A Terra Indígena Yanomami continua sofrendo as consequências da política de estímulo à violência, apoio ao garimpo ilegal e do descaso e à falta de proteção aos povos originários, levada à cabo pelo ex-governo de Jair Bolsonaro. Ao menos 14 pessoas foram mortas somente desde o último sábado (29/04) na reserva indígena.
Agentes de segurança avistaram oito corpos possivelmente de garimpeiros boiando na região do Uxiú. Os corpos foram localizados um dia depois do assassinato de um agente de saúde Yanomami e de dois terem sido baleados por garimpeiros enquanto participavam de uma cerimônia fúnebre às margens do rio Mucajaí, onde havia várias também mulheres e crianças.
Neste sábado, um novo corpo, dessa vez de uma mulher, foi encontrado na região.
Uma fonte ligada ao garimpo afirmou ao site “Amazônia Real” disse que os novos corpos são de mineradores. “Estamos diante de um banho de sangue sem precedente se não mudar isso agora”, alertou essa fonte, que admite que a situação está fora de controle.
No domingo, em outro local da TIY, quatro garimpeiros foram mortos em um confronto com agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e do Ibama, após receberem as forças de segurança a tiros. Foram apreendidas armas e munição de grosso calibre, o que reforça os indícios de vínculos entre os garimpeiros e o PCC. Um dos criminosos que morreu no confronto era foragido da Justiça integrava a facção criminosa, originada em São Paulo, que atua em áreas de garimpo na Amazônia.
Para o antropólogo Marcelo Moura, que atua na região de Surucucu e estava presente durante o socorro aos indígenas feridos, a ofensiva, sem motivos ainda não esclarecidos pelos agentes federais, pode ser uma retaliação devido às operações de retirada dos garimpeiros ilegais.
Segundo o pesquisador, nesse momento em que os focos de garimpo continuam ativos, há um aumento dos níveis de violência. Ele teme por essa escalada da violência e cita o massacre de Haximu, que aconteceu após a expulsão dos invasores na década de 1990.
“As relações muitas vezes que se estabelecem forçosamente pela presença dos garimpeiros ao redor de determinadas comunidades podem ir se esgarçando, ficando cada vez mais tensas e passa a haver um sentimento de inimizade declarado entre os Yanomami e os garimpeiros que estão ali perto”, analisa.
“Então eles passam a estar mais suscetíveis a fazer qualquer tipo de retaliação aos Yanomami das comunidades”, alerta Moura, que é antropólogo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e há cinco anos pesquisa e trabalha com o povo Yanomami.
O agente de saúde Ilson Xirixana, de 36 anos, foi atingido com um tiro na testa. Ele chegou a ser socorrido e levado de helicóptero para o Polo Base de Surucucu, mas não resistiu e morreu na madrugada de domingo. Outros dois Yanomami, baleados no abdômen e tórax, continuam internados no Hospital Geral de Roraima, em Boa Vista.
“Segundo os depoimentos, os garimpeiros estavam embriagados e armados com calibre 380, também conhecido como ´9 mm Curto´, os vestígios foram coletados pelos indígenas e entregues à Polícia Federal. As lideranças acreditam que pelo armamento pode significar que um grupo de facção tenha se instalado na região”, informou em nota a Hutukara Associação Yanomami (HAY) e Texoli Associação Ninam.
Segundo as entidades indígenas, as lideranças da comunidade Uxiú estão organizadas para atacar qualquer embarcação de garimpeiros que passar pela região. “Isso significa que pode ocorrer a qualquer momento mais uma tragédia”, alerta. A nota é assinada por Dário Kopenawa (vice-presidente da Hutukara) e Gerson Xirixana (presidente da Texoli) pediu providências urgentes.
Diante da escalada da violência, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu enviar novamente uma comitiva interministerial a Roraima para tratar da questão. A comitiva contou com a presença das ministras Sônia Guajajara (Povos Indígenas), Marina Silva (Meio Ambiente), Nísia Trindade (Saúde) e representantes dos ministérios da Defesa e da Justiça.
Marina, que sobrevoou as regiões de Homoxi e Uxiú junto com a titular dos Povos Indígenas, informou em entrevista coletiva que se observa uma redução de 75% do garimpo. Segundo ela, a intenção é que os invasores que persistem na região saiam sem confrontos. A segurança será reforçada para que isso seja garantido, informou.
Até o momento, 327 acampamentos de garimpeiros, 18 aviões, 2 helicópteros, centenas de motores e dezenas de balsas, barcos e tratores foram destruídos nas operações de fiscalização, segundo o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho.
SEM TOLERÂNCIA COM O CRIME
Desde o início das operações de desintrusão da TI já foram registrados quatro ataques. “Não vamos ceder um milímetro a aqueles que desafiam a autoridade legal”, alertou Tadeu de Alencar, secretário de Segurança Pública, representando o ministro da Justiça, Flávio Dino.
