O general Nelson Werneck Sodré foi um dos homens mais ilustres que já nasceram em nosso país. Historiador, crítico literário, foi um dos intelectuais mais ativos e profícuos do Brasil.
Por isso, foi um dos primeiros brasileiros a ter seus direitos políticos cassados pela ditadura de 1964.
Mas o general Sodré não era homem que se conformasse com as injustiças, muito menos quando elas cobriam a sua Nação. O general era, antes de tudo, um patriota – e nos orgulhamos do papel que tivemos ao editar e publicar os seus primeiros textos contra o neoliberalismo, no início da década de 90.
Porém, bem antes disso, Nelson Werneck Sodré enfrentou a ditadura.
Em pleno governo Médici, escreveu uma das autópsias do chamado “milagre brasileiro”, ou, na linguagem oficial da época, “modelo brasileiro de desenvolvimento”.
O texto abaixo é a conclusão dessa necrópsia, quando, em geral, a propaganda oficial espalhava medo e estupidez – é o fecho do livro “Brasil: radiografia de um modelo” (Vozes, 1974).
C.L.
NELSON WERNECK SODRÉ
A eliminação da democracia foi o processo político cirúrgico com que os interesses externos conseguiram implantar no Brasil o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento”, que aparece como o modelo consequente da dependência em relação ao capitalismo monopolista de Estado, estabelecido nas áreas do mundo ditas desenvolvidas, isto é, aquelas em que o capitalismo atingiu a referida etapa.
É, pois, — e este representa um de seus traços essenciais — um modelo de economia dependente. Para gerar tal modelo, o capitalismo brasileiro teria de passar por dura reforma, destinada a:
1) integrá-lo profundamente, sob laços de dependência, no conjunto da economia internacional capitalista;
2) modernizar as suas técnicas e processos, desde os de produção aos administrativos. A integração correspondia, naturalmente, dadas as exigências do modelo, à desnacionalização da economia brasileira; a modernização correspondia à introdução, por ato de vontade, impondo etapas avançadas, de alterações que importavam em violentar normas tradicionais e em liquidar áreas empresariais inadaptadas. Elas foram atropeladas por tratores pesados, que aravam o terreno: o trator apelidado produtividade, por exemplo.
Claro está que o processo político cirúrgico e o processo econômico e financeiro estiveram, e permanecem, estreitamente ligados, como peças do mesmo sistema: um não pode existir sem o outro.
Só um regime autoritário poderia criar as condições em que se tornou possível implantar, pela violência do Estado, um modelo que sacrifica os mais altos e numerosos interesses de todo um povo. Há razão, evidentemente, quando a propaganda procura destacar que todo mérito do sucesso do modelo decorre do regime político, com a diferença de que o apelidado sucesso representa, na verdade, sucesso externo, conveniente ao capital externo, e, evidentemente, à reduzida minoria empresarial brasileira, rotinada na servidão e condicionada pela parcela de lucro que lhe cabe.
A ilusão inicial residia na suposição de que o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento” — que só se apresentou, em sua plenitude, a partir do ano de 1969, após o Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968, que suprimiu toda e qualquer espécie de liberdade e a vigência de todo e qualquer direito ou garantia individual — não alcançasse êxito.
Essa ilusão se enquadrava em outra: a de que era uma situação transitória.
Não era uma situação transitória, de rápida duração; ela foi implantada com o sentido de durar, de permanecer, de eternizar-se e, por isso mesmo, constituiu processo inteiramente diferente dos anteriores, em que golpes de Estado ocorreram e formas ditatoriais foram transitoriamente impostas.
Agora não: é a forma específica de controle do Estado, nos países dependentes, para possibilitar a sujeição de sua estrutura econômica aos interesses do capitalismo monopolista de Estado vigente nos países matrizes imperialistas.
Desse engano decorria o outro: de que o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento” não poderia, por contrariar os interesses da quase totalidade da população do país, apresentar índices significativos de crescimento — não poderia ter sucesso, em suma.
Ora, que isso poderia acontecer, como aconteceu, não restava dúvida, pelo menos depois que, entre 1964 e 1968, foi articulado o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento”.
Com a montagem do referido modelo, criou-se, no Brasil, a dualidade, estabelecida pela existência paralela de uma área moderna, concentrada, eficiente, dotada de alta produtividade, associada a empresas externas ou por elas constituída, e uma área atrasada, dispersa, menos eficiente, de produtividade discutível, constituída por empresas nacionais.
Esse paralelismo entre um setor avançado e um setor atrasado processou-se em toda estrutura, de alto a baixo.
