“O neoliberal não tem alma, não tem corpo, não tem essência de sociedade, enquanto que nós, em nosso modelo, incorporamos valores tradicionais de nossa nação, com destaque para a solidariedade, outro aspecto do nosso programa é o de resolver os problemas da comunidade, não de um grupo, não apenas de alguns”, afirmou o presidente boliviano em encontro com economistas brasileiros.
A reportagem sobre os encontros do presidente boliviano na cidade de São Paulo, para o jornal Hora do Povo, é de Nathaniel Braia
“O Estado é tudo para nós. É planificador, banqueiro, empresário, investidor. É tudo que seja necessário, no nosso caso, para tirar a Bolívia da pobreza. O Estado tem que fazer tudo, porque é o único que está interessado em desenvolver nosso país. O mercado, não”, disse o presidente boliviano, Luis Arce, ao destacar diferenças essenciais entre o modelo neoliberal e o modelo econômico vigente em seu governo e no de Evo Morales, de quem foi ministro da Economia.
Arce proferiu uma palestra, na sede da organização Mídia Ninja, no dia 5, a convite da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com apoio do Movimento dos Economistas pela Democracia e Contra a Barbárie.
A apresentação de Arce acerca do “Modelo Económico Social Comunitário Produtivo”, que permitiu que o país alcançasse o maior crescimento da região por anos consecutivos, foi seguida de um debate com a participação de economistas brasileiros, que foram unânimes em destacar aspectos positivos do modelo e reconhecer os resultados de sua aplicação para os bolivianos. Os economistas também defenderam o ingresso da Bolívia no Mercosul, já aprovado pelos parlamentos dos demais membros e aguardando ainda o posicionamento do Congresso brasileiro.
No encontro pela manhã, com o presidente Lula, o ex-ministro do Exterior, Celso Amorim, também defendeu a entrada da Bolívia no Mercosul e acrescentou: “Evidentemente que o Congresso é soberano, mas não tenho a menor dúvida de que [Lula, uma vez eleito] fará esse esforço. É muito importante para a Bolívia e importante para nós, porque a Bolívia no Mercosul também nos facilita o contato com todo o conjunto da Comunidade Andina, do qual também é membro”.
Entre os debatedores, Paulo Nogueira Batista, titular da cátedra Celso Furtado da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Luis Carlos Bresser Pereira, professor e ex-ministro; Antonio Corrêa de Lacerda, presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e professor da PUC-SP; Samuel Pinheiro Guimarães, embaixador e ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, no governo Lula.
Antes de visitar o Brasil, Arce renovou Plano Estratégico Bicentenário, que estabelece metas econômicas para os nove departamentos (estados) do país até 2025, quando completam 200 anos da sua independência.
“Planejamos atender um conjunto de necessidades da população boliviana, implementando obras de grande impacto socioeconômico, como a construção de rodovias, siderúrgicas, estabelecimentos de saúde, centros tecnológicos e obras relacionadas aos 200 anos da Bolívia”, disse o chefe de Estado.
Entre as metas bolivianas para 2025 está a de zerar a pobreza extrema que, ao final de 2021, era de 11,1% e que, em 2005, antes do início da aplicação do novo modelo, estava em 38,1%, enquanto a pobreza (extrema e moderada) alcança ainda 36,3%; acabar com a fome e o trabalho infantil; e garantir acesso à água potável, energia elétrica e sistemas de telecomunicação a toda a população.
O plano possui 13 pilares: erradicação da pobreza extrema; universalização dos serviços básicos; saúde, educação e esporte para a formação integral; soberania científica e tecnológica; soberania sobre os recursos naturais e comercialização em equilíbrio com a Mãe Terra; soberania alimentar; Integração complementar entre os povos; transparência na gestão pública; soberania comunitária financeira sem servilismo ao capital financeiro; direito ao lazer; reencontro com a alegria, prosperidade e o mar.
“Vamos chegar ao bicentenário com uma Bolívia estável, produtiva e soberana com crescimento e justiça social”, disse a ministra da Presidência, María Nela Prada.
