(HP 24/09/2010)
O texto que publicamos nesta e nas próximas edições é um dos mais citados na historiografia do país – e, no entanto, um dos menos conhecidos.
“Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro” é a aula inaugural de 1959 do curso regular do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), proferida a 12 de março daquele ano pelo historiador e general Nelson Werneck Sodré.
Pela importância do texto e pela raridade de sua publicação, optamos por não condensá-lo. Portanto, os leitores terão acesso à íntegra da aula de Nelson Werneck Sodré.
O ISEB – órgão do Ministério da Educação – congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o próprio Nelson Werneck Sodré. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento.
A Nação, portanto, era o centro desse pensamento – daí a adoção dos termos “nacionalismo” e “nacional-desenvolvimentismo”. Respondendo àqueles que subestimavam o problema nacional, isto é, o rompimento das amarras de dependência que atrasavam o país, Ignácio Rangel, talvez o maior economista daquela época, definiu deste modo a questão: “A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos” (grifo nosso).
Muito interessante é que certas polêmicas da época reaparecem no debate de hoje – o motivo é simples: há problemas do país, basicamente sua relação com os centros imperialistas, que ainda não foram completamente resolvidos. Portanto, a luta de ideias – e não só de ideias – continua no mesmo terreno.
Uma dessas polêmicas – aliás, a central – estava plenamente acesa em março de 1959, quando a aula inaugural que publicamos foi proferida.
Em 1958, um grupo dentro do ISEB, tendo Hélio Jaguaribe por principal representante, formulara o que eles mesmos chamaram “nacionalismo de fins” (hoje se diria “nacionalismo de resultados”).
Relendo o que Jaguaribe escreveu no livro “O nacionalismo na atualidade brasileira” é muito fácil perceber hoje que o “nacionalismo de fins” era um abandono do nacionalismo. Em suma, enunciava-se que o desenvolvimento não necessitava de uma nacionalização da produção. Para ser mais exato, postulava-se que a nacionalização era um entrave à “eficácia técnica”. Em nome desta, os adeptos do “nacionalismo de fins” aceitavam – aliás, propunham – a privatização inclusive de setores estratégicos, como a petroquímica. Na situação da época, pior do que hoje, era claro o que significava essa privatização: o domínio de setores essenciais da economia nacional por monopólios externos, isto é, por multinacionais.
Não nos é, também, difícil, nos dias atuais, ver a que conduzia esse “desenvolvimentismo sem nacionalismo”, como o chamou Nelson Werneck Sodré, até porque Hélio Jaguaribe se tornou, depois da ditadura, um patrono entre os tucanos. O desastre do governo Fernando Henrique é o próprio obituário do “nacionalismo de fins” – levado às suas últimas consequências, o “nacionalismo de fins” tornou-se o fim do nacionalismo e a tentativa de destruir a própria nação.
Porém, já em 1958-1959, a maioria do ISEB rechaçou o nacionalismo sem nacionalismo – e, na verdade, sem desenvolvimentismo – de Jaguaribe e outros.
A escolha de Nelson Werneck Sodré para realizar a aula inaugural de 1959 reflete a vitória, dentro do ISEB, do setor nacionalista sobre o outro setor, que, depois de sair da instituição, no correr dos anos se tornaria cada vez mais abertamente entreguista.
Já nos referimos, na apresentação de um escrito de Álvaro Vieira Pinto, ao ódio que a reação dedicou ao ISEB, à sua depredação em 1964 e às perseguições que sofreram seus membros logo que a ditadura se instalou.
No entanto, era impossível apagar da História a contribuição daqueles pensadores, de origem e formação tão diversas, mas unidos na tentativa de fazer do Brasil uma grande nação.
Portanto, passemos à aula de Nelson Werneck Sodré – agradecendo outra vez a este grande amigo que é o vereador Werner Rempel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, o envio do texto que hoje passamos a publicar.
C.L.
NELSON WERNECK SODRÉ
Em obediência a uma praxe estabelecida no ISEB, cabe-me pronunciar a aula inaugural, iniciando o contato com os estagiários neste novo ano de atividades regulares. Decidiu a Congregação, e me parece que acertadamente, versasse esta palestra matéria pertinente ao curso que me cabe desenvolver e atendesse ao interesse generalizado que o Nacionalismo vem despertando entre nós. Qualquer que seja a posição face a esse fenômeno central da vida política brasileira, nos dias que correm, não há dúvida que representa um fato de importância indiscutível, configurando um quadro em que essa posição deixa de ser indiferente para ser militante. Só os fenômenos cuja grandeza se traduz por semelhante generalidade e profundidade podem tornar-se divisores de águas. O Nacionalismo, no Brasil, atingiu tal magnitude. Cumpre, pois, analisar as suas raízes, uma vez que, na vida das coletividades, nada acontece por acaso, tudo tem o seu momento próprio e decorre de condições concretas. A tarefa que me cabe, pois, resume-se em demonstrar, pela análise histórica, que o Nacionalismo não só tem raízes profundas entre nós, como ainda, o que é fundamental, só poderia ter ocorrido agora, e não antes, e não poderia deixar de apresentar-se, nesta fase, com a força que não lhe podem negar, mesmo os seus mais ferrenhos adversários. Entre estes cumpre, desde logo, situar, como esmagadora maioria, os equívocos – aos quais se aplica a frase já bastante conhecida que os define como os que “perderam o fio da história”.
