Com quatro processos por corrupção, dos quais três em vias de envio a julgamento, Netanyahu (um dos prediletos de Bolsonaro, que quando esteve em Israel, logo após as eleições, se declarou, com a instigante frase: “Todo casamento começa com namoro e noivado”), apelou ao eleitorado mais retrógrado com torpes elementos de racismo antiárabe, incluindo a propaganda de anexação de um terço dos territórios palestinos da Cisjordânia, além de incitamentos do tipo os “árabes querem nos aniquilar, homens, mulheres e crianças”. Quis também reeditar a provocação de baixar com milhares de seus seguidores munidos de câmeras de filmar nas seções de votação das cidades e aldeias árabes com a finalidade de intimidar os eleitores árabes israelenses.
Tentou também; por todos os meios, levar o país a uma guerra: bombardeios contra alvos localizados em território sírio não faltaram e, ainda, ataque à sede do partido Hezbollah, no Líbano e, nos últimos três dias que antecediam ao dia das eleições, afinal realizadas em 17 de setembro, além de declarar inevitável “uma guerra total a Gaza” reuniu os chefes militares do país para desencadear o massacre.
Por meio dessa “guerra”, na verdade uma devastação – uma vez que o outro lado, os palestinos da Faixa de Gaza, não teriam nenhuma condição militar para guerrear (no último destes ataques perpetrados por Netanyahu em 2014, além dos 2.220 palestinos mortos, a agressão deixou mais de 11.000 feridos e 500.000 deslocados, dos quais 100.000 com suas casas perdidas ou seriamente danificadas, segundo informe do Escritório da ONU para a Coordenação de Questões Humanitárias) -, Netanyahu pretendia forçar o adiamento das eleições.
Nada disso adiantou. O Comitê Central Eleitoral e o parlamento israelense proibiram as filmagens nas seções eleitorais; os árabes reagiram ao incitamento racista elevando em 20% o comparecimento às urnas em relação à presença árabe no pleito imediatamente anterior, o de abril deste ano; quanto ao ataque a Gaza, foi vetado tanto pela Procuradoria Geral (que informou que tal coisa teria que ser aprovada pelo Knesset – parlamento israelense), como pelo chefe do Estado Maior de Israel, Aviv Kochavi, que rechaçou o absurdo.
Ele tentou todos estes recursos de seu arsenal eleitoreiro, para tentar a reeleição ao cargo de primeiro-ministro e assim escapar do indiciamento e posterior prisão. Eram manobras que arriscavam levar a sociedade israelense, ao mergulho em um regime fascista e que foram, enfim, repelidas.
O PORQUÊ DA DERROTA DE NETANYAHU
Como declarou Michel Gherman, professor de História da UFRJ e membro da coordenação do Instituto Brasil-Israel, entrevistado pelo HP, “Netanyahu perdeu as eleições porque as transformou em um plebiscito. Ele apresentou a posição de que os palestinos são a expressão do antissionismo e que ceder a seus pleitos seria negar a existência de Israel ou sua condição judaica”.
“Em síntese”, prosseguiu, “tentou passar a ideia de que não é possível para Israel ser democrático e judaico ao mesmo tempo. Que a alternativa para Israel é a beligerância com os palestinos e a negação de qualquer participação cidadã dos árabes israelenses”.
“A maioria dos israelenses”, acrescentou Gherman, “percebeu essa contradição – que na essência – nega as teses democráticas presentes nos termos da fundação do Estado de Israel e não aceitaram. Por isso, Netanyahu, que exacerbou esse comportamento nos últimos dias antes das eleições, tentando levar, nas palavras dele, a ‘uma guerra total a Gaza’ ou declarando que ‘os árabes vão nos aniquilar, homens, mulheres e crianças’ foi derrotado por posições mais moderadas e que expressaram a vontade de avançar na construção de um Estado democrático legítimo em Israel e em paz com seu conjunto de cidadãos e vizinhos”.
AS COSTAS DE TRUMP
Quanto a Trump, ao lado de quem Netanyahu espalhou imensos cartazes por todo Israel, com quem gozaria de uma “amizade privilegiada”, nem mencionou seu nome quando surgiram os resultados da derrota do premiê, não telefonou para o desiludido perdedor, como fez questão de destacar: “as relações especiais dos Estados Unidos são com Israel” e acrescentar sobre as eleições: “Vamos ver o que acontece”.
