“Estamos vivendo um ambiente institucional permanentemente conflagrado”, apontou o governador, que comparou o governo Bolsonaro aos fascistas do século XX
Em debate organizado pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, na sexta-feira (5), o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), fez uma radiografia do desastre provocado pelo negacionismo de Bolsonaro sobre o país e afirmou que “há uma terrível coerência entre os postulados fascistas do século XX e o neofacismo do século XXI”.
“Isso que nós estamos assistindo”, disse ele, “é a ideologia do ódio elevada à enésima potência, transformada em apologia à morte e riso diante do sofrimento alheio”. “Estamos vivendo um ambiente institucional permanentemente conflagrado”, apontou.
O governador denunciou o que ele chamou de violação da própria ideia de federação. “Os estados estão agindo como se fossemos uma confederação atuando com níveis diferentes de eficiência e de engajamento, mas em busca de saídas enquanto que a essência do regime federal, que é exatamente o cotejo das autonomias dos entes subnacionais com uma coordenação nacional, não se verifica”, disse ele. “E isso nós verificamos desde fevereiro do ano passado”, acrescentou.
“Desde aquele mês, em que pese a aprovação da lei reguladora do combate à pandemia, a lei 13.979, mas na implementação da lei, e eu posso falar como testemunha direta da história, já não havia os instrumentos de execução e de concretização das medidas necessárias no que se refere, por exemplo, à aquisição de insumos, ou seja o que nós estamos vendo em relação às vacinas, é a história anterior dos respiradores, das máscaras, das luvas e assim sucessivamente”, observou Flávio Dino.
“O que eu disse anteriormente sobre a congruência do fascismo do século XX com o que acontece agora, a maneira descuidada com que se conduz a aquisição de insumos, nós temos um outro elemento também, que salta aos olhos, que é esta resistência, esse combate do governo federal em relação às medidas sanitárias preventivas”, disse o governador. Ele disse que isso atingiu o ápice quando Bolsonaro insinuou que todos os profissionais de saúde no Brasil são suicidas. “Se o presidente da República difunde que o uso de máscara faz mal e pode levar ao suicídio, nós teríamos que concluir que todos os profissionais de Saúde são suicidas”, ironizou.
Flávio Dino avaliou que o momento porque passa o país é grave. “Vivemos um momento de agravamento, isso é óbvio, está em todos os indicadores. Não temos os instrumentos de superação, uma vez que houve o retardamento de uma série de medidas”, disse ele. “Nós tivemos que judicializar isso em meio ao Supremo. E também no que se referiu à temática dos imunizantes, em que houve uma série de decisões absurdas para esse criminoso desabastecimento, porque não é algo que podemos adjetivar apenas como um erro, foi criminoso”, destacou Flávio Dino.
Além do que Flávio chamou de atuação cooperativa horizontal, ele pontuou aspectos positivos na atuação do Superior Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, nas presidência de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Ele apontou que o país está vivendo um enfraquecimento das atuações dos Estados, pelos limites desta própria atuação, e também que a população está estressada. “Uma coisa é você fazer o isolamento com a ajuda emergencial de R$ 600, outra coisa é tentar fazer isso ou necessitar fazer isso sem auxílio emergencial”, observou.
Na opinião de Flávio Dino, o Congresso Nacional, que antes ajudava, mesmo com todas as limitações, agora já há mais dificuldades de fazer fluir uma agenda. “Basta que nós examinemos o que ocorreu em relação ao auxílio emergencial. Este texto aprovado no Senado. E esse inusitado sequestro. O auxílio emergencial virou um refém, e para o refém ser libertado, tem que pagar um resgate. Qual é o resgate? É a PEC dita emergencial, que contém uma série de anomalias e disfunções sobretudo a sua de origem, pretender colocar na Constituição uma determinada visão ideológica sobre a economia brasileira”, denunciou.
“A meu ver pretendendo, de modo prepotente, perenizar algo sujeito às contingências da vida, da política e mesmo do mercado. Vejam o desastre que foi a introdução do teto de gastos na Constituição, o único país do planeta que fez isso. Querem de novo perenizar determinadas visões macroeconômicas, de projetos econômicos para que se tenha o auxílio emergencial”, alertou.
