“Nossa luta é uma luta verdadeiramente nacional. É uma luta do povo africano, inspirada por nosso próprio sofrimento e nossa própria experiência. É uma luta pelo direito de viver”, afirmou o líder Nelson Mandela em seu pronunciamento em 1964, do qual publicamos hoje a última parte
NELSON MANDELA
Fui influenciado em meu pensamento tanto pelo Ocidente quanto pelo Oriente. Tudo isso me levou a sentir que devo ser absolutamente imparcial e objetivo na minha busca por uma fórmula política. Não devo me amarrar a nenhum sistema específico de sociedade, senão o do socialismo.
O Umkhonto foi formado por africanos, para promover sua luta pela liberdade. Comunistas e outros apoiaram o movimento, e nós só desejaríamos que mais setores se unissem a nós.
Nossa luta é contra sofrimentos reais, e não imaginários – ou, para empregar a linguagem do promotor do Estado, “chamados sofrimentos”. Basicamente, combatemos dois elementos, que são as marcas características da vida africana na África do Sul e são institucionalizados pela legislação que queremos ver revogada.
Esses elementos são a pobreza e a ausência de dignidade humana.
A África do Sul é o país mais rico da África e poderia ser um dos mais ricos do mundo. Mas é uma terra de extremos e de contrastes espantosos. Os brancos desfrutam o que muito possivelmente seja o padrão de vida mais elevado do mundo, enquanto os africanos vivem na pobreza e miséria.
Quarenta por cento dos africanos vivem em reservas absolutamente superlotadas e, em alguns casos, assoladas pela seca, onde a erosão do solo e o uso excessivo do mesmo faz com que lhes seja impossível sobreviverem adequadamente com a agricultura.
Trinta por cento são lavradores, meeiros e assentados em fazendas de proprietários brancos, trabalhando e vivendo sob condições semelhantes às dos servos na Idade Média.
Os outros 30% vivem em cidades onde desenvolveram hábitos econômicos e sociais que, sob muitos aspectos, os aproximam dos padrões brancos. Mas a maioria dos africanos, mesmo os que integram esse último grupo, é pobre, devido à sua renda baixa e ao alto custo de vida.
O setor africano urbano mais bem pago e próspero fica em Johannesburgo. Mas sua posição atual é desesperadora.
A pobreza anda de mãos dadas com a desnutrição e a doença. A incidência de doenças provocadas pela desnutrição e a deficiência nutricional é muito alta entre os africanos. Tuberculose, pelagra, kwashiorkor, gastroenterite e escorbuto provocam mortes e a destruição da saúde. O índice de mortalidade infantil é um dos mais altos do mundo.
De acordo com o Departamento de Saúde de Pretória, estima-se que a tuberculose mate 40 pessoas por dia, quase todas africanas, e em 1961 foram informados 58.491 casos novos.
Essas doenças não apenas destroem os órgãos vitais do corpo, como resultam em condições mentais retardadas, em falta de iniciativa e redução do poder de concentração. Os resultados secundários de tais condições afetam toda a comunidade e o padrão do trabalho realizado por africanos.
Mas a queixa dos africanos não é o fato de serem pobres e dos brancos serem ricos, mas de que as leis feitas pelos brancos visam a preservar essa situação.
Existem duas maneiras de sair da pobreza.
A primeira é pela educação formal, a segunda é o trabalhador conquistar qualificações maiores no seu trabalho, passando a ser mais bem pago.
No que diz respeito aos africanos, ambos esses caminhos para a melhora de situação são propositalmente limitados pela legislação.
Peço à Corte que recorde que o governo atual sempre buscou criar obstáculos aos africanos em sua busca de educação. Um de seus primeiros atos depois de chegar ao poder foi revogar os subsídios para a merenda escolar africana. Muitas crianças africanas que frequentavam a escola dependiam desse complemento à sua alimentação. Esse foi um ato cruel.
Há ensino obrigatório para todas as crianças brancas, a virtualmente nenhum custo para seus pais, sejam eles ricos ou pobres. Não são dadas oportunidades semelhantes às crianças africanas, embora existam algumas que recebam essa assistência.