Também presente ao debate, o ex-ministro de Ciência e Tecnologia do Brasil, Clelio Campolina Diniz acredita que a Bolívia está “madura” para pensar em projetos de integração que abranjam economia, meio ambiente, segurança, tecnologia e educação. Em sua fala, alertou da necessidade da Bolívia de contar com a integração produtiva com o conjunto das nações da América Latina: “Para industrializar um único país, ainda mais em economias de pequena extensão territorial, você tem um problema de escala. E o ponto de partida para a integração é que haja solidariedade. Os grandes não podem explorar os pequenos. Estamos vivendo o declínio do ocidente industrializado e a ascensão do eixo asiático e tudo isto mostra a urgência de pensarmos num plano de integração sul-americana”, defende o ex-reitor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Representando a organização Engenharia pela Democracia, o engenheiro Paulo Massoca saudou o sucesso do modelo implementado pelos governos de Evo e de Arce.
Após a palestra, o presidente Arce foi conversar com integrantes da comunidade boliviana no Brasil. O encontro com centenas de bolivianos se deu na sede da CUT, com a presença de Sergio Nobre, presidente da central sindical. Ao final de seu pronunciamento aos bolivianos, no qual também destacou os avanços econômicos e sociais obtidos pelo país, afirmou que “a Bolívia está pronta para receber de braços abertos aqueles dentre vocês que queiram retornar a sua pátria. São muito bem-vindos”.
N.B.
Seguem os principais trechos da palestra de Luis Arce, das intervenções dos economistas presentes e da conversa de Arce com seus conterrâneos residentes no Brasil:
Apresentamos o “Modelo Econômico Social Comunitário Produtivo”, como alternativa ao velho modelo neoliberal – aplicado até o ano de 2005.
De janeiro de 2006 vivemos este novo modelo.
O neoliberal não tem alma, não tem corpo, não tem essência de nação, enquanto que nós, em nosso modelo, incorporamos valores tradicionais de nossa sociedade, com destaque para a solidariedade. Outro aspecto do nosso programa é o de resolver os problemas da comunidade, não de um grupo, não apenas de alguns.
É produtivo porque sentimos essa necessidade. Enquanto o liberalismo, que se baseia centralmente no livre comércio e havia posto valores na cabeça das pessoas de que com o comércio bastava e sobrava. Então as pessoas se dedicavam a comerciar e ninguém se dedicava a produzir e sabemos que a base de uma sociedade está na produção. E, portanto, nós colocamos a ênfase também no produtivo.
Nosso modelo também parte de um diagnóstico da crise do sistema capitalista.
Enfrenta oito crises: a crise climática, a crise energética, a crise alimentar, a crise hídrica, as crises de política macroeconômica que, como vemos, o neoliberalismo não dava resposta aos problemas sócio-econômicos de nossos países, a crise de instituições como o FMI e o Banco Mundial e a crise sanitária que vivemos há pouco e parece que lamentavelmente não será a única que vamos enfrentar
São crises diversas, mas que vão se retroalimentando umas a outras: a crise hídrica leva à redução da produção de alimentos no planeta, do mesmo modo, a crise energética afeta a produção de alimentos. Tanto assim que a FAO, no informe de 2005, apontava que a produção de alimentos tem que se elevar em 40% até o ano de 2025 ou teremos uma fome generalizada no planeta.
DEVASTAÇÃO NEOLIBERAL
O neoliberal é o modelo do livre mercado – o mercado regula tudo, o mercado equilibra tudo, enquanto que, para o novo modelo, é a presença ativa do Estado que é a única solução para se contrapor aos efeitos negativos desse mercado.
Ainda no mercado, o que há é o jogo entre oferta e demanda que somente decidem, como preconiza a Escola de Chicago, que na realidade não resolveram nunca os problemas. Ao final de contas, até no modelo neoliberal, sempre o Estado foi chamado para resolver o que o mercado havia destruído.
O ESTADO PRODUZ A RECUPERAÇÃO ECONÔMICA
Nós somos o melhor exemplo a demonstrar que quando o Estado intervém os resultados na economia são melhores.
É o Estado que é capaz de promover a economia de um país.
O papel do Estado não deve ser o de observado e gendarme, como ocorre no modelo neoliberal.
No nosso caso o Estado é planificador, é o banco, é empresário, é investidor. É tudo o que se faça necessário para tirar a Bolívia da pobreza.
Tudo cabe ao Estado fazer, porque é o único que está interessado em desenvolver a nós, ao nosso país.
NO ‘LIVRE MERCADO’ QUEM MANDA SÃO OS BANCOS, AS TRANSNACIONAIS
O mercado não, porque o mercado não é uma coisa abstrata, é em essência fruto de uma interação entre dois agentes o que oferta e o que demanda, onde há um polo dominante nessa relação, o demandante não vai pôr o preço a um produto de uma empresa, um cliente não vai impor a taxa de juros a um banco, é tudo ao contrário, é a empresa, a transnacional, a que nos impõe o preço aos produtos, é o banco o que nos põe as taxas de juro na economia de mercado
Portanto, temos aqui uma grande diferença.
E ainda, no modelo neoliberal o Estado é privatizador, é preciso vender tudo porque o Estado não sabe administrar nada e, portanto, o que melhor administra é o setor privado.
Mas não se dão conta de que na realidade quem administrou mal foram os diferentes governos que, com sua tendência política de favorecer a alguns grupos foram os que administraram mal as empresas públicas e o Estado em detrimento, evidentemente, de toda a população.
Foram eles mesmos que manejaram mal o Estado e depois culparam ao Estado de ser um mal administrador.
AO POVO O QUE É DO POVO
Nós pensamos que o Estado tem que ser um Estado que nacionalize o que é do povo tem que pertencer ao povo de cada país.
Portanto, nós compusemos uma corrente nacionalizadora na Bolívia porque tínhamos que controlar os recursos naturais que são estatisticamente essenciais como veremos.
O modelo neoliberal é também um modelo primário-exportador. “Exportar ou morrer”, é seu jargão típico dos políticos que implantaram o modelo neoliberal em nosso país e nós dizemos o contrário: tem que ser um país assentado em um modelo industrializador e que vá em busca do fortalecimento do mercado interno.
INDUSTRIALIZAÇÃO NACIONAL
O mercado interno somos nós. Quem é mais interessado do que nós em melhorar nosso consumo, melhorar nossa qualidade de vida? Não há outro mais interessado do que nós mesmos e por isso apontamos que nosso modelo tem que haver necessariamente a participação do consumidor nacional e da industrialização.
A dependência da demanda externa que contrasta com a sustentação na demanda interna.
O “exportar ou morrer” traz a lógica neoliberal de que se deve crescer com base nas exportações, que se deve firmar acordos de livre exportação, de convênios com vários países para que possamos chegar com nossos produtos aos mercados, tudo sob a crença de que exportando íamos ter um crescimento econômico, que a chave era trabalhar para o mercado externo e não para o mercado interno.
Quando nós sabemos que o mais importante nos países somos nós, que somos o mercado interno, que somos os que demandamos e necessitamos consumir para melhorar nossa qualidade de vida, mas não, as empresas priorizam a venda externa, a exportação em lugar da demanda interna.
CONCENTRAÇÃO VERSUS DISTRIBUIÇÃO DE RENDA
Por outra parte, o modelo neoliberal tem um aspecto característico todos os países inclusive nos Estados denominados desenvolvidos que é a concentração de ingressos. Aí onde se aplicou a economia de mercado e o neoliberalismo, houve concentração de ingressos em poucas mãos abriu-se o fosso da desigualdade entre ricos e pobres que é o que acontece nos Estados Unidos acerca do que vários autores já começaram a discutir isso muito depois de havermos aplicado nosso modelo na Bolívia que esteve baseado justamente no diagnóstico que fazíamos do resultado da aplicação do modelo neoliberal.
Portanto, a antítese do modelo neoliberal, que era o que defendíamos, era a redistribuição de renda entre as pessoas. Partimos da hipótese de que um país cresce mais rapidamente quanto melhor distribuído o ingresso entre as pessoas.
E ainda, o modelo neoliberal nos dizia, veja, a melhor maneira de poder crescer é dando a iniciativa ao setor privado por isso, o neoliberalismo aponta a que o setor privado seja a vanguarda e o eixo fundamental do crescimento econômico.
Mas, ao setor privado o que motiva é o ganho, a ganância, não o serviço, nem melhorar a qualidade de vida das pessoas, portanto, nós defendemos que para nós, o que está inclusive na Constituição política do Estado, deve funcionar uma economia plural.
Isso significa que há espaço para todos, há espaço para o setor privado, há espaço para as cooperativas, há espaço para a economia comunitária, mas, sem dúvida, a vanguarda e a batuta deve estar nas mãos do Estado.
Porque o Estado é o único a quem está claro que deve crescer, que deve desenvolver para melhorar a qualidade de vida das pessoas.
Por quê?
Porque o Estado não é uma coisa abstrata. O Estado somos todos nós. Os que fazemos parte de um Estado. O Estado somos nós. E nós mesmos pensamos pois no desenvolvimento nosso como participantes desse Estado.
