Nosso repúdio à ditadura, nossa indignação diante de seus assassinatos e torturas, não pode apagar nosso senso de justiça.
Pelo contrário, deve torná-lo mais aceso, mais vivo, mais presente.
O caso da sentença do Tribunal de Justiça de São Paulo, na ação movida pela família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino – preso e assassinado sob tortura, aos 22 anos, no Doi-Codi chefiado por Brilhante Ustra, em 1971 – é desses que demandam, mais ainda, que sejamos justos.
Então, comecemos por aquilo que não nos parece – e não é – justo: Ustra morreu em 2015; portanto, a indenização de R$ 100 mil, revindicada pela família de Luiz Eduardo por seu assassinato brutal, teria que ser paga pela família de Ustra.
Mas o que tem a família de Ustra com os crimes de Ustra?
Há muito se reconhece, no Brasil, que a família de um criminoso não pode pagar por seus crimes – mais do que já paga em sofrimento e opróbrio.
Não ignoramos que não se tratava de uma ação criminal, mas cível; nem que o objetivo da família é o reconhecimento da culpa de Ustra – e não, propriamente, o dinheiro da indenização.
Mesmo assim – ou por isso mesmo – não se pode obter um objetivo justo, usando um método injusto.
DIAS HEDIONDOS
É compreensível o sentimento da família de Luiz Eduardo – sua companheira e sua irmã.
A culpa de Ustra, tanto a respeito da tortura e assassinato de Luiz Eduardo, quanto a 46 outros assassinatos – e centenas de torturados – está mais do que estabelecida.
Como Brilhante Ustra é o herói de Bolsonaro e Mourão, vejamos o que aconteceu com Luís Eduardo Merlino:
“… foi preso na casa da mãe, em Santos, em 15 de julho de 1971. (…) Na sede do DOI-CODI/SP, na Rua Tutóia, Luiz Eduardo foi torturado por cerca de 24 horas ininterruptas e abandonado numa solitária, a chamada ‘cela forte’ ou ‘x-zero’. Apesar de se queixar de fortes dores nas pernas, fruto da longa permanência no suplício do pau-de-arara, não recebeu tratamento médico, apenas massagens acompanhadas de comentários grosseiros por parte de um enfermeiro de plantão, de traços indígenas e que respondia pelo nome ‘Boliviano’ ou ‘Índio’. A cena foi presenciada por vários presos políticos. As dores nas pernas eram, na verdade, uma grave complicação circulatória decorrente das torturas. No dia 17, Merlino foi retirado da solitária e colocado sobre uma mesa, no pátio, para receber massagem em frente às celas 2 e 3. Diversos companheiros constataram o seu estado de saúde e alguns falaram brevemente com ele, que se queixava de dormência completa nos membros inferiores. Horas mais tarde, seu estado piorou e ele foi removido às pressas para o Hospital Geral do Exército, onde morreu” (cf. SEDHPR, CEMDP, “Direito à Memória e à Verdade”, p. 169).
Sob que acusação Luiz Eduardo foi preso?
Nenhuma. O objetivo de Ustra e sequazes era localizar a companheira de Merlino.
A causa oficial da morte, segundo o documento do Doi-Codi: “ao fugir da escolta que o levava para Porto Alegre (RS) na estrada BR-116, foi atropelado e em consequência dos ferimentos faleceu”.
Evidentemente, Luiz Eduardo jamais saiu do Doi-Codi, exceto para morrer, no Hospital Geral do Exército.
Seu caixão foi entregue lacrado aos familiares.
Além disso, “a imprensa foi proibida de noticiar a morte, mas em 26/08/1971, O Estado de São Paulo [Luís Eduardo trabalhara no Jornal da Tarde, pertencente ao mesmo grupo] publicou um anúncio fúnebre convidando para uma missa de 30º dia, que foi celebrada na Catedral da Sé no dia seguinte, com a presença de centenas de jornalistas e amigos” (idem, p. 170).
Esses são os fatos comprovados.
O chefe do Doi-Codi era Carlos Alberto Brilhante Ustra.
ANISTIA
Nossa posição sobre a anistia – e as tentativas para reabrir algo que foi fechado há 39 anos – é conhecida, e, inclusive, bem expressa várias vezes, por exemplo, em nossa edição de 12 de novembro de 2008, quando se tentava levar Ustra e outros torturadores para o banco dos réus:
“Naquela quadra da nossa história, anistiar algumas centenas de elementos que cometeram bárbaros crimes de tortura e assassinato na repressão à resistência democrática – armada ou não – era a única forma de tirar das cadeias e de permitir que retornassem à legalidade dezenas de milhares de presos, perseguidos e exilados políticos.