O VOTO ÁRABE A FAVOR DA DEMOCRACIA E DA PAZ
Ao contrário do que almejava Netanyahu, os eleitores árabes não somente foram votar, elevando a inéditas 13 as cadeiras a serem ocupadas pela Lista Árabe Unida, formando a maior bancada parlamentar deste setor discriminado pelo regime israelense, em toda a história de Israel, como destinaram parte de seus votos para as listas opositoras ao bloco direitista encabeçado por Netanyahu, em particular o Campo Democrático e a Lista Azul e Branco, sob o comando de Benny Gantz, agora conta com as maiores chances de se tornar o próximo premiê israelense.
Essa mudança na participação árabe, que fez da Lista Árabe Unida, a terceira maior força parlamentar de Israel, traz uma das mais importantes aberturas à transformação da sociedade israelense no sentido de sua democratização (é claro que em um processo de longo curso, mas que inevitavelmente se inicia) e que trará ao conflito israelense-palestino, que já se estende por mais de 70 anos, a possibilidade de uma solução justa e humana.
É significativo que esta participação, claramente consciente (que ainda pode se elevar em futuros pleitos, uma vez que, mesmo com essa elevação perto de 60% dos eleitores árabes votaram), tenha acontecido no momento em que os israelenses podem almejar respirar novos ares de um regime mais democrático após quase vinte anos de predomínio de uma direita beligerante e excludente na direção de Israel. Ciclo destrutivo que teve início com a entrada em cena do general Sharon, responsável pela carnificina de Sabra e Shatila.
A sensação de prostração, de descrença em saídas democráticas para a crise israelense, um desalento, aproveitado pelos elementos fascistas israelenses e que teve início com o assassinato do premiê Itzhaq Rabin, morto logo depois de firmar a paz com os palestinos, representados por Yasser Arafat, acabou se instaurando no país, reduzindo a participação do eleitorado tanto judeu como árabe nas eleições realizadas durante estes anos de guerra, usurpação e obscurantismo.
A partir de agora, o setor árabe da sociedade israelense não poderá mais ser ignorado nas medidas governamentais ou nas análises políticas, nem pelos judeus israelenses, nem pelos estudiosos e ativistas da questão israelense-palestina e pelos que buscam a libertação da opressão sobre os palestinos com a instituição do Estado Palestino no, ainda possível, quadro da Solução dos Dois Estados.
Não é por acaso que o líder da Lista Árabe Unida, o comunista Ayman Odeh, já colocou como primeira exigência para o apoio a um governo dirigido pelo opositor, Benny Gantz, a retomada das negociações de paz com os palestinos.
Aliás, essa percepção foi destacada pelo líder da Lista Árabe, Odeh – como relata Moara Crivelente, doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e membro da Comissão de Política de Relações Internacionais do PCdoB, em sua matéria intitulada “Nas eleições de Israel, remover Netanyahu do governo é a aposta”.
Segundo Moara, Odeh enfatizou que “a situação ‘não é de todos os judeus contra todos os árabes, nem todos os árabes contra todos os judeus’, mas que é necessária a unidade entre as comunidades. ‘Os judeus israelenses devem apoiar a Lista Conjunta por causa dos nossos interesses e valores partilhados, como a paz, a igualdade e a justiça social’, disse Odeh, na campanha”.
Moara também repercute a informação de Odeh de que, muitos judeus entenderam o significado da transformação em curso de modo que “mais de 100 acadêmicos israelenses assinaram um apelo, publicado pelo jornal Haaretz, instando o público judeu israelenese a votar na Lista Conjunta”.
O processo que se instaurou com o ingresso mais elevado do eleitorado e, por via de consequência, do aumento da bancada árabe, não partiu somente dos líderes árabes. Houve uma mudança na abordagem dos candidatos judeus também.
O estudioso da sociedade árabe, Arik Rudonitzky, integrante do Instituto Democracia Israelense, observa que “na campanha anterior, o líder da lista Azul e Branco, Benny Gantz, não deu atenção para a sociedade árabe”.
“Esta vez”, prossegue, “ele fez um esforço real para se aproximar dos eleitores árabes e foi muito aberto com eles”.
De forma sincera, declarou que “podem haver divergências em questões políticas, mas existe a possibilidade de trabalhar juntos para a melhoria das condições de vida dos cidadãos árabes”.
Por sua vez, logo após a votação, Ayman Odeh declarou que pretende conversar com Gantz e que “a direção é clara: queremos substituir o governo de Netanyahu, mas não estamos submetidos a ninguém”.
“Os eleitores árabes”, celebrou Odeh, “impediram o estabelecimento de um governo de extrema direita liderado por Beniamin Netanyahu”.
LAICISMO VERSUS TEOCRACIA
Lado a lado com a questão palestino-israelense, como não podia deixar de ser, em uma sociedade organizada em torno da condição judaica dos que emigraram à Palestina para fundar o Estado de Israel, é muito forte a contradição entre os que anseiam por uma sociedade laica, onde os não religiosos não estejam submetidos aos religiosos e seus dogmas, possam fazer compras aos sábados, terem a garantia de uma divisão mais equitativa dos subsídios do Estado, possam ter acesso a escolas laicas mais bem aparelhadas para seus filhos, serem atendidos no pleito de que tanto religiosos como não religiosos tenham a obrigação do serviço militar, por um lado, e os que impõem estas regras em troca de apoio para maiorias parlamentares, por outro.
Esta contradição se expressou em muitos eleitores judeus votando nos defensores do laicismo, tanto o mais à esquerda, Yair Lapid, que concorreu ao lado de Gantz, como o ultradireitista Avigdor Lieberman.
Historicamente, no afã de elevar a parcela judaica dentro de Israel, foram fartos os subsídios aos religiosos, cujas famílias contam com 5 a 6 filhos em média, elevando assim parcela de religiosos no Estado de Israel, cujos eleitores votam em bloco de acordo com os clérigos (rabis) de suas sinagogas.
Um fator de retrocesso na mentalidade média judaica do país, mesmo que seja crescente o número de judeus religiosos – ainda que minoritários – lutando contra os conceitos supostamente “divinos” que tornam em “mitzvá” (virtude, em hebraico) o assalto a terras palestinas e a expulsão de seus moradores originais. Exemplo disso é o caso dos Rabinos pelos Direitos Humanos, que se orgulham de programas como “Proteção aos Direitos dos Camponeses e Trabalhadores Rurais Palestinos”.
Ou aqueles, como o rabino Alexandre Leone, que entendem que “na medida em que o humano floresce, novas dimensões dessa dignidade se expressam em novos direitos que devem ser reconhecidos” (in revista Observatório da entidade Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil – OJDHB).
E ainda, como relata, em seu artigo “O machismo de Israel (ou por que você só percebe a opressão às mulheres árabes?)” a socióloga Elena Judensnaider Knijnik, integrante de uma família de judeus religiosos, também aí há conflitos e anseios por mudanças, com mulheres que, como ela, lutaram contra concepções machistas opressoras e limitadoras das mulheres, que infelizmente ainda são prevalentes entre os chamados ultraortodoxos.
Elena relata limitações ao estudo para as mulheres, que casam jovens e são orientadas a trabalho exclusivamente doméstico e a conceberem muitos filhos. Ou viajam em ônibus em que a parte da frente é destinada exclusivamente aos homens.
Como lembra a socióloga, na última frase da Oração do Amanhecer (Birkat Hashahar), pronunciada todas as manhãs, os homens afirmam: “Abençoado sejas tu, oh Senhor que não me fizeste mulher” (Baruch Atah Adonai Sheloassani Ishá), enquanto que as mulheres declaram: “Abençoado seja o Senhor que me fez de acordo com sua vontade” (Baruch Atah Adonai Sheassani Kirtzonoh).
PERIGO DO RECURSO À GUERRA E CAUTELA NA CELEBRAÇÃO
Por tudo isso, como destaca um dos artigos publicados depois das eleições, pelo jornal israelense Haaretz, dentro do complexo quadro israelense, apesar dos avanços aqui registrados, com destaque para a derrota eleitoral de Bibi Netanyahu, abrindo inegável espaço para a democratização da sociedade israelense, ainda há, infelizmente, possibilidades para a não consolidação imediata desta vitória da oposição em governo de fato.
Estas incertezas, que vão desde o árduo caminho que terá que percorrer o líder da oposição, Benny Gantz, para configurar um gabinete apoiado por, no mínimo, 61 dos 120 deputados (caso esta coligação governamental não aconteça pode haver nova eleição em dezembro deste ano), até a eclosão de uma guerra, que Netanyahu tentou nos últimos meses de seu mandato provocar a todo custo e pelos pretextos mais irrelevantes, o que permitiria a ele permanecer governando à frente de um Conselho Emergencial de Guerra. São elementos que levam tanto a Jayme Brener, coordenador do Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil, a declarar que “ainda é cedo para pareceres conclusivos”, como o integrante do Instituto Brasil-Israel, Daniel Douek, a expressar que: “o cenário ainda está indefinido. Como nenhum partido ou bloco parece ter conseguido uma maioria clara, as negociações, que se iniciaram há pouco, é que dirão que tipo de governo será formado”.
NATHANIEL BRAIA