ESTADO É O CAMISA 10
Por isso é o Estado que tem que levar a batuta, a vanguarda, a camisa número 10 no conjunto para levar adiante o desenvolvimento, o crescimento econômico. Porque isso significa que vai batalhar pelo crescimento de todos nós.
Também havia uma dependência em nosso país, sob o modelo neoliberal, do investimento em função do endividamento externo. E isso nós temos feito mudar e vamos seguir mudando, assim é que a Bolívia investe mais como resultado de seu próprio esforço, com base no investimento com financiamento interno. Não significa que tenhamos prescindido do investimento externo, mas o fundamental é a utilização do investimento interno.
O resultado que trouxe o modelo neoliberal foi pobreza e desigualdade enquanto que o que queremos com nosso modelo é cada vez maior desenvolvimento e oportunidades para todos, mobilidade social entre nossa gente.
Outra questão que se colocava como objetivo básico do modelo neoliberal era controlar a inflação. Nós acreditamos que, adicionalmente ao controle da inflação, há outros elementos que o Estado tem que priorizar como o que fomenta o crescimento econômico. Simplesmente transcendemos o objetivo neoliberal de que os bancos centrais se dediquem exclusivamente a controlar a inflação. E, como estamos vendo nos últimos anos, nem esse objetivo têm podido cumprir os bancos centrais que é o que preceitua o FMI. Veja-se o Federal Reserve, dos Estados Unidos, que não está podendo, com suas medidas tradicionais de elevar taxas de juros, controlar a inflação.
ALGO ESTÁ ERRADO, ESTA MAL NO NEOLIBERALISMO
Há algo que está mal. Há algo que não podem entender que é de que se deve fazer a política econômica em seu conjunto e não apenas controlar a inflação. Mas sim dedicar-se à distribuição da renda, ao crescimento econômico, enfim a todas estas outras variáveis.
Em nosso país o neoliberalismo também preconizava uma dependência dos organismos internacionais. As políticas as desenhava Washington, trazia o modelo para que os governos de plantão aplicassem. Claramente, assim funcionava o modelo neoliberal em nosso país.
Nós recuperamos a política fiscal, a política monetária desdolarizamos o país, e pusemos em marcha uma soberania na política econômica que é justamente a que nos tem possibilitado estar em melhores condições.
SEM FMI
Estamos em mehores condições porque a Bolívia desde 2006 não tem um único acordo com o FMI.
No ano de 2020 com o governo de fato [que assumiu depois do golpe] se tentou assumir um programa de créditos com o Fundo Monetário Internacional, que nós detivemos assim que ingressamos ao governo. Porque nós entendemos que a melhor maneira de se fazer política econômica é a política monetária e econômica soberana. Sem submissão a nenhum organismo internacional.
Antes de nosso governo, com a economia dolarizada não havia como termos uma política monetária. E na prática não havia política fiscal porque esta se dedicava simplesmente a tratar de não gerar déficit. Nós – junto com outros estudiosos – fomos revolucionando a teoria econômica e agora ter déficit fiscal não é mais um palavrão com era no período neoliberal.
Agora ter um déficit fiscal bem formulado quer dizer apontando ao investimento, ao crescimento, à saúde, enfim, uma série de investimentos que se pode e o Estado tem que fazer não é mal. Então o que fomos vendo é que se deve dominar a política fiscal para fazer política fiscal, há que tomar conta da política monetária para fazer política monetária em benefício das pessoas, em benefício da população, especialmente dos mais necessitados.
O que se colocava o modelo que nós desenvolvemos e através do qual ganhamos as eleições de 2005?
RECURSOS NATURAIS PARA OS BOLIVIANOS
Buscava diretamente que os bolivianos deixassem de entregar nossos recursos naturais e que a Bolívia se desenvolva com base no aproveitamento de nossos próprios recursos naturais.
Bolívia é um país riquíssimo em recursos naturais, mas éramos o país mais atrasado da região estando entre os mais ricos em recursos naturais.
Em segundo lugar gerar excedentes econômicos com base nestes recursos naturais, com base em que é o Estado que se apropria deste excedente econômico, não as transnacionais, não a empresa privada, que seja o Estado o que se aproprie do excedente econômico para cumprir o terceiro objetivo de nosso modelo que é o de redistribuir estes recursos entre os bolivianos.
