Tanto a truculência do premiê israelense, Bibi Netanyahu, em proibir a entrada em Israel de duas deputadas norte-americanas, como a circunstância de ter expedido a proibição após uma simples tuitada pública de Trump, deixaram o chefe do governo de Israel em maus lençóis.
Em meados do mês de julho, o embaixador de Israel em Washington, Ron Dermer, informou publicamente e às deputadas do Partido Democrata, Ilhan Omar (descendente de somalis) e Rashida Tlaib (de origem palestina), recentemente eleitas para a Câmara norte-americana, que permitiria que visitassem Israel e os territórios palestinos da Cisjordânia, onde Tlaib tem parentes, “por respeito para com o Congresso dos Estados Unidos, e à grande aliança entre Israel e a América, nós não negaríamos a entrada de qualquer membro do Congresso em Israel.
INTERFERÊNCIA DE TRUMP VIA TUITE
Acontece que na quarta-feira, dia 14, pela manhã, Trump escreveu, através de uma tuitada, que “se Israel permitisse que as deputadas Tlaib e Omar visitassem o país, isso mostraria uma grande fraqueza. Elas odeiam Israel e todo o povo judeu e não há nada que possa ser dito ou feito para mudar suas mentes. Os do Estado de Minesota, [que elegeu Omar] e os do Michigan [eleitores de Tlaib] vão enfrentar dureza para colocá-las de volta no parlamento. Elas são uma desgraça!”.
Foi o suficiente para que na mesma quarta-feira pela tarde informasse que as deputadas não poderiam passar do aeroporto Ben Gurion, em Lod, perto de Tel Aviv, sob a justificativa de que “há alguns dias atrás, recebemos o itinerário da viagem das deputadas Omar e Tlaib, que deixou claro que elas planejavam uma visita cujo único propósito era apoiar boicotes e negar a legitimidade de Israel. Por exemplo, elas denominaram seu destino como “Palestina” e não “Israel” e de modo diferente de todos os membros do Congresso, sejam eles democratas e republicanos, elas não buscaram qualquer encontro com um funcionário do Estado oudo parlamento, seja do governo ou da oposição”
A deputada Omar desmentiu o primeiro-ministro, dizendo que ela planejava visitar o Knesset, conversar com integrantes do parlamento israelense e com funcionários da Segurança.
A proibição de Bibi Netanyahu está sendo vista nos Estados Unidos como o maior tiro no pé já dado em qualquer governo israelense, do ponto de vista de sua relação com a opinião pública norte-americana. Isto porque o principal disfarce da real característica central do governo israelense – que é expandir o Estado de Israel através da limpeza étnica, via ocupação geral e tomada de terra dia a dia e demolição de residências – posando de “a única democracia do Oriente Médio”.
Um instante! Estão dizendo até os lobistas pró-Israel dentro dos Estados Unidos, que “democracia” é essa que não permite a visita aos territórios que Israel ocupa por parte de duas deputadas do Congresso Norte-Americano, legitimamente eleitas, ainda que com posição crítica com relação ao governo ou até ao Estado de Israel? Se é democracia, como não permite o contraditório?
A segunda questão levantada por parte significativa dos judeus norte-americanos é: Israel se diz “aliado” dos Estados Unidos. Que aliado é esse que barra o ingresso em seu território de integrantes do Congresso Norte-Americano.
Note-se que Bibi fez isso contra a indicação anterior de seu Ministério das Relações Exteriores de que as deputadas poderiam vir sem qualquer restrição. Como vimos acima, bastou uma tuitada de Trump, para horas depois a entrada ser negada tanto a Tlaib, quanto a Omar. Isso pegou mal em Israel. Pois lá Bibi propala que ele é duro com o governo da Casa Branca. Que está até “pressionando” a que os Estados Unidos desçam o malho no Irã. Que, aliás, de forma independente da posição de Washington, Israel já começou a guerra de desgaste ao desfechar foguetes sobre iranianos que foram à Síria em apoio a luta deste governo contra o terrorismo importado por governos norte-americanos.
CAIU A MÁSCARA
Toda essa máscara caiu. Nem é a democracia que propala, nem é independente como bravata. Aquela ideia de que no caso específico e único da hutzpá (um termo hebraico para denominar uma ideologia israelense muito comum em seu governo, de mesclar prepotência com cara de pau, para passar por cima de qualquer correlação de força) permitiria que Tel Aviv ‘mandasse’ em Washington, ou seja que, na relação Israel/Estados Unidos, é o rabo que abana o cachorro, é pura conversa.
Netanyahu, acabou mostrando seu capachismo diante de Trump, acabou cometendo um gesto que nem ele estava com tanta confiança de fazer, claro que seria muito melhor, de seu ponto de vista, não ter deputadas críticas andando pelos territórios, conversando com os palestinos no terreno, com as organizações de direitos humanos na Palestina e em Israel, olhando de perto o funcionamento dos postos policiais-militares israelenses na Cisjordânia, vistoriando o muro da segregação, os assentamentos judaicos em terras assaltadas aos palestinos… Mas Netanyahu sabia que o preço a pagar por proibir a sua entrada em Israel e Palestina seria muito alto, tanto assim que o Ministério do Exterior, através do seu embaixador nos EUA, já tinha dado o sim. Mas, cadê coragem de negar-se a atender uma solicitação partindo da Casa Branca?
