Mais de 100 professores da cidade alemã de Hamburgo lançaram um manifesto denunciando o partido AfD, Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland), de ideologia nazista, de instigarem os alunos a dedurarem os professores que emitam ideias políticas contrárias a sua prática.
“Vocês não se furtam do cinismo ao tentar retratar isso como uma luta pela ‘liberdade de opinião e por uma democracia vibrante'”, afirmaram os professores em sua denúncia de que a AfD faz exatamente o contrário do que propala. O portal é exercício da intimidação para coibir a liberdade de opinião dos professores.
Os nazistas alemães defendem algo similar ao que os bolsonaristas querem aqui no Brasil com a ‘Escola sem Partido’; são as ‘Neutrale Schulen’ (Escolas Neutras): tanto o que aqui chamam de apartidarismo ou lá de “neutralidade”, significa apenas a proibição de qualquer ideia política menos – é claro – as de cunho nazista, ou seja, as que eles trabalham para instilar na sociedade.
Enquanto aqui, o presidente eleito já tem se dirigido aos estudantes brasileiros pedindo que delatem a seus pais os professores que emitam “ideias políticas”, na Alemanha os da AfD – sem espaço para fazerem da delação uma política pública – criaram portais em diversas localidades do país sugerindo aos alunos delatarem professores que tratem de questões ligadas à denúncia do nazismo em sala de aula.
“Existem certamente algumas semelhanças [entre o Escola Sem Partido e o Neutrale Schulen]. Mas no caso alemão, creio que o governo não aprovaria essa iniciativa. Não é uma abordagem sancionada pelo Estado”, argumenta Martin Mills, diretor do Centro para Professores e Pesquisa de Ensino no Instituto de Educação da University College London, no Reino Unido.
Aqui, o presidente já está propalando a prática da deduragem antes mesmo de assumir o mandato. Quando recentemente, Ana Caroline Campagnolo, deputada estadual eleita pelo PSL – partido de Bolsonaro – em Santa Catarina, incentivou em suas redes sociais que estudantes gravassem seus professores para denunciá-los em caso de “manifestações político-partidárias ou ideológicas” e uma decisão judicial determinou que as mensagens fossem apagadas, Bolsonaro, em entrevista, declarou que “os professores não deviam ter medo disso aí, deviam ficar orgulhosos”, ou seja, de que seus alunos gravassem suas aulas.
No Brasil, Mills completa, “é uma questão diferente porque o medo [dos professores] viria a ser do governo”. “Quais serão as sanções do Estado se os professores falarem sobre o partido no poder? No Brasil não é um partido marginal, como o AfD na Alemanha, trata-se do governo eleito.”
No caso do site Neutrale Schulen, os alunos são direcionados a denunciarem os professores que venham a tecer críticas aos nazistas ou ao seu partido, o AfD, por práticas abomináveis, que eles consideram salutares, a exemplo de suas manifestações discriminadoras, racistas ou de revisão da história no que diz respeito aos crimes nazistas.
“Lançamos o site porque recebemos diversas reclamações de pais e estudantes sobre professores difamando o AfD como extremista ou mesmo nazista. Alguns até se recusam a abordar o partido ou dão aos alunos informações erradas sobre nosso programa político”, afirma à BBC News Brasil, Franz Kerker, membro do AfD no parlamento estadual de Berlim.
A especialista em educação da Fundação Heinrich-Böll, Sybille Volkholz, responsável pela gestão da educação em Berlim de 1989 a 1990, destaca que o argumento de que o AfD está sendo injustiçado nas escolas não é verdadeiro. “Devido à nossa história”, diz a professora, referindo-se ao nefasto período hitlerista, “é compreensível que AfD e outros partidos de direita estejam sob observação. O AfD colabora de perto com alguns movimentos neonazistas. É correto que os professores sejam muito sensíveis em relação à extrema-direita”.
As escolas alemãs – no entendimento da professora – têm a obrigação histórica de educar as crianças para que cresçam como democratas; para torná-las resistentes à ideologia nazista. “Muitos professores disseram que continuarão a cumprir essa tarefa”. Diversos alunos escreveram cartas ao portal nazista com chacotas como “nossos professores sempre escrevem com a mão esquerda”.
“É uma péssima iniciativa. Parece-me que essa chamada para denúncias visa contaminar o debate político aberto nas escolas”, prossegue a educadora.
Winfried Kretschmann, premier do Estado de Baden-Württemberg foi além: comparou o sistema da AfD às bases “do totalitarismo”.
“Há pessoas na AfD com conexões com a extrema-direita e neonazistas. É dever dos professores alemães apontar a incompatibilidade das visões desses políticos com a estrutura constitucional democrática livre de nosso país”, afirma Heinz-Peter Meidinger, presidente da Deutscher Lehrerverband, a maior federação de professores da Alemanha.
“Os professores na Alemanha não tolerarão que seu direito de se expressar de maneira política seja retirado”, completa.
A AfD chegou ao parlamento alemão, o Bundestag, somente agora em 2017, em parte defendendo uma plataforma antiimigração e antirrefugiados de cunho racista, e em parte pela inépcia da social-democracia alemã. Com 92 cadeiras, passou a se constituir na maior bancada de oposição ao governo de coalizão de Angela Merkel.
Desde que chegaram ao parlamento levam sua defesa do nazismo para dentro do legislativo. Um dos líderes do partido, Alexander Gauland, disse que a era nazista foi uma breve mancha, ou “fezes de pássaro”, na “longa e bem sucedida história da Alemanha”. O comentário foi rechaçado por parlamentares e lideranças alemãs que lembraram da real dimensão do desastre que provocou mais de 50 milhões de mortos, milhões deles, levados ao extermínio em campos de concentração por serem judeus, ciganos, comunistas ou socialistas.
“Não creio que os professores serão impedidos de apresentar uma discussão livre. Tenho esperanças de que eles sejam autoconfiantes o bastante para continuar a oferecer uma educação civil de qualidade”, diz a educadora Volkholz.
O portal “Neutrale Schulen” que já foi rechaçado em Hamburgo é também administrado pelas seções regionais do AfD em Estados como Brandenburg, Baden-Württemberg e Berlim.
Estimulam os alunos a dedurarem os professores dizendo que encaminharão as denúncias às “autoridades competentes”. Também mostram que pretendem usar o portal para intimidar os educadores ao se oferecerem para “mediar entre alunos e professores ou diretores das escolas”. Imaginem os nazistas ‘mediando’ partes nas escolas alemãs.
O AfD também afirma em defesa do portal que denunciar nazismo e propostas racistas do AfD seria uma forma dos “professores atuarem espalhando uma visão política parcial do mundo”. E que os alunos ficam com medo de discordar pois vivenciariam uma “exclusão social”. Como se a perseguição ou a instigação contra refugiados e imigrantes – por “atentarem contra a essência da Alemanha”, estimulada pelo partido AfD – não fosse uma ação política aberta de exclusão social, ou como se, estimular os alunos à delação, não fosse uma forma de exclusão pelo medo ou ameaça de penalidades dos professores que querem expressar e estimular o debate político, histórico e social nas classes.
Steffen Königer, membro da AfD no parlamento estadual de Brandemburgo, inverte as coisas e diz que o ataque ao livre debate seria “nossa última forma de autodefesa”. Pois há na Alemanha “pessoas politicamente corretas que os chamam de racistas ou nazistas.” Deveriam chamar de que então?
Um exemplo recente mostra o verdadeiro significado dessa suposta “autodefesa” da AfD:
Uwe Böken, diretor escolar em Geilenkirchen (cidade localizada na Renânia do Norte-Vestfália), afirma que foi denunciado pelo AfD depois de haver convidado uma sobrevivente de uma orquestra de meninas, que chegou a ficar presa em Auschwitz, para falar aos alunos de sua escola. Böken falou de sua preocupação, durante a visita da sobrevivente do nazismo de que “pontos de vista de extrema direita agora tenham assento no parlamento alemão pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial”.
A AfD, que, claro, achou que Böken se referia a seus parlamentares, segundo o jornal inglês, The Guardian, apresentou uma “denúncia disciplinar” contra o professor. Os organismos educacionais da cidade declararam que Böken não violou nenhum código regulamentar educacional. Mesmo assim, AfD o prosseguiu difamando em suas mídias sociais.
O professor decidiu não se intimidar e levou seu caso ao Ministério da Justiça declarando em sua petição que “o que ocorre com este portal é o puro denuncismo” e pediu aos juízes que “olhem em qualquer livro de história para encontrarem essa prática em sistemas de caráter totalitário”.
Quanto à prática educacional alemã, na verdade, o que ocorre é o contrário do que os da AfD dizem. Já há uma série de normas instituídas no ensino na Alemanha, reunidas no chamado Beutelsbacher Konsens (Consenso de Beutelsbach) como diretriz para produção de aulas. O documento assume como princípios fundamentais para o ensino político-histórico nas escolas, a não doutrinação e a abordagem de maneira honesta de temas controversos. Por exemplo, não é permitido induzir os estudantes a emitir opiniões “desejáveis” e impedi-los de “formar um juízo independente”.
O Beutelsbacher Konsens não proíbe os professores de exporem suas opiniões aos alunos desde que a identifiquem como tal. “Os professores devem fornecer informações sobre a agenda política dos diferentes partidos. Na discussão sobre o conteúdo, eles podem opinar. Além disso, existe a ordem para serem moderados. Eles devem expressar sua opinião de forma fundamentada e sem excessos”, explica o líder dos professores, Meidinger.
Mas estes cuidados não podem significar a adoção de uma neutralidade apática ou amedrontada. Ao contrário, o Centro Nacional para Educação Política destaca que os professores são “acima de tudo” estimulados a defender “a ordem básica democrática livre”. Ou seja, afirma o centro, “devem ser imparciais, mas não neutros em termos de valores”. Por exemplo: se um político ataca minorias ou se partidos toleram antissemitas em seus quadros e possuem ligações claras com extremistas de direita, “é claro que isso deve ser examinado criticamente”.
No Brasil, o Escola Sem Partido quer vedar a manifestação da opinião política de professores em sala de aula, com apoiadores quase sempre se referindo ao ensino de teorias de relevância histórica ou filosófica, a exemplo do marxismo ou, nas aulas História, ao estudo dos movimentos populares, de libertação ou operários, ou nas de Filosofia, ao estímulo a uma visão crítica do mundo e da sociedade ou mesmo da própria instituição de ensino, como uma suposta ‘doutrinação de esquerda’.
“Professores devem falar sobre política. É desejável que os jovens compreendam a política e se envolvam em discussões respeitosas. A política democrática é negociar soluções para problemas comuns em que há perspectivas diferentes. Os jovens precisam fazer isso desde cedo”, afirma o educador inglês Martin Mills.