Em todos os momentos, na vida individual como na vida coletiva, há, realmente, uma contradição entre o que está morrendo e o que está nascendo, entre o que pertence ao passado e o que pertence ao futuro. Quando o que nasce adquiriu a força necessária para vencer a resistência do que morre, diz-se que “perderam o fio da história” aqueles que se apegam ao que morre. Os últimos desaparecem com o próprio passado. Vivem agarrados ao que se dissolve a cada dia, defendendo-se por vezes bravamente, e outras vezes valendo-se apenas de teorias confusas, formulações abstratas e doutrinações subjetivas, em que, não raro, existe o brilho aparente do virtuosismo e uma esmerada técnica no tratamento dos assuntos. Essa desumanização dos especialistas é, certamente, um dos espetáculos mais tristes da luta entre o que está morrendo e o que está nascendo, no Brasil de hoje, e não espanta nem surpreende que o insulamento em determinado campo específico se assemelhe tanto à defesa de baluartes largamente protegidos por obras artificiais, o fosso, a levadiça, a seteira, de que foi pródiga a crônica medieval.
Humanizar o especialista é, assim, uma das tarefas a que a renovação dos estudos brasileiros se vem propondo, obrigando-o a olhar o que se passa em redor, a sentir a realidade, a compreender aquilo que não está nas suas fórmulas, a responder adequadamente ao concreto, fora de cujo campo tudo definha e se corrompe. O novo corresponde, por isso mesmo, a uma visão de conjunto, em que as partes se compõem na sua relatividade, e denuncia todas as ideias como historicamente condicionadas, isto é, peculiares a determinado tempo e a determinado meio, e jamais eternas e absolutas, receitas universais diante das quais todos se deveriam curvar sem análise.
Quando determinada formulação, como encantatória, polariza as atenções, ganha o pensamento da generalidade e aprofunda os seus efeitos, nega-la é mais do que uma infantilidade, porque é um erro. Os que, ante o Nacionalismo, que agora empolga nosso País, se coloca na atitude irônica, cética ou negativista, denunciam o rompimento com a realidade, o desprezo pelo concreto, a aversão ao objetivo – “perderam o fio da história”.
Seria difícil fazer a análise desse fenômeno político acompanhando a sua lenta e laboriosa gestação, quase sempre inconsciente. Na impossibilidade de apresentar, na sequência ininterrupta a que o cinema nos habituou, o desenvolvimento daquela gestação, até a sua passagem do domínio inconsciente para o domínio consciente, quando se incorpora à realidade e afeta todas as suas manifestações, preferimos a técnica dos cortes. No largo, agitado e aparentemente confuso evolver da vida brasileira, selecionamos três cortes apropriados, em três fases características de transformação institucional: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Pela simples comparação dos quadros, verificaremos o que era novo em cada momento, e o que era velho, e como, inevitavelmente, o velho cedeu lugar ao novo – e que o novo de determinada etapa passa a ser o velho da futura, e assim se desenvolve a história, e por isso mesmo é que é história.
Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes, no Brasil, e esclarece que, no total, cerca de um milhão e duzentos mil são escravos. Para fins de raciocínio, admitamos que a população tenha sido esta, numa faixa de tempo que vai da segunda metade do século XVIII aos dois primeiros decênios do século XIX – a faixa em que se processa a autonomia. Ela não acontece por acaso: assim como a descoberta e o povoamento foram consequência da Revolução Comercial, a Independência está vinculada à Revolução Industrial. É a Revolução Industrial que exige a ruptura do regime de monopólio de comércio, que era a própria razão de ser da dependência, naquela fase, em relação à metrópole. Que é a colônia, na segunda metade do século XVIII? Tínhamos atingido, geograficamente, a desmedida expansão territorial que hoje é uma das bases de nossa força. Os limites estabelecidos pelo Tratado de Madrid são, mais ou menos, os limites do Brasil atual. O povoamento, entretanto, é ganglionar e, nessa imensidade territorial, apenas algumas áreas têm vida econômica ativa. No extremo norte, há uma atividade meramente coletiva, propiciada pelo quadro das especiarias amazônicas e que será substituída pelo primado do algodão maranhense. No Nordeste, prevalece o regime escravista, com a produção açucareira atravessando uma crise que provém da concorrência, que a metrópole agrava com as taxas, e da valorização do escravo, acarretada pela mineração. No Centro, a atividade mineradora inicia o seu declínio, depois de ter aberto as perspectivas de um mercado interno que impulsiona inclusive a circulação terrestre, com os tropeiros, os registros e o sistema fiscal extorsivo imposto pela Coroa. No Extremo Sul, com o advento da charqueada, a carne apresenta-se agora como bem econômico; em vez de lutar apenas pelo gado, o gaúcho terá de lutar também pelas pastagens; os campos começam a sofrer a apropriação, surgem os aramados e o espaço livre fica reduzido aos “corredores”. Toda a produção colonial se destina aos mercados externos, salvo o charque. Nela avulta, pelo seu caráter específico, o ouro. É a mineração, realmente, que inaugura uma etapa diferente na vida brasileira do século XVIII.
O sistema colonial fundamentara-se, desde o início, no binômio terra-escravo – mas é inegável que o escravo era mais importante do que a terra, era mesmo a mercadoria por excelência. O desenvolvimento açucareiro articulava-se numa divisão de atividades e de lucros: ao senhor territorial pertencia a produção, à metrópole pertencia a circulação. Enquanto essa divisão funcionou de modo a proporcionar vantagens a cada uma das partes, a classe dos senhores de terras e de escravos, que era a classe dominante, funcionou na colônia como mandatária da metrópole, era a sua procuradora natural, a sua representante, uma vez que os interesses eram comuns. Ora, tal divisão não ocorreu na área mineradora: a metrópole operou a fundo uma total invasão do domicílio do explorador direto, fazendo-se dona do que era produzido e da transformação do que era produzido em valor. Não existiu, assim, na área mineradora, a mesma comunhão de interesses entre a classe dominante e a Coroa. Os motins sucessivos assinalam essa contradição. Ao aproximar-se o fim de século, a Inconfidência Mineira revela o clima que ali se criara.
Do ponto de vista social, a população se repartia em senhores de terras e de escravos, que compunham a classe dominante, e pessoas livres, que não viviam da exploração do trabalho de outrem, constituindo-se uma camada social instável, sem função na estrutura vigente e sem qualquer poder político. O aumento numérico dessa camada intermediária – uma vez que depois dela vinha o escravo, sem nenhum direito, objeto de troca e instrumento de trabalho – constitui o fenômeno importante da segunda metade do século XVIII. Tal camada constitui o mercado interno que aparece no centro-sul. Uma parte gera a incipiente vida urbana que então começa marcar o quadro colonial; outra parte vai operar a transição do regime escravista para o regime feudal e semifeudal, que o substitui em vastas áreas, particularmente no interior. O elemento livre, insuscetível de escravização, transforma-se em servo. A parte que vive nas vilas e cidades, e que forma o grosso dos quadros administrativos, representa a fração instável, que alimenta as conspirações e os motins. No quadro minerador, ela tem importância – como no sul pastoril – porque preenche determinadas funções, a militar, a religiosa, a judiciária: a Inconfidência Mineira será uma conspiração de padres, letrados e militares.
Tal cenário não apresenta sintomas de alteração até o momento em que a conjugação entre o interesse da classe dominante e o interesse da metrópole não sofre perturbações. A crise açucareira traz a primeira perturbação; a espoliação mineradora agrava o problema. A ideia de libertação, de rompimento dos laços de dependência, surge primeiro na camada intermediária, porque é a mais profundamente interessada em alterar a estrutura vigente. O Brasil está, no entanto, suficientemente fragmentado para que a metrópole trate cada um dos focos de per si, reduzindo-os brutalmente, e bastante submisso, porque a classe dominante receia lançar-se à empresa da luta contra a taxação. Qualquer movimento, nas condições da época, que não contasse com o apoio da classe de senhores territoriais e de escravos estava condenado ao malogro. Qualquer movimento que não superasse a fragmentação geográfica, por outro lado, estava sob a poderosa ameaça de um tratamento isolado.
Ora, a Revolução Industrial, no quadro externo, vem proporcionar justamente as condições que faltavam aqui. O aumento vertical, produzido pela máquina, no volume e na variedade das mercadorias, impunha a abertura de novos mercados e a ampliação dos existentes. Quando Napoleão invade a península ibérica, derrocando as cortes metropolitanas, cria a circunstância favorável à reforma que se impõe nas áreas coloniais americanas. À Inglaterra, que comanda a transformação econômica, interessa rasgar a clausura, romper o regime de monopólio comercial, eliminar as metrópoles intermediárias, estabelecer a troca direta. Isto interessa também à classe dominante colonial, que, eliminando o monopólio que a metrópole mantém sobre a circulação, vai realizar os valores do que produz em seu próprio benefício. Deixa de associar-se à metrópole para associar-se à burguesia européia. À Inglaterra interessa, ainda, a transformação do regime de trabalho: a ampliação de mercados só é possível onde o trabalhador vive de salário. Daí a sua pressão contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo. Mas nesse ponto não encontra apoio na classe dominante colonial, interessada no comércio livre, mas não no trabalho livre. Os acontecimentos mostram o acordo que se estabelece entre as forças em presença: a abertura dos portos, a montagem de um aparelhamento administrativo próprio, a Independência, o reconhecimento da Independência e a prolongada luta inglesa contra o tráfico. Essa luta corresponde, no Brasil, a uma resistência da classe dominante, que se prolonga praticamente da Independência à República. Essa classe tinha condições para durar na resistência porque se valia do crescimento vegetativo da massa escrava. Os elementos diretamente ligados ao tráfico negreiro, investimento importantíssimo na época, não tinham, porém, a mesma capacidade de resistência, e há, desde então, uma progressiva transferência de capitais daquela atividade para outras, inclusive as que aparecem na segunda metade do século XIX, após a lei Eusébio de Queirós, atividades de transporte, atividades industriais, serviços públicos etc.
O cenário em que se processou a Independência apresenta-nos alguns aspectos interessantes. Convém destacar aqueles que mostram a solução das contradições então existentes. Em primeiro lugar, é fácil perceber que o Brasil não tinha povo e, assim, a sua sorte seria decidida quando a classe dominante, de senhores de terras e de escravos, esposasse o ideal da emancipação. Em segundo lugar, é ainda fácil perceber que a emancipação seria limitada àquilo que interessasse à classe dominante, única a deter poderes suficientes para lutar. Por último, é ainda interessante acentuar que, apesar de tudo, quando a referida classe aceita a participação numa empresa como a da autonomia e pretende configura-la à sua imagem e semelhança, está lançando a semente de transformação futura, quando não será a única a decidir de uma transformação. Pode, na segunda década do século XIX, negar a abolição do trabalho escravo; na penúltima, estará interessada na abolição. Cada fase traz em germe, assim, a transformação posterior.
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Vejamos, agora, da mesma forma sumária e com as deficiências peculiares ao inevitável esquematismo, como se apresenta o quadro em que o Brasil abandona as instituições monárquicas e adota o regime republicano. O quadro físico é constante e não há que referir os seus aspectos. A população cresceu, entretanto, o cálculo, agora, apresenta quatorze milhões de brasileiros. Isto, por si só, seria importante. Mais importante, porém, é a composição demográfica: os escravos, no momento da abolição, mal somam setecentos mil, e há províncias que se livraram desse regime de trabalho sem grandes tropeços, antes mesmo da lei de 1888. Dos quatorze milhões, calcula-se em trezentos mil os que são proprietários, compreendido os parentes e aderentes. Há, então, maioria esmagadora de não proprietários, e já não há escravos. São todos trabalhadores livres, repartidos em classes: é possível mencionar a existência de uma classe média e naturalmente uma classe média peculiar a um povo de formação colonial. É possível falar em trabalhadores, embora seja ainda prematuro falar em operários. Há operários porque há indústrias – indústrias de bens de consumo, naturalmente, que explicam o crescimento do mercado interno e a transferência de capitais de determinadas áreas de aplicação para outras –, mas tais operários, recrutados nas sobras do campo, já nesse tempo, ou nas correntes imigratórias, carecem de significação política. Há muitas atividades novas, além das indústrias: cresceu desmedidamente o aparelho do Estado, aparecendo o malsinado, mas bem pouco analisado, empreguismo; desenvolveu-se muito a atividade mercantil, tanto no setor interno como no setor externo. Em determinadas faixas, particularmente as litorâneas, há um mercado consumidor apreciável. As oscilações da política econômica e financeira refletirão esse novo quadro. Nele há, evidentemente, contradições, que, em todo o decorrer da segunda metade do século XIX, não cessam de crescer. Começa a ruir muito depressa a velha estrutura colonial. Em grandes áreas, há sinais visíveis de uma existência que busca assemelhar-se à européia.
Na última parte do século XIX, realmente, operaram-se, no Brasil, transformações de importância. Algumas são ostensivas, não escapam à observação de qualquer viajante: há, agora, um quadro urbano específico, em que a divisão do trabalho apresenta a sua variedade; há serviços públicos que oferecem um mínimo de conforto às populações citadinas, particularmente para a locomoção e a iluminação; há meios de transmissão do pensamento, como o telégrafo e, depois, o cabo submarino; há meios de transmissão de ideias, como a imprensa e o livro. As profissões ditas liberais – e assim chamadas porque peculiares aos homens livres – ampliam os seus horizontes. O comércio cresce e já movimenta importante volume de mercadorias. O aparelhamento administrativo está sempre a exigir novos quadros e nele começa a se destacar o setor financeiro. A embrionária rede bancária das primeiras décadas do século foi substituída por uma estrutura de crédito que mostra a sua importância logo depois da República, quando surge a questão da pluralidade nas emissões.
Como estamos ainda na fase em que tem cabimento o lugar-comum de que somos um país “essencialmente agrícola”, é fácil verificar que todas essas transformações e todas essas inovações se originam no campo. O que aí se passou, realmente, altera bastante o panorama brasileiro. O açúcar, que detinha posição ainda importante, quando da Independência, estava agora praticamente alijado dos mercados externos, e os elementos ligados à sua produção dependiam de medidas protetoras do Governo. Surgira o fenômeno da borracha, trazendo muitas e desmedidas ilusões. Cacau, tabaco, madeira, couros, figuravam na exportação. Mas, nela, aparecia, com índice ascensional e força extraordinária, o café. Partindo do Município Neutro e ganhando as terras fluminenses para, depois, passar ao Vale do Paraíba, o café fizera a grandeza do Império, alicerçara o primado do centro-sul, fundamentara a tarefa unificadora e centralizadora empreendida pela monarquia e, principalmente, dera à balança do comércio externo os saldos que permitiram ao Brasil realizar as transformações ostensivas já mencionadas. É do café, realmente, que surgem os recursos para o aparelhamento material do País, a manutenção do aparelho político e administrativo, a construção dos portos e ferrovias. Dele originaram-se, ainda, e com função destacada, os capitais que, em circunstâncias favoráveis, foram investidos em atividades industriais. Quando o século se aproximava do fim, a lavoura do café não só se libertara do regime escravista como aceitara transformações outras que a estrutura ainda colonial da produção açucareira tornava impossíveis. Há, no Brasil, no fim do século, uma área agrícola estacionária. Nesta, aparece um mercado interno cuja capacidade de consumir vai em ascensão contínua; nesta, a capacidade aquisitiva apresenta aquela paralisia que hoje nos alarma. O monopólio prático dos mercados proporciona ao ritmo ascensional da expansão cafeeira uma espécie de euforia. Nos fins do século, e principalmente nos primeiros anos do século seguinte, começam a aparecer os primeiros sinais de que a euforia não tinha sólidas bases.
O cenário da sociedade é também muito diverso daquele que a Independência apresentava. A classe dominante continua a ser a dos senhores de terras. Já não são senhores de escravos, porém – e a transformação fundamental está na passagem do regime escravista para um regime latifundiário e feudal, em que o pequeno produtor sem posses está vinculado ao senhor de terras por laços não institucionais. Há, por outro lado, uma cisão, que tende a se aprofundar, entre os que ancoraram nas lavouras velhas, seja de açúcar, seja de café, numa atividade predatória a que só por eufemismo se pode chamar de agricultura, e os que exploram a terra sob o regime de trabalho a salário, embora esse regime sofra os agravantes próprios de um meio em que o trabalho livre ainda sofria as mazelas do longo domínio do trabalho servil. De qualquer modo, os interesses do senhor do engenho não são, face a alguns problemas importantes, os mesmos do fazendeiro de café, os deste divergem dos que se especializaram na criação pastoril, e o seringalista se apresenta com uma face também diferente. A classe dominante diverge, em algumas faixas importantes, entre as quais passa a destacar-se a do câmbio e a do regime de trabalho.
Aquela camada média que, desde a mineração, surgira em algumas áreas, e particularmente no centro-sul, crescera em número e encontrara acomodação social com a multiplicação das atividades. Embora estivesse comprometida em suas atividades pela origem de grande número de seus componentes, recebera também consideráveis reforços de outra origem e, entre estes, avultaria o dos militares de terra. O desenvolvimento das atividades comerciais lhe fornecera parcela ponderável. A decomposição familiar da classe dominante já apresentava o espetáculo dos detentores de nomes tradicionais que se resignavam em modestos cargos públicos. Quando da passagem do século, os cursos jurídicos que, na sua fundação, se destinavam a prover, com elementos classificados – numa época em que o diploma e o anel de grau classificavam –, os quadros do Estado, particularmente os políticos, começavam a mostrar razoável contribuição de elementos qualificados.
Vinha, por último, a classe que fornecia o trabalho manual, a que a tradição servil duplamente onerara, com o estigma e o baixo nível de remuneração, repartida desigualmente entre o campo e a cidade, naquele reduzida a condições de vida próximas da servidão ou especificamente de servidão, e nesta limitada a determinados setores que a estreiteza do artesanato permitia e o número reduzido de estabelecimentos fabris e comerciais proporcionava. Que era povo, na fase a que nos referimos? Povo era tudo aquilo que não vivia do trabalho de outrem e compreendia, portanto, a maioria esmagadora da população. Nesse total bruto, no entanto, é fácil verificar um líquido, reduzido numericamente, de elementos que estavam interessados na vida política, entendida em toda a sua amplitude. A estes, a estrutura do regime monárquico não conferia papel algum, e a própria escolha eleitoral, ainda depois da reforma da lei primitiva, discriminava profundamente. Nos últimos anos do Império, era ainda possível fazer um senador vitalício com duas centenas de votos.
A monarquia estivera, desde a Independência, na posição de mandatária da classe dominante, dos senhores territoriais, que enobreceu com títulos. Representara, naquela fase de transição, a saída mais fácil, a ânsia em manter tudo o que era colonial, não sendo colônia. À medida que o Brasil se transforma, e se transforma relativamente depressa na segunda metade do século XIX, o regime se incompatibiliza com os seus suportes naturais. Caminhava para a situação em que decaiu, de uma aposentadoria por inútil. Desde os fins da guerra com o Paraguai, novas ideias atraíram os elementos novos na sociedade. A força do que era velho, porém, ainda era muito grande, e o malogro da experiência pioneira de Mauá demonstra, com clareza exemplar, a falta de ressonância econômica para os empreendimentos de sentido progressista. Que era o velho, nos fins do século? Era o trabalho servil, o regime monárquico emperrado, a centralização, a política financeira ortodoxa, a falácia da solução dos contínuos empréstimos externos, a franquia total aos investimentos sob garantias as mais amplas, como aquela que permite a uma ferrovia a exploração monopolista, por noventa anos, do transporte entre o maior centro distribuidor e o maior centro exportador do país.
Na época da Independência, qualquer transformação dependia do apoio da classe dominante de senhores de terras e de escravos. A composição social e os interesses em jogo agora eram outros – mas a classe dominante permanecia a mesma. Qualquer transformação dependia ainda de seu apoio, embora não mais de um apoio unilateral. A República decorre justamente da composição de forças entre uma classe média que disputava a participação no poder e de uma fração da classe dominante cindida, aquela que se emancipara do que o Império era a representação característica, a lavoura nova do café. Quando a circunstância favorável surge, essa composição de forças não tem mais do que alijar o trono. A partir daí, no entanto, assiste-se a um movimento inverso: a luta da classe territorial para expulsar do poder os elementos de classe média, que eram os militares, recompondo-se, para isso, a unidade dos velhos tempos.
A referida luta é que provoca os incidentes do governo de Deodoro e, principalmente, os que pontilham o período em que Floriano detém as rédeas do poder. Um cronista apressado, de quem se repete informação inidônea, afirmou que a queda do Império fora assistida com indiferença pelo povo. A falsidade da informação fica demonstrada no largo movimento de opinião que permite a Floriano resistir às correntes que contra ele se montam, movimento apaixonado, vibrante, trazido para a rua e, mais de que isso, desembocando na arregimentação de forças, que é a defesa do Rio contra a esquadra rebelada. Floriano representa, tipicamente, a classe média, que começa então a disputar um papel político. E a própria difusão do positivismo nessa classe revela a solução fácil que permitia a defesa de posições progressistas sem rompimento com valores éticos tradicionais.
A composição entre a classe média e a facção economicamente mais poderosa da classe territorial seria rompida com os episódios que se seguem à proclamação do novo regime. E terminaria, com os presidentes paulistas, isto é, os representantes da lavoura cafeeira, por conduzir a um total alijamento da classe média. Esse alijamento se completa quando Campos Sales chega ao poder. Define-se, em seu governo, pela reforma dos empréstimos externos, com o serviço das dívidas previsto no funding, pela orientação financeira, que pretende paralisar o assustador desenvolvimento, para a época, de novas empresas – de que o episódio do encilhamento fora uma singular caricatura –, e, particularmente, pela chamada “política dos governadores”, que consistia em entregar os Estados às oligarquias, para que os explorassem como fazenda particular. Dentro dessa repartição de poderes – em que o governo central, para realizar a sua política financeira, buscava a paz por meio da transformação política do país em feudos federados – os pleitos eleitorais eram resolvidos sumariamente pelas combinações de cúpula, no revezamento entre representantes dos grandes Estados, e pela execução resumida nas atas falsas e nos “reconhecimentos” adrede preparados. Reinava a paz em Varsóvia. Tudo isto significava, na verdade, que a classe dos senhores territoriais, de proprietária natural e indisputada de coisa pública, que fora no Império, necessitava agora articular todo um complicado sistema de compressão para defender o seu predomínio. E a República, por isso mesmo, vai assistir a uma sucessão de tumultos, de motins, de perturbações, de que as mais características são as campanhas de Rui Barbosa, particularmente a segunda, as “salvações” empreendidas pelo Governo Hermes, a revolta da esquadra com João Cândido para, em pleno século XX, abolir a chibata e, finalmente, o movimento tenentista que reflete, com a força crescente da classe média, as inquietações represadas.
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Vejamos o terceiro corte, que ocorre com a Revolução Brasileira, isto é, praticamente em nossos dias. O seu processo tem início com a Revolução de 1930. Pouco estudado, até agora, esse episódio característico, que constitui um divisor de períodos históricos, marca, outra vez, a composição entre uma facção da classe dominante de senhores territoriais – representada, no caso, pelo governo de três estados da federação, e a classe média, representada particularmente pela contribuição tenentista. Da parte da classe trabalhadora há uma expectativa simpática. A nova composição, a que se sucederá, outra vez, a luta interna pelo poder e o rompimento consequente, opera-se agora, porém, em condições muito diversas: a classe dominante é menos poderosa, a classe média é mais forte, a classe trabalhadora começa a participar da vida política. Essa composição traduzia as alterações ocorridas no campo econômico, entre a República e a Revolução.
A mais grave, pelas suas implicações imediatas, foi a que afetou o regime da monocultura. O café passara de predominante a absoluto, na balança de comércio externo, tornando-se o eixo da vida nacional. Tudo o que produzíamos era consumido no interior, menos o café, que fornecia os recursos com que nos aparelhávamos. Enquanto dominamos os mercados, tudo correu mais ou menos normalmente, traduzindo-se na euforia a que nos referimos. Nos fins do século XIX e particularmente no início do século XX, o cenário já não era o mesmo, e sucessivas crises surgiram no mercado externo. Tais crises, com o domínio político da classe territorial, correspondiam, sucessivamente, a uma concentração dos lucros e uma distribuição magnânima dos prejuízos – tratava-se, em suma, de socializar as perdas. Essa socialização singularíssima vai provocar a contradição entre a classe territorial e as demais classes.
Mas existe ainda a contradição entre os senhores de terras que produzem café e dependem da exportação e de toda a política econômica, particularmente da tarifa e do câmbio, que regula a exportação, e os que produzem o que se destina ao mercado interno. Esse mercado interno corresponde agora a uma população da ordem de cinquenta milhões, caminhando para setenta milhões em nossos dias, não sendo demais admitir que, no total, o mercado seja representado por vinte a trinta milhões. Trata-se, é bem de ver, de um mercado de importância. E tanto é importante que vem merecendo tratamento especial da parte das forças econômicas externas, que o disputam, e quase sempre o conquistam, em condições também quase sempre onerosas para as forças econômicas internas, cujo crescimento é acelerado.
A pressão externa, que não cessa de avultar, sofre, porém, três pausas pouco intervaladas: a guerra mundial de 1914-1918, a crise de 1929 e a guerra mundial de 1939-1945. Essas três pausas permitem à estrutura nacional de produção dar três saltos e, mais do que isso, altera fundamentalmente a fisionomia econômica do país. Seria impossível analisar em detalhes os efeitos dessas pausas, aqui. Cumpre mencionar, no entanto, que permitiram à capitalização nacional o transitório desafogo em que fortaleceu para enfrentar as pressões inexoráveis que se sucederam a cada uma. Essa capitalização operou-se particularmente pela possibilidade de montar um parque industrial de substituição de importações, com todos os reflexos que tal industrialização espontaneamente acarreta, e pela possibilidade de transferir recursos de um campo para outro, do campo agrícola para o industrial, do campo do café para o do algodão etc. A pausa nas importações, por outro lado, permitia, também espontaneamente, que se acumulassem recursos no exterior. A dilapidação impressionante desses recursos, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial, corresponde a um dos erros mais clamorosos já cometidos contra o país – e mostra como a classe dominante não atendia aos interesses do conjunto, mas apenas aos seus próprios interesses.
Se a transformação na economia fora profunda, na fase que decorre entre os antecedentes da Revolução de 1930 e os nossos dias, a transformação social lhe refletira os efeitos com celeridade surpreendente. A classe dominante continuaria a ser representada pelos senhores territoriais, mas já sem condições para manter-se sozinha no poder e, progressivamente, sem condições para orientar a vida nacional segundo os seus exclusivos interesses. O crescimento numérico e o amadurecimento político da classe média foi um fenômeno de importância inequívoca, cujos reflexos logo se fizeram sentir na seriação dos acontecimentos, seguindo as oscilações próprias dessa classe. O fator mais importante, porém, seria o advento de uma classe trabalhadora em que o operário definia nitidamente o seu campo e entrava a participar da vida política com uma força inédita no Brasil. A pressão das forças econômicas externas encontrava resistências ou apoios diferentes e contraditórios nessa estrutura social que traduzia as transformações ocorridas na estrutura econômica interna. A velha associação entre a classe territorial e a metrópole, sucedida pela associação entre a classe territorial e a burguesia européia que liderava a Revolução Industrial, seria substituída pela associação entre aquela classe e as forças econômicas externas que lutavam pelo domínio do mercado nacional. Havia perfeita consonância de interesses entre umas e outras. A referida classe declinara em poder, efetivamente. Mas, na mesma medida que perdia sua própria força, recebia uma ajuda importante do setor da burguesia vinculado ao comércio exterior. Pela função que o comércio exterior exerce, quem o controla adquire o controle do país. Assim, as contradições tornaram-se flagrantes na disputa pelo mecanismo que se refere a mercadorias, mas também, e principalmente, no que se refere ao movimento de capitais.
Este movimento, por sua vez, trazia a contradição para o mercado interno, disputado pelo investimento nacional, enfrentando todas as dificuldades, e pelo investidor estrangeiro, coberto de todas as proteções. A progressiva e inexorável expulsão dos capitais nacionais das áreas de alta rentabilidade agravou profundamente o choque de interesses. De outra parte, a velha regra de socializar os prejuízos encontrava, cada vez mais, resistências tenazes e politicamente organizadas quer na classe média, quer na classe trabalhadora, a que se atirava, de preferência, o ônus de uma continuada espoliação. É curioso que se tenha levantado, nesta fase, o problema da não intervenção do Estado na vida econômica, cobrindo-se algumas de suas intervenções, não combatidas, sob o eufemismo de “ação supletiva”. Qualquer estudante de curso secundário sabe que a intervenção na vida econômica existe desde que o Estado existe. Não provocou debate e controvérsias enquanto a posse unilateral do poder ocultava o problema, uma vez que o Estado funcionava, na tonalidade de suas manifestações, como instrumento de uma só classe. O que traz a controvérsia a primeiro plano, encoberta, aliás, quase sempre, por abstrações doutrinárias, e não clarifica pela situação concreta, é o fato, novo na vida brasileira, de agora termos no poder, não apenas a classe territorial, mas esta e representações ponderáveis da classe média, daquilo que se convencionou chamar de burguesia nacional. Uma vez que o Estado ora atendia aos interesses antigos, ora aos novos, tornava-se necessário levantar o problema de um Estado neutro, abstrato, subjetivo, que realizasse o milagre de não existir, porque proibido de atuar, todas as vezes em que sua intervenção tende a favorecer ou simplesmente a tolerar as forças novas, agora presentes e mobilizadas em nosso país. Todas essas contradições deveriam provocar reflexo na vida política, agitando-se, sob os mais diversos pretextos. O amadurecimento proporcionado pelo novo cenário em que vivemos, quando as classes definem precisamente os seus campos e mobilizam-se para a defesa dos interesses, intervindo na escolha eleitoral e na composição das forças e na constituição do poder, configura o espetáculo de tomada de consciência a que vamos assistindo. É nesse espetáculo que aparece, como uma singularidade para os desatentos, com profundas razões para os pesquisadores, o problema do Nacionalismo.
Por que Nacionalismo? Porque, agora, são as forças econômicas externas o mais poderoso obstáculo ao nosso desenvolvimento, e os seus aliados internos declinam em resistência, já não tutelam o país. Realizar-se nacionalmente, para um país de passado colonial, com estrutura econômica subordinada a interesses externos, corresponde a uma tarefa em muitos pontos idêntica à que os países europeus realizaram, no alvorecer da Idade Moderna, com a derrota dos remanescentes feudais e o avanço da capitalização. O que, para eles, eram as relações feudais, antepondo-se ao desenvolvimento, é, para nós, tudo o que reflete ainda o passado colonial. O Nacionalismo apresenta-se, assim, como libertação. De seu conteúdo libertador provém o teor apaixonado de que se reveste e que leva os seus opositores a considerá-lo mais como paixão do que como política. Conviria acentuar, no caso, que não existe paixão pelo abstrato, e que o Nacionalismo traduz uma verdade – a verdade do quadro histórico, e a verdade é concreta.
Aos que sentem dificuldade em situar o Nacionalismo no campo econômico, julgando falsas as afirmativas de que se apresenta como um escudo ante formas variadas de verdadeira agressão externa, é talvez mais claro o quadro político cujas linhas estão precisamente definidas. Nesse cenário, o Nacionalismo representa o ideal democrático, só esposado pelas classes em ascensão, que necessitam da liberdade como o organismo humano de oxigênio, que vivem do esclarecimento da opinião, que precisam discutir e colocar de público. Precisam, mais do que tudo, do apoio popular, e só isso revela o caráter democrático, essencial, da posição nacionalista. As forças opostas, muito ao contrário, perderam as condições para a vida ostensiva e exercem variadas e repetidas tentativas de limitação de franquias, de restrições às opiniões, de redução do jogo político às velhas fórmulas da combinação de poucos, das decisões clandestinas, das articulações de cúpula, com um horror característico ao que é popular.
O Nacionalismo aparece, pois, num cenário histórico em que é a saída para uma situação real difícil, cujos sintomas ocorrem na existência cotidiana. Corresponde a um quadro real, a necessidades concretas – não foi inventado, não surge da imaginação de uns poucos, não vive da teoria mas da prática. É uma solução espontânea, e esta aparece como das suas limitações e traduz a dificuldade em assumir formas organizadas de luta política. Organizado, é invencível. O teor de paixão que o acompanha, sinal positivo de sua força e não sintoma de fraqueza, assinala a generalidade e a profundidade de seus efeitos: revela que o Nacionalismo é popular, o que não pode surpreender a ninguém, uma vez que só é nacional o que é popular.
Não procedem as comparações, solenemente apresentadas, como acusatórias, de que o Nacionalismo é historicamente inatual – o colonialismo também o é – e que pode levar ao que levou em outros países, em particular na Alemanha e na Itália, recentemente. Esta claro que o Nacionalismo pode levar a tudo, mas não há qualquer parentesco entre a situação apresentada por um país como o Brasil, de estrutura econômica ainda fortemente eivada de colonialismo, e as nações, como as apontadas, em que a ordem capitalista estava plenamente instalada. E seria simples, aliás, estabelecer as distinções pela comparação fácil: as forças econômicas que ajudaram o nazismo e o fascismo são as mesmas que se opõem, aqui, ao surto nacionalista.
O Nacionalismo surge da necessidade de compor um novo quadro conjugando interesses de classe, reduzindo-os a um denominador comum mínimo, para a luta em defesa do que é nacional em nós. É o imperativo de superar a contradição entre a burguesia nacional e a classe trabalhadora que adota o Nacionalismo como expressão oportuna de uma política. É a compreensão de que só passando a segundo plano, sem negá-la ou obscurece-la, a contradição entre a classe que fornece o trabalho, e que ganha em consciência cada dia que passa, e a classe que necessita realizar-se pela capitalização com os recursos nacionais e seu adequado aproveitamento, poderemos subsistir como nação que apresenta o Nacionalismo como solução natural e lhe dá essa força, essa penetração e esse poder catalisador que a simples observação registra.
Criar todos os obstáculos à composição de um quadro em que se harmonizem as forças interessadas no desenvolvimento nacional, torna-se, assim, a tarefa essencial dos que lutam contra o Nacionalismo, dos que nele vêem a ameaça direta ao que representam, dos que verificam a existência de uma possibilidade para o Brasil superar o que nele existe de colonial, realizando-se como nação. O processo mais simples para dividir as forças cuja tendência natural é a articulação, consiste em estabelecer como fundamental a contradição que as separa, agravando as condições de vida, para levar ao desespero os que trabalham e à angústia os que compõem a gama variada da classe média. Daí os perigos de uma política econômica e financeira que gera as condições de incerteza e propicia as de subversão, e as anomalias de exportar capitais um país faminto de capitais, de criar dificuldades ao aparelhamento das empresas que operam com capitais nacionais, de sistematizar a desesperança dos que têm o direito de esperar tratamento igual, quando não preferencial, pelo simples fato de aqui viverem, investirem e trabalharem.
Ora, que é velho e que é novo, nesta fase? É velho, sem dúvida, o quadro do campo, em que relações semifeudais impedem a ampliação do mercado interno; é velha a política de socializar os prejuízos, reduzindo o poder aquisitivo da massa demográfica ascendente; é velha a orientação de relegar o Estado à inércia; é velho o mercantilismo que se traduz numa curva ascensional em volume e decrescente em valor; é velha uma norma que nos aprisiona nos moldes de fazenda tropical produtora de matéria-prima para industrialização externa; é velho o que nos subordina a razões externas, por legítimas que sejam no exterior; é velha, particularmente, a ideia de que o Brasil só se pode desenvolver com ajuda alheia e, principalmente, com capitais estrangeiros.
E que é novo? Nova é a composição social que inclui uma burguesia capaz de realizar-se como classe e começa a compreender que a sua oportunidade é agora ou nunca, e que apresenta a classe média atenta e ideologicamente receptiva, pela maior parte de seus elementos, ao clamor que se levanta do fundo da história no sentido de que nos organizemos para a tarefa que nos cabe realizar, e uma classe trabalhadora que adquiriu consciência política e se mobiliza, a fim de partilhar do empreendimento nacional, vendo nele a abertura de perspectivas ao seu papel histórico. Novo é, pois, o povo. Nada ocorrerá mais sem a sua participação. Nova é a indústria nacional, superada a etapa de bens de consumo e iniciada a de bens de produção, limitada embora pelo atraso na capacidade aquisitiva do mercado interno e onerada por uma política de obstáculos e de dúvidas. Volta Redonda é o novo que afirma a nossa capacidade de realização sem interferências. Novo, em suma, é o Nacionalismo que corresponde ao que nos impulsiona para a frente e rompe com o que nos entrava e entorpece.
Entre o novo e o velho, a escolha não é difícil. Entre o passado e o futuro, a dúvida não existe. Nós escolhemos o futuro. Não pretendemos “perder o fio da história”.