Trump mostrou que, no afã de ganhar alguns votos dos judeus mais arraigados a uma postura acrítica de Israel, está pouco se lixando para a eleição de seu suposto parceiro em Israel.
Para se ter uma ideia do que isso significa, enquanto nas eleições mais recentes, de 2016, enquanto no voto direto, Trump teve 46% dos votos e Hillary Clinton, 48% (ele se elegeu por conta da quantidade maior de delegados ao Colégio Eleitoral, na distorcida eleição norte-americana), um levantamento da Jewish Virtual Library, mostra que entre os judeus, Trump teve 24% dos votos e Hilary 71% (5% não votaram em nenhum dos dois).
Reunimos alguns depoimentos que mostram a dimensão desgaste causado pela medida de Bibi.
No interior do Partido Democrata, há um lobby judaico denominado “Maioria Democrata a favor de Israel”, com direção colegiada com Ann Lewis e Mark Mellman como presidentes. Eles estiveram entre os primeiros a divulgar um documento no qual opinam, entre outras coisas que “simplesmente não há desculpas para que qualquer país, incluindo Israel, barre a entrada de qualquer parlamentar eleito nos Estados Unidos. Infelizmente o governo de Israel foi não só errado como irrefletido ao reverter uma decisão anterior que permitia a visita das integrantes do Congresso Norte-Americano de realizarem a visita”.
“NETANYAHU TREME FEITO VARA VERDE”
Um dos principais colunistas do jornal israelense, Haaretz, Chemi Shalev, foi enfático. Em matéria publicada no jornal, dia 16, intitulada: “Feroz reação ao banimento da visita de Tlaib é uma bomba relógio na “Relação Especial” EUA-Isael”, afirma:
“O mundo todo está agora testemunhando a sinergia racista e anexacionista de Trump e Netanyahu”
“Netanyahu agora é visto como lacaio impotente de Trump”, prossegue Shalev, “e Israel está ajudando a acatando a demagogia de aliciamento racista e divisionista do presidente norte-americano”, coisa que não é muito simpática aos olhos do eleitorado judeu nos Estados Unidos, que vota de forma amplamente majoritária, como vimos acima, nos democratas.
“Eles estão unidos em sua ideologia de direita, chauvinista, e em sua desfaçatez para com os que a ela se opõem, simbioticamente juntos em suas atitudes hostis ao Irã e aos palestinos”, diz ainda o colunista israelense.
“Olhando por um prisma um pouco mais amplo, um que inclua a imagem de Israel, sua posição diante do Congresso [dos EUA], opinião pública, academia, mídia e a comunidade judaica, as ligações entre os dois países atingiram o fundo do poço nos recentes dias após a recusa ao ingresso das deputadas. As reações negativas ao banimento foram vastas, ferozes apontando para um potencial ponto de virada na história das conexões entre ambos os países. Atualmente, os valores ainda são compartilhados, mas cada vez mais vergonhosos”.
E conclui: Netanyahu, que gosta de posar como um ‘líder forte’, não apenas tremeu como vara verde diante do pensamento de decepcionar Trump, mas foi superado em inteligência por duas noviças no Congresso dos Estados Unidos, que produziram mais dano à imagem de Israel do que podiam sonhar”.
As manifestações críticas não partem apenas das forças progressistas, algumas delas no seio dos democratas, na crítica à agressão de Bibi, o coro se estendeu até a amplos setores da direita mais moderada, que até aqui preferia fazer vista grossa para os crimes de Israel nos territórios palestinos ocupados. É o caso da procuradora-geral, Dana Nessel, pelo Estado de Michigan, da deputada descendente de palestinos, que foi na essência da questão: “O governo de Netanyahu adotou as táticas de intolerância política de Donald Trump”.
É claro que os setores mais progressistas que já estavam posicionados contra a dupla nefanda Trump/Bibi, ficaram mais à vontade para mostrar a justeza de sua postura.
DEBATE SOBRE ISRAEL VAI SE ABRIR
É caso de Jeremy Bem-Amy, diretor da organização J Street, ampla rede de lideranças e organizações norte-americanas que se opõem à ocupação e assentamentos judaicos, financiados por Israel em territórios palestinos, que afirmou:
“O debate sobre Israel neste país vai se tornar mais robusto e mais amplamente aberto. Pessoas que têm sérias críticas daquilo que o governo de Israel está fazendo vai se sentir com mais liberdade de dizerem o que pensam. Vai haver menos medo de dizer as coisas”.