Portanto, aqui está a chave: não é que queiramos promover um ‘capitalismo de Estado’ de acordo com a velha lógica de alguns países das décadas de 1960, 1970 que começaram a implementar este tipo de política, mas ao contrário, o Estado gera excedentes econômicos com base nestes recursos naturais, se apropria destes excedentes econômicos não para produzir um capitalismo de Estado, mas para redistribuir este ingresso entre a sociedade, entre seus setores.
Este é o papel que nós demos ao Estado boliviano.
Desde aí, portanto, com base nesta redistribuição, reduzir a desigualdade e a pobreza em nosso país, erradicar a pobreza e, definitivamente, apontar na direção de termos um país cada vez mais igualitário.
ESTADO INDUSTRIALIZADOR
Nesta distribuição visamos ainda a consolidação de uma Bolívia industrializada. Uma mudança em termos de modelo para tornar o Estado em industrializador do nosso país.
Vamos então ver se tivemos ou não sucesso nestes objetivos.
Em 2019, o modelo neoliberal retorna através de um golpe de Estado. E isto nos trouxe um retrocesso: Houve paralisação do investimento público, um freio às operações das empresas públicas, tudo que estávamos, em resumo, fazendo parar e retroceder.
Em um ano de aplicação do modelo neoliberal em nosso país, sentimos um retrocesso vertiginoso em todos os indicadores nos quais tínhamos avançado até o ano de 2019, com o governo do companheiro Evo.
Portanto, aqui é muito importante anotar que, nesse interim, o retorno do modelo neoliberal mostrou um dos mais negativos resultados para toda a sociedade e o que é pior, no momento em que se enfrentava a pandemia.
Aí se constatou não somente atos de corrupção, mas um descuido com a saúde pública. Não se produziram as ações adequadas, e nós tivemos que intervir após o povo boliviano nos dar mais de 55% de apoio no primeiro turno para que pudéssemos mudar a política de saúde:
Passamos a realizar o diagnóstico massivo com testes gratuitos, início à ampla vacinação gratuita e a coordenação com os governos locais para atender às pessoas que haviam contraído a Covid-19.
Isso nos custou 524 milhões de dólares na primeira fase. Tínhamos que resolver o problema da saúde porque, para recuperar a economia, para recuperar tudo que havíamos perdido, o primeiro a fazer era recuperar a confiança da população na saúde.
Naquele momento, o povo boliviano estava se sentido órfão porque não havia um Estado que o protegesse. Que aplicasse uma política de saúde e o que nós fizemos foi justamente proteger as pessoas.
SAÚDE PÚBLICA PARA ATIVAR A ECONOMIA
Adquirir medicamentos e testes antígenos para detectar quem estava doente e lhes conduzir à medicação adequada, junto com a vacinação gratuita em todo o país. E foi isso que nos permitiu recuperar a confiança da população em seu governo que, agora, lhe dá saúde, agora lhe dá a condição para continuar ativando a economia, porque sem a saúde é impossível poder reativar uma economia.
Tomamos várias medidas de reconstrução da economia. Em primeira instância o que fizemos foi reativar a demanda interna. Uma vez que o nosso modelo econômico se baseia fundamentalmente na demanda interna, tínhamos que reativá-la. Estabelecemos o bônus contra a fome desde o princípio da ativação. Assumimos em novembro e já em dezembro estávamos distribuindo o bônus contra a fome a toda a população de escassos recursos em nosso país, distribuímos o bônus, pois a pandemia o que fez foi condenar as pessoas que não tinham um trabalho fixo, muita gente se viu atirada às ruas na época da pandemia e há ainda uma situação em toda a nossa América Latina, de muita gente que sobrevive de seu trabalho a cada dia.
A situação foi de que os bolivianos se desfizeram de toda a poupança que haviam podido reunir, tomaram todo o dinheiro emprestado que puderam. Começamos a tomar outras medidas redistributivas, como por exemplo o imposto sobre as grandes fortunas. Para gerar políticas de reinvestimento e de redistribuição.
Também começamos, desde o princípio de nosso governo, a devolver os impostos às pessoas de renda mais baixa. Não tiramos a possibilidade de pagar, porque é necessária uma consciência tributária, e o sistema tributário se torna progressivo.
SUBSTITUIÇÃO DE IMPORTAÇÕES
Também retomamos a política de incentivo à produção e de substituição de importações, política de moradias de interesse social, o crédito produtivo, em suma, recuperamos nossa política soberana em prol da construção de um país com desenvolvimento produtivo.
Fizemos isso com os créditos de fomento. Estabelecemos linhas de crédito exclusivamente para mulheres, que em nosso país são boas pagadoras, trabalham, se esforçam.
Incentivamos uma série de setores que passo a passo nos trazem resultados. Enfim, são várias medidas que tomamos
Vamos nos deter nos resultados: no período de 1985 a 2005, no período neoliberal, a Bolívia crescia em uma média de 3%; de 2006 a 2019, com a vigência de nosso modelo já crescíamos a uma razão de 4,7% em média. Evidentemente o que nos baixa a média é o que acontece em 2019. E no ano passado já voltamos a crescer 6,11%. Exatamente no ano de 2020, tivemos um rebaixamento de mais de 8,5%.
Todos nós enfrentamos a pandemia, mas a Bolívia foi o que teve a maior queda em 2020.
Vejam que em 2014 e 2015 a Bolívia foi o país que mais cresceu em toda a nossa região. Assim também em 2018, tivemos o maior crescimento. Nos demais anos também estivemos entre os maiores crescimentos da região. Outro dado importante, é que na retomada, a maior parte se atribui à demanda interna que é o consumo gerado pelo investimento que permitiu um crescimento generalizado de 6,66% e que foi ligeiramente rebaixado pelos gastos com a demanda externa e assim ficamos em 6,11%.
Assim é o que vemos: durante o ano de governo neoliberal quando se dizia que a demanda externa é a geradora de crescimento, isso não ocorre, ao contrário, quando nos baseamos na demanda interna, o país volta a crescer.
Setores da eonomia conectados ao consumo interno experimentaram recuperação: restaurantes, hotéis, transporte aéreo.
Vimos também que o setor privado também se beneficiou deste crescimento: tínhamos 4.565 empresas privadas em março de 2021 e em março deste ano chegamos a 5.078. Isso mostra que a maior participação do Estado na economia redunda em maior crescimento do setor privado com geração de emprego no setor privado. Temos aí um Estado que estimula o crescimento do setor privado.
O que dizemos é que sob a batuta do Estado acaba crescendo o setor privado, as cooperativas, cresce também a economia comunitária.
Há uma locomotiva que começa a ativar todos demais vagões da economia e ela é o Estado.
Também se incrementou o produto interno bruto per capita que hoje está algo acima de 300 dólares. E mais, temos incrementado permanentemente o ingresso per capita.
INFLAÇÃO SOB CONTROLE
Outro dado importante é que fomos capazes de gerar estes fatores de crescimento sem gerar uma situação inflacionária maior que outros países neste período: Temos aí a Venezuela, a Argentina, como os países que estão enfrentando as mais altas taxas de inflação, e Bolívia é o país da região com a menor taxa. Sabemos que a inflação é uma preocupação especialmente para os mais pobres, em um processo inflacionário os que mais sofrem são as pessoas mais necessitadas que não têm como se defender contra a inflação enquanto que os ricos, têm. Por isso mantivemos uma estabilidade de preços em nosso país, mesmo com esta crise em nível mundial.
No que se considera a poupança, sobem tanto o montante de poupança como também o número de contas. Ou seja, antes muito pouca gente economizava dinheiro, porque não havia dinheiro na mão das pessoas. Também cai vertiginosamente a inadimplência. A gente tende cada vez mais a pagar por seus créditos, e isso é muito importante, porque em muitos países o primeiro sintoma da crise que atravessa é que as pessoas não têm como pagar seus créditos. O nível baixo de inadimplência é um dos primeiros indicadores da saúde da economia e em nosso país as pessoas cada vez mais pagam por seus créditos que passam a circular de forma previsível, controlada.
Fizemos crescer o crédito destinado à moradia de interesse social a taxas em torno de 5% a 6% ao ano e também o crédito para atividades produtivas.
No processo de desdolarização, partimos de uma economia dolarizada para uma com 99% dos créditos em moeda nacional. Em 2002, por exemplo os créditos em moeda nacional eram de 2,2% apenas.
DÉFICIT FISCAL SAUDÁVEL
Quanto ao déficit fiscal, ao contrário do que se pensa no modelo neoliberal, se o déficit é gerado principalmente para permitir o investimento público, este déficit é saudável.
Isso se manifesta também na composição geral do investimento, enquanto 2/3 do investimento é aplicação do setor público nacional, só 1/3 vem do setor externo. Isso mostra que o crescimento depende fundamentalmente do setor interno ao invés de depender de financiamento externo.
Também tivemos um crescimento constante do salário mínimo. O SM cresceu todos os anos. Crescimento em termos reais, em termos de poder aquisitivo dos salários.
Outro resultado é o rebaixamento da taxa de desemprego. Em 2005 tínhamos 8,1% de desemprego, e em 2019, já havíamos chegado a 4,8%. No ano passado havíamos passado a 5% e agora já estamos a 4,6%
REDUÇÃO DA POBREZA
Somos também o país que mais reduziu a pobreza extrema entre o período de 2005 e 2021. Foi reduzida em 27 pontos percentuais a pobreza, em que pese o ano neoliberal de 2020, quando teve incremento. No mesmo período o Peru apresentou redução de 11,7; Uruguai 11,1; Chile 8,3 e Brasil 5,8%.
É um modelo que traz resultados econômicos, mas também traz resultados sociais.
Isso também se manifesta na redução da desigualdade medida pelo índice Gini.
Quando assumiu o companheiro Evo era de 0,61. Junto com Brasil, éramos os países onde mais desigual era a distribuição do ingresso. Aplicamos nosso modelo e hoje temos o índice em 0,42. Comparativamente, a Bolivia reduziu em 0,19 o seu índice enquanto que o Paraguai o fez em 0,08; o Brasil e o Peru em 0,07; Equador em 0,06; Uruguai em 0,05, Chile em 0,02 e Colombia 0.
Isso significou uma mudança na composição social da apropriação da renda:
Se em 2005 tínhamos 4,2% da população nos estratos mais altos (385 mil bolivianos), 35,2% nos estratos médios e 60,6% nas mais baixas rendas; em 2021 eram 3,6% (422 mil) nos mais elevados, 60,1% (7,1 milhões) nos médios e 36,3% (4,3 milhões) nos mais baixos.
E ainda, enquanto a diferença entre os ingressos entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres era de 128 vezes, agora é de 20 vezes e entendemos que essa diferença precisa seguir se reduzindo.
No estudo do Banco Mundial com relação ao período de 2006 a 2011, se aponta os países que mais elevaram os ingressos dos 40% mais pobres de sua população. E o país que mais aumentou o ingresso entre os mais pobres de sua população foi a Bolívia.
EXPECTATIVA DE VIDA
Essas mudanças todas se refletem na esperança de vida. Em 2005 os bolivianos nascidos tinham como expectativa de vida 64 anos. Aqui no Brasil ela era de 72 anos. Em 2021 a expectativa de vida é de 74 anos, enquanto que no Brasil passou a 77. Neste período, a Bolívia foi o país na região que mais promoveu aumento na expectativa de vida de sua população.
Ou seja, enquanto na Bolívia a diferença foi elevada em 10 anos, no Brasil essa elevação ficou em 5 anos. Isso se deu por melhora na saúde pública, melhora nos ingressos e sua redistribuição, melhora enfim na qualidade de vida dos bolivianos.
Estes são os resultados de mudanças em termos econômicos e sociais que obtivemos na Bolívia. Sabemos que os senhores atravessam um período muito importante na vida de seu país. Estou muito contente pelo convite e espero com isso abrir uma boa discussão aqui, muito obrigado.
PARTICIPAÇÃO DE ECONOMISTAS BRASILEIROS
Em seguida, Adroaldo Quintela coordenador nacional do Movimento dos Economistas pela Democracia e contra a Barbárie e Valquíria Assis, presidente do Sindicato dos Economistas de Minas Gerais e vice-presidente do Conselho Regional de Economia de M.G., apresentaram a Arce os economistas presentes ao debate. Vejamos as principais intervenções que se segruiram à exposição do presidente boliviano:
Paulo Nogueira Batista, titular da cátedra Celso Furtado da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Quero parabenizar o senhor Luis Arce pelos resultados excepcionais alcançados e que devem servir de exemplo para a América Latina e para além da América Latina, resultados muito melhores, por exemplo, do que os apresentados pelo Brasil no período de 2066 a 2019.
Exemplo disso foi o crescimento a uma taxa média de 4,7%, reduzindo o desemprego de 8,1% a 4,6% agora, como o senhor mesmo apontou, se pressões inflacionárias, com a inflação ficando em torno dos 3% previstos para esse ano. Manteve a inflação a estes níveis quando ela está crescendo em níveis mundiais.
Acho que, havendo a mudança política que todos nós almejamos, que se fortaleça a cooperação Brasil/Bolívia com o ingresso da Bolívia no Mercosul. Com isso várias medidas importantes poderão ser tomadas inclusive as trasações entre os dois países em moedas locais, evitando o uso do dólar neste comércio.
Antonio Corrêa de Lacreda, presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon) e professor da PUC-SP, enfatizou que “os resultados econômicos, sociais e ambientais alcançados são fantásticos e nos servem de inspiração e principalmente por seus conteúdos progressistas e desenvolvimentistas.
Vemos aí a aplicação de uma economia política a serviço da transformação e que busca se reposicionar diante dos desafios econômicos, geopolíticos e ambientais que se apresentam mundo afora.
A opção aqui foi pelo campo produtivo, pela reindustrialização, o que nos convida à solidificação da parceria entre nossos dois países e aponta para necessidade de integração sul-americana que se faz necessária especialmente nesse momento em que há uma mudança no campo produtivo global.
Samuel Pinheiro Guimarães, diplomata, ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos durante o governo Lula, que ressaltou o “aumento da esperança de vida na Bolívia a sintetizar o êxito do conjunto de iniciativas aqui descritas. O comprimento pelo trabalho extraordinário realizado e que nos chama a uma cooperação intensa no terreno da troca de conhecimentos e do aperfeiçoamento de nossa atividade econômica e política para a melhor possível exploração dos recursos naturais, como aqui mencionado, em benefício da industrialização de nossos países.
Os economistas foram seguidos pela apresentação da líder indígena Sonia Guajajara que destacou a importância da demarcação das terras indígenas como fator de suporte da defesa ambiental. “Não é possível uma política ambiental progressista e de proteção do meio ambiente em nossos países sem uma política de reconhecimento e proteção das formações e culturas indígenas”.
Arce respondeu às diversas intervenções ressaltando que “este é um governo voltado a atender aos anseios das organizações sociais, às aspirações dos povos indígenas de nosso país”.
“Foi com esse espírito, de valores populares agregados a um processo consciente de descolonização, que pudemos chegar aos resultados aqui apresentados.
“Já se disse que com a prata que existia no cerro de Potosí, se poderia construir uma ponte desde Potosí até a Europa, mas também, disse um autor latino-americano, se poderia construir uma ponte da Espanha a Potosí com os ossos dos que morreram trabalhando nas minas de onde se extraía esta prata.
“Essa nossa busca da descolonização se integra a mudanças globais no sentido da maior participação, de uma participação mais direta das pessoas nos destinos de suas nações”, concluiu.
ENCONTRO COM A COMUNIDADE BOLIVIANA
Assim que concluiu sua participação neste debate, o presidente Luis Arce seguiu para a sede da CUT em São Paulo onde foi recepcionado pelo presidente da entidade, Sergio Nobre e se encontrou com centenas de integrantes da comunidade boliviana no Brasil que o saudaram com aplausos e aso gritos de “Lucho! Lucho!”
Em sua conversa com os conterrâneos que aqui residem, Arce também apresentou dados do desenvolvimento econôm ico e social vividos pela Bolívia: “Estamos trabalhando para melhorar a qualidade de vida dos que vivem em nosso país. Hoje temos as taxas de inflação mais baixas da região.
“Buscamos criar mais emprego, mais oportunidades para todos com a industrialização dos nossos produtos naturais, é que estamos fazendo, por exemplo, com a industrialização do lítio.
“Apoiamos os investimentos na indústria com empréstimos a taxas de 0,5% ao ano.
“Com relação a vocês, devo esclarecer que tivemos que nos dedicar muito às condições de vida lá na Bolívia mas viemos até o encontro de vocês para dizer que a partir de agora vamos nos dedicar a melhorar os serviços em nível da nossa embaixada e do nosso consulado em São Paulo. Vamos fazer mais por vocês.
“Estive com o companheiro Lula, e juntos podemos constatar as dificuldades que não apenas vocês, mas todos estão vivendo neste momento neste país e na esperança de que as coisas comecem a melhorar a partir do próximo ano”.
Arce finalizou se comprometendo a apoiar as iniciativas culturais dos bolivianos que vivem no Brasil, contribuir na aquisição de vestimentas folclóricas e instrumentos musicais: “Vocês, onde quer que se encontrem, são os embaixadores da cultura boliviana”.
“Enfim, faremos todo o possível para melhorar a vivência dos bolivianos aqui no Brasil e aos que quiserem retornar à Bolívia digo que a nossa pátria está pronta para receber o retorno de braços abertos”, finalizou.