Nenhum dos 99 corpos identificados consta da denúncia que embasou a ação no Rio

Governador do Rio praticou a mais letal operação. Parente chora diante de um corpo (Foto: Pablo Porciuncula - AFP)

Chacina com 121 mortos expõe a ação eleitoreira de Cláudio Castro e a retórica do “narcoterrorismo”. ONU e Defensoria Pública apontam violações e padrão letal em territórios de pobres e negros

Este é o resumo preliminar, segundo a Polícia Civil, do massacre executado pelo governo do Rio de Janeiro.

Nenhum dos 99 mortos identificados até agora na operação sangrenta da última terça-feira (28) — que deixou 121 mortos nos complexos do Alemão e da Penha — consta da denúncia do Ministério Público que serviu de fundamento para a matança.

Ainda assim, a ação é celebrada como “vitória” pelo governo bolsonarista fluminense e por governadores fascistas, em meio às críticas nacional e internacional sobre abusos, falta de transparência e letalidade estatal.

SUCESSO”

O governador bolsonarista Cláudio Castro (PL) celebrou e classificou a operação como “bem-sucedida” e afirmou que as “únicas vítimas” foram apenas os 4 policiais mortos.

O discurso foi ecoado por governadores da oposição extrema-direita ao presidente Lula (PT), como Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) e Ronaldo Caiado (União Brasil-GO), que anunciaram o “Consórcio da Paz” (e ainda debocham) para replicar a ação eleitoreira em cima de corpos e sangue fluminense.

ALERTA INSTITUCIONAL

A Defensoria Pública contesta o número oficial e aponta que as mortes podem chegar a 132. Denúncias de execução, desaparecimento e impedimento ao socorro estão sob apuração.

A ONU (Organização das Nações Unidas) expressou “extrema preocupação” e cobrou investigação independente e reforma do policiamento, e destacou que ações desse tipo têm, historicamente, impacto desproporcional sobre populações negras e periféricas.

“A longa lista de operações que resultam em muitas mortes, que afetam desproporcionalmente pessoas negras, levanta questões sobre a forma como essas incursões são conduzidas”, disse o porta-voz do secretário-geral da ONU, António Guterres.

MAIS FASCISTIZAÇÃO

O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, afirmou que o CV (Comando Vermelho) teria “deixado de ser organização criminosa” para se tornar “grupo narcoterrorista”, com integrantes “formados e treinados”, inclusive oriundos de outros Estados.

A adoção dessa narrativa aciona léxico de guerra, que autoriza o Estado a tratar territórios urbanos periféricos como campos de batalha, sob lógica miliciana de “neutralização do inimigo”.

Na prática, este conceito abre margem para mais fascistização:

• Suspensão informal de garantias constitucionais;

• Naturalização do uso letal da força;

• Criminalização coletiva de comunidades; e

• Incentivo às políticas de confronto permanente.

Em vez de abordar causas profundas do crime — desigualdade, ausência de serviços públicos, mercado ilegal de armas, prisões dominadas por facções — opta-se por atalho discursivo perigoso, que legitima a violência estatal.

ESPELHO AMERICANO

O uso do termo “narcoterrorismo” ecoa a doutrina de segurança dos EUA na América Latina, que historicamente justificou:

• Intervenções militares e apoio às forças repressivas;

• Cooperação policial seletiva e militarização da segurança;

• Criminalização de territórios pobres e grupos étnicos; e

• Subordinação de políticas locais a interesses geopolíticos.

Tal abordagem — aplicada na Colômbia, México, Peru e América Central — produziu décadas de conflito, deslocamento de populações, fortalecimento de cartéis, violações de direitos e poucos resultados estruturais no combate às drogas. O bolsonarismo flerta com o mesmo roteiro.

SEGURANÇA PÚBLICA NÃO É CAMPO DE BATALHA

A megaoperação no Rio não pode ser comemorada como vitória, pois essa revela:

• Estado ausente, que chega com fuzil;

• Falta de inteligência e investigação estruturada;

• Dependência eleitoral de retórica punitivista; e

• Reforço do ciclo de violência que alimenta o próprio crime.

Segurança pública eficiente não se faz por extermínio seletivo, mas com:

• Inteligência, rastreamento financeiro e controle de armas;

• Polícia profissionalizada e com protocolos claros;

• Presença do Estado, com serviços, escola e saúde; e

• Políticas de redução de danos e justiça social.

A história latino-americana já ensinou: chamar crime organizado de “terrorismo” não resolve o problema — apenas autoriza mais violência sem atacar as raízes dessa chaga social, que reina onde o Estado está estruturalmente ausente de tudo.

A prova do fracasso é que o chefe do tráfico na região, o “Doca”, e que era o alvo da operação policial de Cláudio Castro escapou e está foragido.

M . V.

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