Sobre o escândalo do site e “plataforma” TrateCov, do Ministério da Saúde, o governo – isto é, o ministro Pazuello, pois é ele o responsável por aquele órgão – emitiu a seguinte nota:
“Informamos que a plataforma TrateCov foi lançada como um projeto-piloto e não estava funcionando oficialmente, apenas como um simulador. No entanto, o sistema foi invadido e ativado indevidamente – o que provocou a retirada do ar, que será momentânea” (v. HP 21/01/2021, Lançado por Pazuello em Manaus, “APP da Cloroquina” é retirado do ar).
Tudo isso é mentira.
Não houve nenhuma invasão ou “ativação indevida” do aplicativo.
Ele estava funcionando oficialmente desde o dia 14 de janeiro. Portanto, funcionou durante sete dias, até ser retirado do ar, debaixo da indignação e do repúdio de entidades médicas – inclusive o moderado Conselho Federal de Medicina -, processos na Justiça e denúncia nos meios políticos.
O TrateCov estava aberto para qualquer um, como veremos – e mesmo que estivesse aberto apenas para os médicos de Manaus (como disse, depois, Pazuello), seria um crime, pois era uma tentativa de fazê-los prescrever medicação antiética, ou seja, sem efeito para a Covid-19 e com efeitos prejudiciais, sobretudo para idosos e cardíacos.
É de se perguntar se não sobrou, em Pazuello, nenhuma gota de caráter, nenhum miligrama de decência.
Em Bolsonaro, claro, nem caráter nem decência, ao que se sabe, jamais existiram – dizer uma coisa em um dia e o oposto no dia seguinte, não é um problema para Bolsonaro. Não assumir o que faz, e dizer que não fez aquilo que todos sabem que fez, é, para ele, um vício, pelo menos desde a juventude (v. HP 16/08/2018, Terrorismo de baixa potência).
Não sabemos se Pazuello sempre foi assim. Mas, se não era assim, é no que está se tornando, ao optar por ser um lacaio-peniqueiro de Bolsonaro.
Voltemos, para comprová-lo, ao famigerado TrateCov.
No dia 14 de janeiro, Pazuello lançou em Manaus o site (e aplicativo) TrateCov, “para auxiliar os profissionais de saúde na coleta de sintomas e sinais de pacientes visando aprimorar e agilizar os diagnósticos da Covid-19”.
Por que os “profissionais de saúde” estariam precisando desse “auxílio”?
Porque, segundo Pazuello afirmou em Manaus, o “pilar” da estratégia do seu Ministério contra a Covid-19 é “o tratamento precoce”, isto é, a cloroquina e outras substâncias sem nenhuma ação ou efeito contra o coronavírus.
Agora, Pazuello está tentando se passar por um adepto das vacinas e da vacinação. Bastaria a bagunça, a falta de plano verdadeiro, a falta de insumos e de apoio logístico – inclusive seringas e agulhas – para desmascarar essa encenação, aliás, muito tosca e ignorante.
Porém, há mais. Já em meio à tragédia de Manaus, disse Pazuello, naquela cidade:
“… a orientação é precoce. A medicação pode e deve começar antes desses exames complementares. Caso o exame lá na frente der negativo, reduz a medicação e tá ótimo. Não vai matar ninguém.”
Um gênio da medicina.
Mas, para que o TrateCov?
O TrateCov era um aplicativo para obrigar os médicos a receitar cloroquina – e assemelhados quanto ao nenhum efeito contra a Covid-19.
Para que vacinas, se o “tratamento precoce” – isto é, a cloroquina e cia. – resolvia o problema?
Não foi sempre isso o que disse Bolsonaro, papagueado por Pazuello?
Não foi Pazuello que disse que o problema de Manaus era falta do “tratamento precoce”, isto é, de cloroquina? (v. HP 12/01/2021, Covid-19 explode em Manaus e Planalto insiste em obrigar o uso de cloroquina; HP 13/01/2021, Secretários de Saúde condenam ofício do Ministério pressionando pelo uso de cloroquina; HP 14/01/2021, Faltam oxigênio e UTIs em Manaus e Bolsonaro insiste no uso à força da cloroquina; HP 16/01/2021, Em meio às mortes, governo pagou “força-tarefa” da cloroquina em Manaus e Médico de Manaus desmascara Bolsonaro: “todos usaram cloroquina e morreram”).
Mas não eram somente os médicos, que eles queriam obrigar a receitar cloroquina.
Qualquer um poderia entrar no TrateCov e sair com uma receita.
Receita de quê?
Vejamos um exemplo.
PARA FELINOS
O jornalista Felipe Betim, de “El País”, inscreveu seu gato, de nome Moreré, no TrateCov.
Betim colocou o nome, a idade (1 ano), o peso do felino (8 kg), seu comprimento (70 centímetros) e descreveu seus sintomas (“febre e fadiga por apenas um dia”).