“Para termos um auxílio emergencial tímido e limitado, no que se refere aos beneficiados e no que se refere ao valor, é preciso pagar esse resgate, que é a aceitação deste pacote de constrangimentos ao futuro de nossa nação. E evidentemente que esse auxílio emergencial é incapaz de dar conta da dramaticidade da conjuntura da pobreza e da fome que assola o nosso país, inclusive em face da inflação de alimentos que estamos vivenciando já há 12 meses”, assinalou o governador do Maranhão.
Assista ao debate
Participaram do debate, além do governador do Maranhão, Flávio Dino ; o prefeito de Araraquara, Edinho Silva ; o ex-presidente da Anvisa, Gonzalo Vecina; o professor de economia e presidente do Conselho Federal de Economia, Antonio Corrêa de Lacerda ; o médico sanitarista, Cláudio Maierovitch , também ex-presidente da Anvisa; a secretária executiva do Cosems, Aparecida Linhares Pimenta ; e a procuradora regional do Trabalho e vice-coordenadora do GT Covid-19 do Ministério Público do Trabalho, Márcia Kamei Aliaga.
Médico sanitarista e presidente do Conselho Superior da Sociologia e Política, o professor Ubiratan de Paula Santos contou que a ideia de fazer esse debate é um esforço de contribuição para uma situação grave que vivemos hoje, lembrando que mesmo quando os números diminuíram no segundo semestre do ano passado eles ainda eram altos, a pandemia nunca arrefeceu. Por isso, o debate traz pessoas que estão lidando com esse problema direto na máquina pública e outros que estudam esses temas e podem contribuir para o debate.
“O momento é de gravidade, porque o ano todo nós não temos uma coordenação nacional conforme. Temos na coordenação nacional uma pessoa que é sócia do coronavírus, que promove práticas que nos impedem de ter uma eficiência maior no controle dessa pandemia”, comentou.
O diretor-geral da instituição, Angelo Del Vecchio, no início do evento, explicou que a Sociologia e Política – Escola de Humanidades promove esse debate porque faz parte de sua tradição tocar onde a questão social é mais aguda, e hoje ela é mais aguda no caso da pandemia.
“Além de ser uma desgraça mundial, é também uma desgraça social que atinge com mais violência os pobres e os excluídos da sociedade. Isso já justificaria nossa iniciativa. Em 1933, quando nascemos, o ponto mais agudo da questão social era o do salário mínimo. A primeira pesquisa criada para cálculo da cesta básica foi realizada na escola e foi precursora do salário mínimo”, lembrou, destacando também as relações históricas entre a medicina e a sociologia brasileira.
Grande parte das pessoas ainda não entendeu que estamos diante de um vírus de transmissão aérea, destacou o médico sanitarista, ex-presidente da Anvisa, e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e da FGV-SP, Gonzalo Vecina. “Os números já são mais assustadores do que os da gripe espanhola e as pessoas não entendem que se elas não usam máscara, se transformam em difusoras diretas do vírus”, explicitou.
O médico destacou também que os erros do governo no âmbito dos ministérios da Saúde e das Relações Exteriores atrasaram consideravelmente a capacidade do Brasil em vacinar e produzir vacinas. “Temos oito milhões de vacinas entregues, isso não é nada. Essa epidemia só para com vacinas”, defendeu, lembrando que iniciativas de outros entes federativos em tentar comprar vacinas é problemática, porque só aumentariam as desigualdades sociais.
“E essa desigualdade tem marcas, quem tem dinheiro tem vacina, quem não tem dinheiro, não tem? Não tem cabimento nenhum local chegar na vacina e outros não. Temos de estruturar alguma alternativa que leve os Estados a fazer um consórcio, se for o caso, para substituir o Ministério da Saúde “, defendeu.
Prefeito da cidade de Araraquara-SP, Edinho Silva, lembrou que só existem duas formas de combater uma pandemia: vacinação em massa ou isolamento social. “Como infelizmente no Brasil não produzimos vacinas para atender toda a população, o que nos resta é o isolamento social. É isso que Araraquara foi obrigada a fazer, de forma inclusiva antecipada a algo que vários governadores e prefeitos estão adotando agora”, disse . Ele conta que o momento em que o monitoramento buscou que a variante de Manaus chegou em Araraquara buscou uma resposta rápida, tirando transporte público de circulação e fechando – inclusive supermercados – por 7 dias, para de fato restringir a circulação e o resultado é um viés de queda de casos em decorrência do percentual das positivadas”.