Geralmente, porém, as crianças africanas precisam pagar mais pelo ensino que as crianças brancas. De acordo com estatísticas citadas pelo Instituto Sul-Africano de Relações Raciais em seu periódico de 1963, aproximadamente 40% das crianças africanas na faixa dos 7 aos 14 anos não frequentam a escola. Para as que o fazem, os padrões diferem tremendamente dos que são oferecidos às crianças brancas.
Em 1960-61, o governo gastou per capita, com alunos africanos em escolas auxiliadas pelo Estado, estimados 12,46 rands. Nos mesmos anos, gastou per capita, com crianças brancas na província do Cabo (essas são as únicas cifras às quais tive acesso), 144,57 rands. Embora eu não tenha estatísticas à mão, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que as crianças brancas, com as quais foram gastos 144,57 rands per capita, todas vieram de famílias mais ricas que as crianças africanas com as quais foram gastos 12,46 rands per capita.
A qualidade do ensino também é diferente. De acordo com o “Bantu Educational Journal”, apenas 5.660 crianças africanas em toda a África do Sul foram aprovadas no exame de conclusão do ensino fundamental em 1962, e, naquele ano, apenas 362 estudantes africanos passaram pelo exame de admissão na universidade.
Presume-se que esses resultados sejam condizentes com a política de educação bantu, sobre a qual o primeiro-ministro atual declarou, durante o debate sobre a Lei de Educação Bantu, em 1953, quando era ministro dos Assuntos Nativos:
“Quando eu tiver controle da educação dos nativos, vou reformá-la de modo que os nativos sejam ensinados desde a infância a perceber que a igualdade com os europeus não é para eles. Pessoas que acreditam na igualdade não são professores desejáveis para nativos. Quando meu departamento controlar a educação nativa, saberá para que classe de ensino superior um nativo é apto e se ele terá na vida uma chance de fazer uso de seu conhecimento.”
EMPREGOS
O outro obstáculo ao avanço econômico do africano é a barreira trabalhista de cor, sob a qual todos os empregos melhores e mais bem pagos na indústria são reservados exclusivamente para brancos.
Ademais, os africanos que atuam nas ocupações não qualificadas e semiqualificadas que lhes são permitidas não são autorizados a formar sindicatos que sejam reconhecidos pela Lei de Conciliação Trabalhista.
Isso significa que as greves de trabalhadores africanos são ilegais e que é negado aos trabalhadores africanos o direito à negociação coletiva, que é permitido aos trabalhadores brancos mais bem pagos.
A discriminação contra os trabalhadores africanos, que faz parte da política de sucessivos governos sul-africanos, é demonstrada pela chamada “política trabalhista civilizada”, pela qual empregos não qualificados e protegidos no setor público são oferecidos aos trabalhadores brancos que não estão à altura dos trabalhos na indústria, empregos esses que pagam salários que superam de longe os ganhos médios do trabalhador africano na indústria.
O governo frequentemente responde às críticas, dizendo que os africanos na África do Sul vivem em condições econômicas melhores que os habitantes dos outros países da África.
Não sei se essa afirmação é verdadeira, e duvido que qualquer comparação possa ser traçada sem levar em conta o índice de custo de vida nesses países. Mas, mesmo que seja fato, é irrelevante, no que diz respeito ao povo africano. Nossa queixa não é a de sermos pobres em comparação com pessoas de outros países, mas a de sermos pobres em comparação com as pessoas brancas de nosso próprio país – e de sermos impedidos pela legislação de modificar esse desequilíbrio.
A falta de dignidade humana vivida pelos africanos é resultado direto da política de supremacia branca. A supremacia branca supõe a inferioridade negra. A legislação que visa preservar a supremacia branca institucionaliza essa noção. As tarefas subalternas na África do Sul são invariavelmente realizadas por africanos. Quando qualquer coisa precisa ser carregada ou limpada, o branco olha em volta, à procura de um africano que o faça por ele, quer o africano seja empregado por ele, quer não. Devido a esse tipo de atitude, os brancos tendem a enxergar os africanos como uma espécie diferente.