“O Estado brasileiro não vai tolerar aqueles que de forma flagrante, que de forma ilegal, que de forma criminosa, estão sendo recalcitrantes quanto a decisão de deixar esse território com os povos originários, com os povos indígenas, para que o estado possa cumprir bem o seu papel. A palavra do presidente Lula, portanto, é que não vamos ceder um milímetro a aqueles que desafiam a autoridade legal”, reiterou.
“O governo brasileiro não vai recuar face à criminalidade. As ações vão ser intensificadas, vamos reforçar as equipes do Ibama, da PRF, da PF com o suporte das forças armadas, que é fundamental o suporte logístico, toda a parte operacional para que a gente possa dar uma resposta à altura”, reiterou Marina.
Governo de Roraima não pode fomentar atividade ilícita, diz Sônia Guajajara
Por sua vez, Sônia Guajajara defendeu que o governo de Roraima “precisa entender que ele não pode ficar fomentando essa atividade ilícita”. O estado [governo de Roraima] não pode insistir em permanecer, apoiar ou incentivar a presença, a permanência desses garimpeiros no Território Yanomami, porque acho que o Estado não pode ter como principal atividade econômica uma atividade ilícita”.
“O governador precisa entender que ele não pode ficar fomentando essa atividade ilícita porque alguém vai pagar”, advertiu. “E aí esses garimpeiros acreditam que o governador vai poder permitir a permanência deles lá e eles não vão, porque tem uma Constituição que rege. Nenhum território indígena no Brasil há permissão para se explorar minério”, completou Sônia.
A ofensiva e resistência do garimpo ilegal em Roraima estão sendo sustentadas graças à atuação do Primeiro Comando da Capital (PCC) e de outras facções criminosas. A facção paulista comanda a logística do garimpo para garantir o envio de drogas para outros estados e países, segundo o sociólogo Rodrigo Chagas, pesquisador do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Fronteiras da UFRR e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ele diz que aviões que transportam ouro no garimpo também levam drogas.
Até com serviços de “segurança” os invasores contam. O relatório do ISA (Instituto Socioambiental) “Yanomami Sob Ataque” revela a existência de serviços de segurança privada prestados por grupos associados ao crime organizado.
O grupo também usa métodos como aliciar adolescentes para vender drogas no garimpo, prática utilizada pela facção em outras regiões do país onde o PCC atua. De acordo com Chagas, um grama de cocaína equivale a um grama de ouro, que custa R$ 290 nesses locais.
NARCOGARIMPO
Informações dão conta de que a facção controla ainda pontos de comércio de drogas nas periferias de Boa Vista, capital de Roraima. Em São Paulo, o PCC também atua na compra e venda de drogas nas regiões periféricas.
Há indicações da presença de garimpeiros faccionados no grupo que resistem em deixar a Terra Indígena Yanomami. Chagas identifica três diferentes perfis de garimpeiros: os que abandonaram o território após as operações da PF e da Funai, os que pensaram que se tratava de uma política temporária e os que resistem. Entre esses últimos, estão os que seriam ligados ao crime organizado.
O PCC, que também controla casas de prostituição do garimpo conhecidas como corruptelas, também já conta com a concorrência de outros grupos criminosos como Comando o Vermelho e facções venezuelanas, que passaram a controlar atividades importantes em áreas próximas ao garimpo, segundo fontes ouvidas pelo UOL.
No entanto, é o PCC que mais conseguiu fincar suas bases na região. A facção paulista tem maior domínio sobre as atividades criminais em Boa Vista — que incluem roubo, por exemplo.
A presença do crime organizado em Roraima é vista com preocupação pelo Ministério dos Povos Indígenas: “quase uma guerra”, diz Sônia Guajajara, que afirma que a segurança será intensificada na região. “Agora é quase uma guerra. É um querendo se defender do outro. Eles [garimpeiros] veem os indígenas e já vão para cima, e os indígenas reagem para não morrer. A presença das forças policiais e de segurança vai se intensificar para a retirada de todos eles [garimpeiros]”.
Dados via satélite do Ibama mostram que de 70% a 80% dos invasores já saíram. Agora a Polícia Federal mandou mais agentes para lá para poder concluir esta etapa, continua a ministra.
Apesar da intensificação da violência na TI, Guajara observa avanços no atendimento à saúde dos yanomamis com as ações implementadas pelo atual governo. “Nós transformamos o hospital de campanha num centro de referência, que está na base de Surucucu. As pessoas que precisam de atendimento já não vão direto para Boa Vista, mas passam por esse centro e recebem os primeiros atendimentos. O tratamento ocorre ali mesmo, dentro do território, só são removidos para Boa Vista aqueles casos mais graves”, explica.
A distribuição de alimentos adequados, que fazem parte do hábito alimentar deles, está ocorrendo. Os indígenas nos dizem que está melhorando, e os agentes de saúde indígenas que acompanham a situação, como é o caso do Junior Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, dizem que, no geral, a situação de desnutrição melhorou bastante”, completa.