Assim, persiste um fluxo primário-exportador, que é o que a economia brasileira apresenta de mais antigo, ligado a produtos agrícolas tradicionais, alguns com a produção e mesmo a comercialização, inclusive com o exterior, já bastante desnacionalizada — como acontece com o algodão.
É o remanescente do velho sistema de economia exportadora de matérias-primas e alimentícios, em estado natural ou apenas beneficiados, que vinha sofrendo progressivo processo de transformação — de pré-capitalista para capitalista, na área da produção, de nacional para estrangeiro, na área da comercialização — e que continua a pesar bastante na balança de comércio externo, mesmo nos dias atuais.
Surge, com o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento”, entretanto, um setor moderno primário-exportador, baseado principalmente em minérios — do tipo daquele que decorre na função da Companhia Vale do Rio Doce e de sua associação com os grandes monopólios siderúrgicos norte-americanos, para exploração e exportação de minério em Minas Gerais e no Pará, principalmente. Este setor primário-exportador vai em ascensão, enquanto o outro, o tradicional, entrou em declínio. A fase do café, pelo menos nas dimensões e nos moldes tradicionais, está próxima do fim.
No setor industrial, acontece a mesma coisa, pouco mais ou menos: mas, aqui, a área tradicional está em franco processo de liquidação, reduzida a umas poucas empresas, ou grupos de empresas, geralmente familiares, ditas “fechadas” porque controladas por poucos sócios ou por membros da mesma família.
As estatísticas assinalam, com triste eloquência, como, entre o Poderio do Estado, de um lado, e dos monopólios estrangeiros, de outro, a empresa privada nacional vai sendo triturada e compelida ao desaparecimento, sem direito sequer ao mercado interno, que a legislação lhe reservara, de velhos tempos, ou tinha a intenção de reservar.
No setor fabril, ou funcionam as empresas estatais, e estas produzem, via de regra, apenas matérias-primas, ou as multinacionais, a partir de certo nível de grandeza. A pequena e a média empresa, de capitais nacionais, tende a desaparecer. Ela é, muitas vezes, na realidade, pouco rentável e, quanto à famigerada produtividade, não constitui nenhum exemplo eloquente. Mas isso não deriva de seu caráter nacional.
Na indústria, pois, o processo histórico assinalou etapas facilmente identificáveis.
Na primeira, à época em que vigorava o célebre refrão do “essencialmente agrícola”, ela procurava vencer as dificuldades iniciais, atendendo ao mercado interno e lutando para que este, por força do protecionismo, lhe fosse reservado; na segunda, conhecida como de substituição de importações, valeu-se de emergências protecionistas e do desenvolvimento interno de relações capitalistas, para crescer e competir, no mercado interno, com os monopólios estrangeiros; na terceira, quando se abrem as perspectivas de desenvolvimento autônomo auto-sustentado, o processo é interrompido pela implantação do chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento”, ficando o mercado interno apropriado pelos monopólios estrangeiros e servindo a estes de base territorial para o estabelecimento de fluxos de exportação não-nacionais.
Assim, na primeira etapa, o pré-imperialismo e o imperialismo introduziam no mercado interno as suas mercadorias, impondo preços e condições, submetido às tarifas de alfândega; na segunda, passou o imperialismo a produzir, aqui, à sombra de tais tarifas, aquilo que antes produzia fora e nos enviava; na terceira, dominado o mercado interno brasileiro, passou a fabricar aqui as mercadorias e a exportá-las daqui, com largos e generosos subsídios do Estado brasileiro. Esta última etapa é a do chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento”.
Há, evidentemente, a necessidade de manter o que, no velho sistema, ajudava o imperialismo e marcava a sua posição: o endividamento externo, por exemplo, como uma das formas mais eficazes de controle e de dependência; a submissão tecnológica; a imposição dos preços que definem a “deteriorização da troca externa”.
E há que inovar, particularmente, no todo ou em parte. O empréstimo do tipo compensatório, por exemplo, declina; mas avulta o empréstimo que corresponde apenas a financiamento da exportação norte-americana, por exemplo, como aquele que vai apenas alimentar a produção ou a comercialização das multinacionais, aqui.
A associação de empresas estrangeiras com empresas nacionais assume, também, novas formas; mas há algo de peculiar, de novo, quando a associação aparece como o híbrido extravagante que surge da união entre as estatais brasileiras e multinacionais, para operar no Brasil e até no exterior.
Assim, a área antes dita intocável, dos monopólios estatais, particularmente o da exploração petrolífera, é acorrentada a reboque de monopólios estrangeiros, fazendo desaparecer o antagonismo, que antes parecia irremediável, entre área estatal e área privada estrangeira.
A modernização empresarial se completa na modernização do aparelho de Estado, agora a serviço do imperialismo, e este sempre preocupado com a eficácia. O setor público da economia é integrado no conjunto internacional do capitalismo, comandado pelo capitalismo monopolista de Estado com sede em uns poucos países e matriz nos Estados Unidos.
O regime se anunciava salvador e vem, realmente, impor a ordem social, pela repressão sistemática, organizada, meticulosa. Busca-se difundir a ideia de que há relação causal entre o regime e índices abstratos de crescimento, que apenas significam o grau de concentração da economia. Desenvolvimento, assim compreendido, parece derivar do regime, de seu autoritarismo. A área política, como é entendida, limita-se, fica tão estreita, tão reduzida quanto possível, ao mínimo que exige a simulação de divisão de poderes, de funcionamento da vontade popular: há eleições, há legislativo, há partidos políticos. Mas tudo formal, limitado, inexpressivo, porque a mínima demonstração de discordância é punida e os poderes são majestáticos no campo da punição. Como o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento” pode apresentar índices numéricos de avanço, o próprio conceito de desenvolvimento passa a ser confuso.
O regime buscou legitimar-se pelo saneamento da economia e particularmente das finanças, no controle à inflação, e pela imposição da “ordem”, no campo social e político. Valeu-se da capacidade ociosa da estrutura de produção e dos baixos índices vigentes; pelo aproveitamento daquela e pelo avultamento de seus índices, em face dos anteriores muito baixos, apresentou o quadro de contraste entre desenvolvimento material com “harmonia entre as classes” e caos, entre ordem social e rompimento dela, atingindo os limites extremos da sublevação e da inversão hierárquica militar, que alarmaram as classes possuidoras e as camadas médias.
O aproveitamento da capacidade ociosa, no campo da economia, foi acompanhado da espoliação salarial e da compressão dos vencimentos fixos, que acabaram estabelecendo graves desigualdades e empobrecendo as camadas médias e o proletariado sendo reduzido ao mínimo, ao estritamente necessário à reposição das energias físicas de cada trabalhador.
A extrema concentração empresarial peculiar ao capitalismo monopolista de Estado gerou poderes novos, na área internacional. Tal concentração, realmente, parece ter atingido uma etapa tão avançada que a avizinha do fim. Nos Estados Unidos, as quatro maiores companhias em cada uma de suas indústrias fabricam, atualmente, as seguintes proporções da produção nacionaI dos bens citados: 100% dos vagões de passageiros; 99% do alumínio básico; 98% do vidro laminado, do vidro plano e dos automóveis; 96% das películas fotográficas; 95% dos motores de popa; 94% dos produtos de cobre; 93% das lâmpadas elétricas; 83% do sal; 82% dos cigarros; 81% das latas de conserva; 80% das toalhas e panos de prato.
Em 1970, as subsidiárias das corporações norte-americanas aumentaram suas despesas com fábricas e equipamentos no exterior em mais de 13 bilhões de dólares — 22% mais do que em 1969 — esperando, segundo estimativas oficiais, aumento da ordem de 16% e indo além dos 16 bilhões, em 1971. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, aquelas corporações criaram mais de 800 subsidiárias de sua propriedade direta, no exterior.
As vendas totais das subsidiárias das citadas corporações instaladas no estrangeiro, oriundas de 180 bilhões de dólares de ativos contábeis, foram superiores em 100 bilhões de dólares ao volume total das exportações mundiais; as vendas das corporações norte-americanas situadas no estrangeiro, em 1970, importaram em cinco vezes o valor das exportações dos Estados Unidos, o que, em suma, significa que a economia daquele país, a persistir tal rumo, acabará por ser mais importante fora do que no interior.
Pelo menos se espera que, por volta de 1975, quase um quarto do PNB norte-americano será produzido por firmas europeias e japonesas. Claro está que o Brasil começa a aparecer como área de crescente interesse para as aplicações das empresas multinacionais, particularmente por força do regime político a que está submetido.
O modelo estabeleceu como princípio, realmente, o que vem sendo conhecido como “economia de escala”, isto é, uma economia oligopolista, em que número reduzido de empresas responde pela produção e pela comercialização, em cada setor, e que, consequentemente, a concentração prossiga sua marcha.
Como explicou, recentemente, o Ministro da Fazenda: “Esta perspectiva histórica nos parece fundamental, no momento em que o Governo do Presidente Médici definiu as condições para a construção, no Brasil, de um sistema econômico suficientemente forte e competitivo, capaz de utilizar plenamente as nossas potencialidades humanas e materiais. Porque é este o momento em que teremos de aceitar o desafio de correr o risco de criar grandes unidades econômicas, que, com os riscos que lhes são inerentes, serão os instrumentos da construção do poder nacional brasileiro”.
Mas, evidentemente, não nos está cabendo criar grandes unidades econômicas; elas estão criadas, pelo capitalismo monopolista de Estado, e operam no Brasil, como em outros países, e operam nas condições que lhes são convenientes, e que poderão ser alteradas, amanhã, porque estão integradas na origem e não onde, eventualmente, por força do lucro, se instalaram.
Recentemente, conhecido monopólio definiu sua distribuição geográfica, na América Latina, escalando a Argentina para produzir máquinas de calcular; o Brasil, para produzir máquinas de escrever tamanho standard; o México, para produzir máquinas de escrever portáteis. A escala, amanhã, como colocou o presidente da Massey Ferguson em relação ao Canadá, pode ser outra; não serão as autoridades nacionais brasileiras que a determinarão.
Um dos mais autorizados intérpretes dos interesses do imperialismo, a que prestou, servindo-o no Brasil, eminentes serviços, definiu o regime brasileiro da maneira seguinte: “Desde 1964, que o Brasil vem sendo governado por uma aliança entre militares e tecnocratas, sendo a classe política relegada temporariamente a um papel secundário. Parece assegurado que o veredito da História pronunciará essa aliança não necessariamente santa, porém rigorosamente útil à luz de dois inquestionáveis frutos: estabilidade política e desenvolvimento econômico. Porvu que ça dure…”
Aos militares, segundo o articulista, coube “a restauração e manutenção da ordem política e de disciplina social”; aos tecnocratas, “racionalizar a conduta econômica, conter a inflação e instrumentar o desenvolvimento”.
A conjugação que foi imposta ao país, realmente, foi de militares, tecnocratas e burocratas. A exclusão dos políticos era inevitável. Porque, sem sombra de dúvida, o que o articulista conhece como “racionalizar a conduta econômica” é, justamente, excluir dela o fator político, estabelecer normas acima das classes, ou melhor, ditas acima das classes, mas, na verdade, a serviço de determinada, ou de determinadas classes.
A omissão, a suposta neutralidade, a aceitação da existência de uma área operativa em que tudo se processasse em termos meramente técnicos, tem sido, de velhos tempos, uma das mais caras imposturas da reação. O imperialismo a vem burilando com esmero.
Mas é claro que não há decisão econômica, nem mesmo financeira, que não tenha razões políticas; não existe economia pura. A economia é feita pelos homens e para os homens; traduz os seus interesses, busca racionalizá-los, mas sempre com determinada posição.
Todo ato, decisão, lei, na área econômica, corresponde — não é demais repetir — a uma transferência de renda: de uma classe para outra, de uma área para outra, de uma atividade para outra. Não há economia, e jamais houve, sem política. O fato de haver leis econômicas universais, isto é, em vigor em todo e qualquer modo de produção, não importa em divorciar a economia da política, não importa em supô-las desligadas da política.
Muito ao contrário.
É a reação que busca sustentar a ideia de que é possível fazer economia sem interferência política.
O mesmo articulista, em outra oportunidade, escrevera que o Brasil ficara livre, com o golpe de 1964, de duas pragas, “quando uma nova geração de tecnocratas se decidiu a fazer mais economia do que política, substituindo ideologia por pragmatismo”.
Não importa mencionar as duas pragas; importa frisar a ideia — cara ao regime — de que o sucesso na economia, do ponto de vista dos interesses dominantes, derivara do distanciamento entre a economia e a política. Por isso mesmo, no referido artigo, o autor afirmava, com ênfase: “inexistem desenvolvimento dependente e independente”.
Isso é tão verdadeiro como dizer que a economia e a política podem ser separadas.
Porque, precisamente, o que caracteriza o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento” é a dependência. A internacionalização da economia, em nossos dias, na área capitalista, não levou, segundo pareceu ao teórico brasileiro, a uma separação entre a economia e a política. Muito ao contrário: levou à derrocada de valores políticos antes caros à burguesia — entre eles, com destaque, o de nação. A burguesia, em escala mundial, já atirara fora, de há muito — e a imagem de Hitler nos faz lembrar isso – a bandeira da democracia.
Atira, agora, a bandeira nacional. As grandes corporações multinacionais, quando operam em áreas subdesenvolvidas, desnacionalizam, essencialmente. O chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento” é criação específica da fase do capitalismo monopolista de Estado, que deforma as estruturas econômicas satelitizadas, enquanto as explora. Ele não apenas impõe a pauperização da maioria do povo; vai mais longe, porque impõe as formas autoritárias de Estado.
O que define o chamado “modelo brasileiro de desenvolvimento” não são os índices quantitativos altos — o Kuwait também os apresenta — mas o regime.
É o regime que o retrata, fielmente, integralmente, verdadeiramente.