Não os veem como pessoas que têm suas próprias famílias; não percebem que nós temos emoções; que nos apaixonamos, como se apaixonam os brancos; que queremos estar com nossas mulheres e nossos filhos, como os brancos querem estar com os deles; que queremos ganhar dinheiro, dinheiro suficiente para sustentar nossas famílias adequadamente, alimentá-las, vesti-las e fazê-las frequentar a escola. E que empregado doméstico, jardineiro ou lavrador braçal pode algum dia ter a esperança de fazer isso?
As leis do passe, que para os africanos estão entre as mais odiadas da África do Sul, tornam qualquer africano passível de ser barrado pela polícia a qualquer momento. Duvido que exista um único africano do sexo masculino na África do Sul que não tenha, em algum momento, tido um desentendimento com a polícia em torno de seu passe. Centenas e milhares de africanos são colocados na cadeia todos os anos devido às leis do passe. Ainda pior que isso, é o fato de que as leis do passe separam maridos e mulheres e levam à desintegração da vida familiar.
A pobreza e a desintegração da vida familiar têm efeitos secundários. Crianças perambulam pelas ruas das comunidades porque não têm escolas a frequentar, ou não têm dinheiro que lhes possibilite frequentar a escola, ou não têm pais em casa para verificar se vão à escola, porque pai e mãe, quando os dois estão presentes, precisam trabalhar para manter a família viva.
Isso leva a uma ruptura nos padrões morais, ao aumento alarmante da ilegitimidade e à violência crescente, que explode não apenas politicamente, mas em toda parte. A vida nas comunidades é perigosa. Não se passa um dia sem que alguém seja apunhalado ou agredido. E a violência é levada para fora das comunidades, para as áreas residenciais brancas. As pessoas têm medo de andar sozinhas na rua, à noite. Os assaltos e arrombamentos de casas vêm aumentando, apesar do fato de que tais crimes podem agora ser punidos com a sentença de morte.
Sentenças de morte não podem curar a ferida aberta.
A única cura consiste em mudar as condições nas quais os africanos são forçados a viver, atendendo às suas reivindicações legítimas. Os africanos querem receber salários que possibilitem a sobrevivência. Os africanos querem fazer o trabalho do qual são capazes, e não o trabalho do qual o governo os declara capazes. Queremos poder viver onde obtemos trabalho, e não ser impedidos de viver numa área porque não nascemos ali.
Queremos ser autorizados e não obrigados a viver em casas alugadas que jamais poderão ser nossas. Queremos fazer parte da população geral, e não ser confinados em nossos guetos.
Os homens africanos querem ter suas mulheres e seus filhos vivendo com eles, onde eles trabalham; não querem ser forçados a viver de modo antinatural, em albergues de homens.
Nossas mulheres querem estar com seus companheiros, e não viver nas reservas como viúvas permanentes.
Queremos o direito de estar fora de casa às 23h, e não sermos confinados em nossos quartos, como criancinhas.
Queremos o direito de viajar em nosso próprio país e buscar trabalho onde quisermos, e não onde o Birô do Trabalho nos manda.
Queremos uma participação justa na África do Sul como um todo; queremos segurança e uma participação na sociedade.
Sobretudo, queremos direitos políticos iguais, porque sem esses direitos nossas deficiências serão permanentes. Sei que isso soa revolucionário aos brancos deste país, porque a maioria dos eleitores será formada por africanos. Esse fato faz o homem branco temer a democracia.
Mas não se pode permitir que esse temor seja um obstáculo à única solução que vai garantir harmonia racial e liberdade para todos. Não é verdade que a extensão do direito de voto a todos resultará em dominação racial. A divisão política baseada na cor é inteiramente artificial e, quando desaparecer, desaparecerá também o domínio de um grupo de cor por outro. O CNA já passou meio século lutando contra o racismo. Quando triunfar, como certamente triunfará, não mudará essa política.
É isso, portanto, que o CNA combate. Nossa luta é uma luta verdadeiramente nacional. É uma luta do povo africano, inspirada por nosso próprio sofrimento e nossa própria experiência. É uma luta pelo direito de viver.
Dediquei toda a minha vida à luta do povo africano.
Lutei contra o domínio branco e lutei contra o domínio negro.
Defendi e prezo a ideia de uma sociedade democrática e livre, em que todas as pessoas convivam em harmonia e com oportunidades iguais.
É um ideal pelo qual eu espero viver e que espero ver realizado.
Mas, se preciso for, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer.