Agência alega falta de documentos. Presidente da União Química, Fernando de Castro Marques, disse que está sendo humilhado. Relatório publicado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA revela que o governo americano pressiona para que Brasil não compre vacina russa
Na contramão da urgência vivida pelo país, onde mais de três mil pessoas estão morrendo por dia de Covid-19, a direção da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu suspender a contagem do prazo de sete dias, determinado por lei, para autorizar o uso emergencial da vacina russa Sputnik V, que já está sendo aplicada em mais de 40 países.
Em nota, a Anvisa informou que os prazos foram suspensos porque não foram entregues “documentos considerados importantes para a análise”. Antes do novo pedido, a agência havia informado que precisava ter acesso aos dados brutos dos testes da vacina. A vacina já está sendo usada em países como México, Bolívia, Hungria, Argélia, Argentina e outros, sem que nenhum evento grave tenha sido registrado.
O pedido para o uso emergencial da Sputnik V foi feito duas vezes pela empresa brasileira União Química, parceira nacional do conceituado Instituto Gamaleya, da Rússia. A empresa brasileira garantiu a entrega imediata de 10 milhões de doses da vacina russa e garante que pode produzir mais 8 milhões de doses por mês. Os governadores de 20 Estados, diante das sabotagens de Bolsonaro às vacinas, fizeram uma compra conjunta de 37 milhões de doses da Sputnik V e aguardam apenas a aprovação da Anvisa. Até o Ministério da Saúde anunciou a compra de 10 milhões de doses da vacina russa.
O presidente da União Química, Fernando de Castro Marques, disse que não será necessário importar o princípio ativo da vacina para fabricação própria (o chamado IFA). Segundo o executivo, o reagente poderá ser fabricado na unidade da empresa em Brasília, para depois ser envasado na fábrica em Guarulhos. Em audiência no Senado, na semana passada, o representante da União Química, Miguel Giudicissi Filho, afirmou que vem solicitando o uso emergencial desde dezembro, mas que sempre são exigidos novos documentos pela Anvisa.
Miguel Filho disse no Senado que “o atraso na liberação” do uso emergencial fez com que o Brasil “perdesse” 10 milhões de doses que poderiam ter sido adquiridas até março. “Quero lembrar que tínhamos disponíveis para importação de 10 milhões de unidades para o primeiro trimestre, mas, como houve esse atraso na liberação do uso, perdemos. Ainda temos outros 10 milhões, e estamos preocupados se iremos perder”, disse Filho.
Diante da postura adotada pelo presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, o dono da União Química, Fernando Marques, disse que está sendo “humilhado”. O atual chefe da agência é contra-almirante da reserva da Marinha e foi indicado ao cargo por Bolsonaro no início do governo. “É uma loucura. Eu estive com ele na semana passada. Ele só faltou.. Fui humilhado. Parece que é um criminoso alguém que quer trazer a vacina ao Brasil, que está sendo usada pelos russos, independente, em mais de 40 países”, diz.
De acordo com a assessoria do Fundo Direto de Investimento Russo (RDIF), responsável pelo desenvolvimento do imunizante junto ao Instituto Gamaleya, o produto já obteve aval em nações das Américas, Ásia, Europa e África. Na América Latina, ela recebeu autorização para uso emergencial em cinco países: Argentina, México, Bolívia, Venezuela e Paraguai. Também deram aval para utilização do produto Rússia, Belarus, Sérvia, Argélia, Palestina, Turcomenistão, Hungria, Emirados Árabes Unidos, Irã, República da Guiné, Tunísia e Armênia.
Muitos desses registros provisórios foram dados antes mesmo da publicação científica dos resultados da fase 3 dos estudos da Sputnik V, o que ocorreu só no dia 2 de janeiro, na revista Lancet, quando muitos países já estavam usando o imunizante. Os resultados da publicação apontaram eficácia de 91,6% contra a covid-19. O imunizante oferece proteção total contra casos graves da Covid-19.
Relatório publicado pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA em 17 de janeiro, três dias antes da posse de Joe Biden, e que veio à tona no Brasil no início de março, revelam que o governo dos EUA pressionou o Brasil a rejeitar a compra da Sputnik V.
O documento é um balanço anual sobre as atividades do departamento em 2020, ainda sob o governo de Donald Trump. Na página 48, assinada pelo então secretário de Saúde Alex Azar, há um trecho que diz que os EUA usaram relações diplomáticas para dificultar as negociações de países como a Rússia, classificados como “mal-intencionados”, na comercialização dos imunizantes.
Em meados de março, o perfil oficial da Sputnik V no Twitter chamou atenção para o relatório e fez críticas à atitude americana, dizendo que os países devem trabalhar juntos “para salvar vidas.” “Os esforços para minar as vacinas são antiéticos e estão custando vidas”, diz a postagem.