ele.
“Obviamente, matar intencionalmente as pessoas de fome é genocida, e a fome também é usada para quebrar a sociedade. A fome é o meio e a fome é o fim”, disse Eyal Weizman, da Forensic Architecture.
De Waal lembrou que foi Raphael Lemkin, sobrevivente do Holocausto, que cunhou a palavra genocídio e fez campanha para que ela fosse reconhecida como crime no direito internacional.
Omer Bartov, professor de estudos do holocausto e genocídio na Brown University, enfatizou que se trata de um crime de guerra. “Há agora uma tentativa, como diz a resolução do genocídio de 1948, de infligir deliberadamente aos palestinos condições de vida calculadas para provocar a destruição física no todo ou em parte – esta é a seção três da convenção do genocídio”, disse Bartov à Al Jazeera.
“Então, claramente, isso é parte de uma tentativa de tornar a vida impossível para os palestinos, seja para forçá-los a sair ou simplesmente para vê-los morrer onde estão”. Ele lembrou como durante o cerco alemão a Leningrado (hoje, São Petersburgo), cerca de um milhão de pessoas morreram, principalmente de fome. E por não ser nova, a fome “foi incluída na definição de genocídio em 1948 – é um crime de guerra, é um crime contra a humanidade e também faz parte da definição de genocídio”. E as fotos das crianças emaciadas lembram cada vez mais a dos judeus famintos localizados em Auschwitz quando o campo de concentração nazista foi liberado pelas forças soviéticas.