Já o senador Bernie Sanders, pré-candidato a presidente pelo Partido Democrata destacou: “Se Israel não quer que membros do Congresso dos Estados Unidos visitem o seu país para olharem, em primeira mão, o que está realmente acontecendo por lá, talvez pudesse respeitosamente declinar dos bilhões de dólares que damos a Israel”.
Sanders comunicou-se com Ilhan Omar, no sábado, para dizer: “Como muitos de meus colegas já declararam nas últimas 24 horas, nós damos a Israel US$ 3 bilhões em ajuda todo ano. Isso é justificado sob o argumento de Israel seria um importante aliado na região e que seria ‘a única’ democracia no Oriente Médio.
“Negar visitas a legitimamente eleitos membros do Congresso não é consistente, nem como sendo aliados, nem como uma democracia. Chegou a hora de nivelar esta ajuda ao fim dos assentamentos e à garantia do fim dos assentamentos e a materialização dos plenos direitos para os palestinos”.
“TRUMP QUER USAR ISRAEL”
Não menos indignação demonstrou a diretora executiva do Conselho Democrático Judaico da América, Halie Soifer, que como veremos pela sua declaração não temlaivos de esquerda e é bastante alinhada com a ideologia sionista: “Está fora de questão isto tudo fez parte de um esforço de Trump de continuar a usar Israel como uma questão limite, e continuar a politizar Israel. Tudo foi calculado em temos de seus interesses próprios”.
Soifer prossegue: “Trump quer usar Omar e Tlaib para pintar todo o Partido Democrata como anti-Israel e depois disputar as eleições de 2020, sabendo que a maioria do eleitorado norte-americano se mantém simpático à causa israelense”.
“Se ele quer concorrer em 2020 contra um fictício Partido Democrata, que ele proclama que não apoia Israel, ele está usando estes dois membros do Congresso para dar a ideia ilusória de que elas representam a maioria entre os democratas, o que não acontece.
“Portanto, tão grade era seu desejo de conseguir isso, que Trump zombou de Netanyahu, dizendo que permitir a entrada das deputadas o faria ‘parecer fraco’”. Soifer finalizou dizendo que, ao atendê-lo no absurdo, aí é que Netanyahu se fragilizou.
A deputada Rashida Tlaib foi convidada e aceitou passar o sábado, 17, num evento organizado por progressistas de seu Estado, denominado “Shabat in the Park with Rashida” (Sábado no Parque com Rashida).
O grupo de judeus – da organização Jewish Vote for Peace (Voto Judeu pela Paz) – que vê como legítimo do movimento de boicote a produtos e serviços israelenses enquanto pedurar a ocupação e o assalto a terras palestinas.
Rashida decidiu que não iria sem a companhia da deputada Ilhan Omar.
Vendo o tamanho do desgaste, diante da dura resposta norte-americana, Netanyahu resolver conceder só a ela a permissão de entrada para visitar a avó, que vive na Cisjordânia, “por questões humanitárias” e mediante o compromisso de que a deputada não tocasse no assunto do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções).
Em meio à recepção, no Detroit Pallister Park, a deputada declarou que após consultar integrantes de seu comitê, viu que todos consideraram as condições humilhantes e inaceitáveis. Ela, resolveu, apesar da dor de não puder rever a avó, não ir.
No evento foram cantadas músicas em hebraico e erguidos cartazes dizendo “Dignidade de Detroit à Palestina”.
A deputada respondeu a Trump, que tentara tirar proveito político da sua negativa em ir sob as condições impostas pela força ocupante. Trump disse que ela “odiosa” negara-se a ver sua avó, mesmo após o gesto simpático e respeitoso por parte de Israel. “Só quem ganha é a avó por não ter que se encontrar com uma neta dessas”, disse o ocupante da Casa Branca.
DEPUTADA PALESTINA COM JUDEUS DO MICHIGAN
Dirigindo-se aos ativistas judeus no Parque ela declarou: “Obrigado por sua erguerem a bandeira da paz, do amor e da justiça. Obrigado por não julgarem apenas politicamente o que aconteceu comigo, porque, seja como for, eu ainda sou uma neta orgulhosa de minhas raízes palestinas”, disse Rashida com lágrimas nos olhos e concluiu: “Não consigo expressar quanto amor eu sinto aqui”.
PROTESTO DE JOE LIEBERMAN
Joe Lieberman, ex-senador e candidato a vice-presidente na chapa do Partido Democrata do ano 2.000 (único candidato judeu em uma chapa majoritária na história dos EUA) -com Al Gore, candidato a presidente declarou que a hostilidade a Tlaib e Omar “foi um erro sério, porque é contrário aos valores do Estado de Israel, os valores dos Estados Unidos que estão nos fundamentos de nosso relacionamento enquanto países”.
“Elas são membros do Congresso devidamente eleitas. Posso discordar delas, como o faço, mas foi realmente um desrespeito ao Congresso e ao sistema político da América, da parte de quem se diz aliado, alijar, deixar de fora de Israel, duas das nossas deputadas”.
NATHANIEL BRAIA