“Foi com base nesse acordo tácito que a luta pela redemocratização do país pôde atingir um patamar superior e seguir crescendo até extinguir, alguns anos depois e sem traumas mais profundos, o regime ditatorial.
“Portanto, ofende o nosso sentido de justiça, e principalmente o de honra, desejar, agora que a correlação de forças é outra, atropelar aquele acordo com interpretações casuísticas para cobrar indenizações ou mandar para a cadeia, 30 anos depois, fulano ou sicrano.
“Os torturadores das décadas de 60 e 70 são cadáveres políticos que o avanço da democracia foi condenando de modo crescente, e com justa razão, a uma vida nas sombras. A maioria está bem próxima de passar desta para melhor ou já passou – como o próprio coronel Audir Santos Maciel, que divide com Brilhante Ustra a condição de alvo da ação dos procuradores.
“Que doutos jurisconsultos se dediquem a exercitar sua metafísica contra tais fantasmas é algo que não temos o direito de estranhar. O mesmo não podemos dizer de políticos que atravessaram décadas sem questionar o acordo implícito e explícito na Lei da Anistia de 1979 e alegam, em 2008, que ele não é válido porque as leis internacionais tornam a tortura imprescritível.
“A questão não é, evidentemente, se os crimes prescreveram ou não. E sim, que o Brasil, um país soberano, aprovou uma lei que está em vigor, segundo a qual, para efeito jurídico, eles foram perdoados e esquecidos” (v. HP 12/11/2008, O restolho da ditadura).
PROCESSO
A ação dos familiares de Luiz Eduardo Merlino é baseada, exatamente, na suposta imprescritibilidade do crime de tortura.
No entanto, apesar disso, é uma ação cível – e não criminal.
A Lei da Anistia, a que nos referimos acima, foi incorporada pela Constituição de 1988 (artigos 8º e 9º das Disposições Constitucionais Transitórias).
A mesma Constituição considerou como crimes imprescritíveis, o racismo e o golpe de Estado – mas não a tortura. Os constituintes sabiam perfeitamente o que acontecera quando da Anistia (aliás, haviam sido participantes) – e não quiseram atropelá-la. No que fizeram muito bem.
Em 2008, a Justiça de São Paulo declarou que Ustra era “torturador”, em uma ação cível – toda a argumentação pode ser resumida a que a Lei da Anistia somente pode ser aplicada ao aspecto criminal e não ao cível.
Mas, se for assim, de que adianta a anistia – e o acordo tácito que redundou nela, e do qual é expressão? Somente para que a família dos torturadores tenha que pagar à família dos torturados por crimes que ela não cometeu?
Pois, em 2012, Ustra foi condenado a pagar indenização à família de Luiz Eduardo Merlino.
Em 2014, ao julgar um recurso de Ustra, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu sua responsabilidade cível pelas torturas e assassinatos na época em que foi comandante do Doi-Codi. Mas não havia, nessa ação, pedido de indenização financeira.
Ustra morreu em 2015.
Sua condenação à indenização redundaria no absurdo dessa indenização ser paga pela sua família.
No entanto, como disse a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso no STJ, “a sociedade brasileira renunciou à punição jurídica com a Lei da Anistia”.
Portanto, os desembargadores Luiz Fernando Salles Rossi (relator), Mauro Conti Machado e Milton Paulo de Carvalho Filho, da 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), estão certos ao reformar a sentença da primeira instância.
Alguns se queixaram de comentários dos desembargadores, durante o julgamento, de que não haveria “nexo causal” entre a morte de Luiz Eduardo e as atividades de Brilhante Ustra.
Evidentemente, não é verdade.
Mas não foi por isso que os desembargadores modificaram a sentença da primeira instância.
A razão jurídico-formal do TJ para rever a sentença da primeira instância foi, exatamente, o fato da Constituição haver incorporado a Lei de Anistia – e a ação dos familiares de Merlino ser de 2010, portanto, 22 anos depois da Constituição.
No Brasil, o prazo de prescrição é 20 anos. A ação excedeu em dois anos esse prazo.
Houve um certo frisson em alguns setores com a sentença do TJ.
Mas isso em nada nos ajuda a enfrentar Bolsonaro ou a ameaça de outra ditadura.
Ustra e assemelhados, hoje no Inferno ou em vias de partir para ele, já foram condenados pelo mais severo dos tribunais. Não há como algum Bolsonaro ou Mourão transformar esses covardes, esses criminosos, esses psicopatas, em heróis.
A marca da infâmia os acompanhará, neste e noutro mundo, para sempre.
Também por isso, não é passando por cima dos acontecimentos históricos, dos acordos ou dos dispositivos legais que os consagraram, que venceremos, outra vez, o arbítrio.
Em suma, não se combate o arbítrio com o arbítrio.
C.L.