Imediatamente, o TrateCov chegou à conclusão de que Moreré poderia estar com Covid-19, e receitou o “tratamento precoce” de Pazuello, Bolsonaro e outros burros (com perdão aos muares pelo uso da palavra, pois esses degenerados são muito piores do que burros).
Relatou o jornalista Felipe Betim:
“De acordo com o Ministério da Saúde, o meu gato de 1 ano poderia receber, ao longo de cinco dias, 6 comprimidos de Difostato de Cloroquina 500 mg; 12 comprimidos de Hidroxicloroquina 200 mg; 1 comprimido diário de Ivermectina 6mg; 5 comprimidos de Azitromicina 500 mg; 10 comprimidos de Doxiciclina 100 mg; ou ainda 14 comprimidos de sulfato de zinco por 7 dias.
“Um detalhe importante: na parte em que devo indicar se o paciente possui alguma comorbidade, marquei que ele possui insuficiência cardíaca. De acordo com análises médicas, a cloroquina e hidroxicloroquina, usados contra a malária, pode afetar os batimentos do coração. Mesmo sabendo desse risco, o algoritmo da plataforma do Governo Federal indica os medicamentos” (v. Felipe Betim, Plataforma do Ministério da Saúde indica cloroquina até para o meu gato Moreré, El País, 20/01/2021).
A propósito, o bichano Moreré não tomou cloroquina – nem as outras beberagens receitadas pelo TrateCov – e está muito bem de saúde.
PERSONAGEM
O colunista Daniel César, do “Na Telinha”, no portal UOL, também ficou intrigado com o TrateCov.
Fez, então, a seguinte experiência: inscreveu no aplicativo uma personagem de novela da Globo, a Camila, interpretada por Carolina Dieckmann em “Laços de Família” – atualmente sendo reprisada no programa “Vale a pena ver de novo”.
Camila, como sabem os que acompanharam – ou agora acompanham – a novela, é portadora de leucemia, ou seja, de um tipo de câncer.
No TrateCov, o jornalista inscreveu os sintomas de Camila.
O TrateCov não vacilou, apesar da sintomatologia da personagem nada ter a ver com aquela da Covid-19:
“… para o Ministério da Saúde de Jair Bolsonaro, Camila não está com leucemia, mas sim com coronavírus. Os sintomas apresentados e que estão disponíveis na página indicaram pontuação suficiente para mostrar que (…) é mais uma das sete milhões de vítimas da Covid-19 no país.
“Disponibilizado pelo site do Ministério, a simulação anotou sintomas como fadiga, tontura, fraqueza, perda de apetite e cefaleia. Como as reclamações de Camila indicaram, também foram preenchidos os espaços para dor em coluna torácica, em membros inferiores e dor retrorbital, dor abdominal e náuseas. Grávida, a personagem também já demonstrou falta de ar, o que, segundo o TrateCov, deu a ela 35 pontos no ranking estatístico criado para fazer a auto-avaliação.
“O resultado indicado: Camila está com Covid-19 por apresentar escore acima de seis pontos. A sugestão é clara: ‘iniciar tratamento precoce para a Covid-19’.
“… a medicação sugerida é a mesma que vem gerando controvérsia e que já foi tantas vezes defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro: disfotato de cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, doxiciclina e sulfato de zinco” (v. Daniel César, Para o Governo, Camila de Laços de Família tem Covid e indica cloroquina, UOL 21/01/2021).
A novela “Laços de Família” foi levada ao ar no ano 2000 – isto é, há 20 anos, quando não havia nem notícia nem profecia da Covid-19.
Apesar disso, a medicação para Camila foi a mesma prescrita para o gato Moreré.
ESGOTO MORAL
É preciso chamar a realidade pelas palavras que a expressam com maior exatidão.
O que estamos enfrentando, no desgoverno Bolsonaro, é a tentativa de enfiar o Brasil em um bueiro repleto de canalhice, em um esgoto vácuo de decência.
Que o Brasil seja grande demais para caber nessa fossa, é algo que não perturba Bolsonaro, sua família de celerados e seu entorno de aberrações. Preferem destruir o país – aliás, confessadamente, como disse o próprio Bolsonaro em seu discurso na embaixada do Brasil em Washington – do que deixar de arrastá-lo para a sua lama.
Nada deixou mais claro que é isso o que os brasileiros enfrentam, do que a pandemia de Covid-19.
Quando, em nossa História, um presidente foi culpado pela morte de mais de 200 mil brasileiros?
Quando, em nossa História, um ministro da Saúde lançou publicamente um programa vigarista no meio de uma catástrofe sanitária em uma de nossas principais cidades, e, pego em flagrante, responsável direto pela mortandade, disse que o aplicativo “não estava funcionando oficialmente” e que “o sistema foi invadido e ativado indevidamente”?
Um aplicativo que ele mesmo lançou, publicamente, e que não sofreu alteração desde que foi lançado.
Será que não sobrou nem uma gota de caráter?
CARLOS LOPES
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