Edinho afirma que a omissão do Governo Federal é crime de responsabilidade. “O que vamos ver no Brasil nas próximas semanas será a maior tragédia humanitária da nossa história. As medidas que nós adotamos desde o final de janeiro em Araraquara vão se refletir na próxima semana ou talvez na outra. O drama disso tudo? Pedidos para usinas de produção de oxigênio 25 dias atrás, e a última foi entregue nesta semana. Se todas as outras cidades precisarem agora, não vai ter usina de oxigênio na prateleira”, lamentou.
Para Cláudio Maierovitch – médico sanitarista, ex-presidente da Anvisa e pesquisador da Fiocruz de Brasília – seria impossível chamar a crise brasileira de qualquer outra coisa se não um morticínio. “Vivemos um caos evitável. Somos um país que tem recurso, capacidade, conhecimento. Do ponto de vista técnico, já está mais do que pela Austrália e países asiáticos, que era possível evitar o que aconteceu”, analisou.
Segundo o pesquisador, quando falamos em cessar mortalidade e reativar economia, temos de pensar no que ainda podemos fazer, apesar do enorme prejuízo humanitário que já possui e ainda teremos devido à negligência. “Nosso governo não foi incompetente, porque foi uma escolha, ele optou por não adotar como necessária”.
O economista e presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), Antonio Corrêa de Lacerda, lembrou que é preciso deixar bem claro que existe uma falsa dicotomia entre economia e saúde. “A vida é o bem econômico mais valioso. Qualquer interpretação de que você deveria acelerar a retomada e desprezar como medidas de isolamento em prol da pandemia, é absolutamente equivocada”.
Lacerda fez um breve histórico sobre a política econômica do governo Bolsonaro até mesmo antes da pandemia, com um crescimento pouco significativo em 2019, declarando que 2020 escancarou a fragilidade das escolhas das políticas econômicas. “A pandemia escancarou a vulnerabilidade econômica brasileira, agravada com os problemas ocorridos”, destacou, lembrando dos empregos informais, da carência de moradia e da desindustrialização, que são três grandes problemas no enfrentamento à pandemia. “Não há ajuste fiscal possível com uma economia em recessão”.
Em sua intervenção, Márcia Kamei Lopez Aliaga, procuradora regional do trabalho e vice-coordenadora do GT COVID-19 do Ministério Público do Trabalho (MPT), lembrou que em março completaremos um ano da portaria do Ministério da Saúde de que a transmissão comunitária do novo coronavírus ocorria em todo o território nacional.
“O arrastamento dessa crise por um tempo tão longo nos levou a um esgotamento mental, e isso tem desdobramentos, e esse aspecto muita coisa mudou na aderência e percepção da crise”, analisou. Citando sua experiência com o MPT, Márcia destacou a necessidade de se fazer uma reflexão sobre o que já ocorreu para repensar as táticas de ação. “Nesse momento, com mais de 10 Estados que não têm como atender mais pacientes, temos de pensar nos princípios de precaução”, contou.
Já para Aparecida Linhares Pimenta – médica sanitarista e atual secretária-executiva do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo (Cosems) -, a grande questão é o papel insubstituível do Ministério da Saúde, de coordenar e formular como grandes políticas nacionais, que não existiu durante uma pandemia.
“Precisávamos de um ministério criando uma campanha agressiva, esclarecedora, cotidiana, sobre a importância do uso da máscara. Que coordenasse uma ampla campanha de testagem em massa, e isso também não aconteceu, ficou por conta dos Estados e dos municípios. E esse papel previsto na arquitetura política do Sistema Único de Saúde, à medida que não tem essa coordenação nacional, rompe um dos pilares do SUS, que começou a ser desmontado desde o impeachment contra a Dilma “, frisou.
Segundo ela, apesar do Ministério da Saúde ter acesso ao maior banco de informações sobre a Covid no país, falta equipe técnica capaz de analisar esses dados. “Nós temos de lidar com essa pandemia, numa realidade de SUS em que não existe mais Ministério da Saúde, e isso gera um impacto que a gente pode dizer sem medo de errar: é um dos grandes fatores para termos o resultado que ocorreu. O papel constitucional do Ministério não foi cumprido. E se não tivéssemos essa engenharia política tripartite do SUS, a tragédia seria muito maior “, destacou.
Com informações do site da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo