No artigo abaixo – que republicamos hoje, por sua importância e atualidade, em homenagem ao bicentenário de Karl Marx (5 de maio de 1818) -, o economista Nilson Araújo de Souza responde ao artigo de Paul Krugman, do MIT (Massachusetts Institute of Technology), em que este atribui a Keynes o mérito de ter desvendado a teoria das crises econômicas.
“Inquestionavelmente, sobressai dessa literatura a monumental obra de Marx. Nada que pelo menos se lhe igualasse foi produzido antes ou depois. Foi precisamente Marx, e não Keynes, que `decifrou o código da economia de crise’. Isso não está em nenhum livro em particular ou em qualquer capítulo isolado de seus livros. Está no conjunto de sua obra, da qual a mais importante é, certamente, O Capital”, destacou Nilson
NILSON ARAÚJO
A incapacidade de pensar passou a ser uma marca registrada dos apologistas da desordem mundial que impera atualmente. E por isso vivem à cata de mitos na tentativa de fugir da realidade. Um de seus mitos mais caros, forjado depois da derrubada da União Soviética, é o de que o marxismo morreu. Demonstração de que até eles, apesar de suas mentes entorpecidas, percebem que isso não passa de um mito é o fato de que, volta e meia, vêm a público criticar o que consideram as idéias de Marx. Se o marxismo já estivesse morto e enterrado, como dizem, não se justificaria essa preocupação.
Quem foi ultimamente utilizado nesse esforço de criticar o marxismo foi um prestigiado economista do MIT (Massachusetts Institute of Technology), Paul Krugman. Ele, inclusive, não foi um dos que mais se esmagou diante da onda neoliberal, que, felizmente, já entrou em decadência. Não ficou por aí papagueando que o mercado pode tudo e que o Estado deveria desaparecer de cena. Ele se manteve numa trincheira no essencial positiva e que, na verdade, se trata da última tentativa do pensamento burguês fazer ciência na área da economia: o keynesianismo.
Depois de um século em que o pensamento econômico burguês, depois do auge a que chegara com David Ricardo, iniciara seu processo de vulgarização, que teve seu momento particularmente vulgar com a chamada escola neoclássica no fim do século passado e começo deste século, a grave crise em que o capitalismo se meteu com a Grande Depressão de 1929 terminou por despertar a alguns economistas que abraçavam essa corrente – liderados pelo inglês John Maynard Keynes -, que realizaram um último esforço de fazer ciência, em resposta a uma necessidade que o sistema tinha de buscar novos caminhos para sair da crise. De lá para cá, dessa mata não tem saído coelho. Sua última criação são esses arremedos de ideologia que compõem o neoliberalismo.
Obrou bem Paul Krugman ao permanecer fiel ao pensamento keynesiano nesses tempos de obscurantismo intelectual que caracteriza os meios acadêmicos. Só não fez bem foi em ficar enciumado com as comemorações que se fizeram neste ano de aniversário dos 150 anos do Manifesto Comunista, ocasião em que, segundo ele, “artigos proclamam que a turbulenta economia mundial de hoje é exatamente o que o grande homem previu. Um colunista do New Yorker chegou a proclamar Marx como o pensador do futuro”.
Tomado de ciúmes, procurou atribuir a Keynes méritos que são sabidamente de Marx. E o fez já a partir do título de seu artigo: “Keynes decifrou o código da economia de crise”. Diz que chegou a essa conclusão depois de examinar a literatura anterior: “Eu tentei examinar a literatura pré-keynesiana sobre ciclos econômicos: é um vasto deserto”. Dr. Krugman, o senhor não tem motivos para ficar tão inseguro. Para reconhecer os inquestionáveis méritos de Keynes, não é necessário atribuir a ele nada do que legitimamente não lhe pertence.
Não é nenhum deserto a literatura sobre as crises econômicas anterior a Keynes. Ao contrário, é muito abundante. Teve início no começo do século passado com Sismondi de Sesmondi, Rodbertus e Robert Malthus, em forte polêmica com Ricardo, e foi retomada por Karl Marx na segunda metade do século. Entre fins do século passado e começo deste século, ocorreu uma das mais ricas polêmicas do pensamento econômico, precisamente sobre a teoria das crises, em que se envolveram pensadores marxistas e não-marxistas, como Karl Kautski, Otto Bauer, Rosa Luxemburgo, Hilferding, Conrad Smith, Tugan-Baranovski, Lenin, Joseph Schumpeter, entre outros. Precisa estudar mais economia, Dr. Krugman.
Mas, inquestionavelmente, sobressai dessa literatura a monumental obra de Marx. Nada que pelo menos se lhe igualasse foi produzido antes ou depois. Foi precisamente Marx, e não Keynes, que “decifrou o código da economia de crise”. Isso não está em nenhum livro em particular ou em qualquer capítulo isolado de seus livros. Está no conjunto de sua obra, da qual a mais importante é, certamente, O Capital. Isso porque o objetivo central de sua obra econômica, e particularmente de O Capital, segundo ele próprio afirma, é “descobrir a lei econômica fundamental do capital”. E foi precisamente nesse processo que ele descobriu que o capitalismo é uma “economia de crise”, isto é, é uma economia essencialmente cíclica. Sua teoria da crise é, portanto, o conjunto de sua análise da dinâmica da economia capitalista. É o conjunto de sua obra econômica.
Concluiu Marx que o fundamento das crises capitalistas está justamente na forma como esse sistema se organiza para produzir e distribuir riquezas. É uma economia baseada na propriedade privada e na divisão social do trabalho. Daí deriva a necessidade inelutável, obrigatória, de o conjunto dos bens produzidos assumir o caráter de mercadoria, de bens produzidos para a troca. O mercado é a forma necessária através da qual os produtos são distribuídos nesse sistema. Ou seja, daí deriva seu caráter essencialmente mercantil. No entanto, ao produzir para outros e seu produto chegar a outros através de incontáveis processos de troca, cada produtor não tem a menor garantia a priori de que, ao final do processo, terá vendido o conjunto dos bens que produz. Pode ou não vender. É o que Marx chama de anarquia da produção. É uma produção que, por basear-se na propriedade privada, não pode ser globalmente planejada. E é essa a base das crises nas economias mercantis e das crises econômicas periódicas do capitalismo.
Mas não basta isso. Diz o grande pensador que essas crises resultam do “conjunto das contradições da economia burguesa”. A possibilidade de não vender toda a produção gerada se realiza no capitalismo através da contradição produção-consumo. O consumo final depende, no capitalismo, basicamente dos que vivem de salário e de lucro. Ainda quando haja melhoria do salário real – isto é, aumento do poder de compra do salário -, a parcela do salário tende a diminuir em relação ao conjunto da renda nacional, na medida em que os ganhos de produtividade são majoritariamente apropriados pelos detentores do capital. Por outro lado, premidos pela concorrência e a consequente sede de acumulação, os capitalistas tendem a acumular – isto é, investir – uma parcela crescente de seus lucros, diminuindo a proporção destinada a seu consumo particular. Em conseqüência, o consumo final, mesmo quando cresce, o faz a um ritmo inferior à produção. É a isso que Marx chamava de subconsumo.
Mas o subconsumo não é a causa imediata da crise, diz Marx em sua polêmica com os ricardianos de esquerda. A produção pode crescer durante um determinado tempo, mesmo que o consumo final não a acompanhe, porque o “consumo intermediário”, isto é, o consumo de meios de produção (máquinas, equipamentos, matérias-primas), pode substituí-lo. A própria lógica da economia capitalista leva a isso. A concorrência leva os capitalistas a buscar novas tecnologias e, conseqüentemente, a substituir o homem pela máquina. Enquanto for possível a substituição do consumo final pelo “consumo intermediário”, a economia pode seguir crescendo. No entanto, esse processo cria uma outra contradição: o setor que produz meios de produção cresce mais rapidamente do que o que produz bens de consumo, provocando uma desproporção intersetorial. Em algum momento, essa contradição vai explodir e, ao explodir, traz à tona a contradição produção-consumo, tornando invendável parcela da produção gerada, formando estoques e demitindo trabalhadores. É a crise.
A questão é saber o que faz explodir essas contradições. Ou seja, o que detona a crise. Para Marx, é a queda da taxa de lucro. O que faz a taxa de lucro cair é o próprio processo de acumulação de capital. Como é o trabalho que produz valor e, portanto, a parcela deste que é apropriada pelo capitalista, que Marx chamou de mais-valor, que se manifesta principalmente sob a forma de lucro, a substituição do homem pela máquina faz com que o lucro gerado pelo trabalho não cresça na mesma proporção da acumulação de capital, ou seja, do crescimento da massa de capital investido. Em decorrência, a taxa global de lucro da economia tende a cair. No momento de auge da acumulação, essa situação se agrava porque, em face do esgotamento do exército de desempregados, aumenta o poder de reivindicação dos trabalhadores, impedindo que os capitalistas descarreguem sobre seus ombros os prejuízos decorrentes da queda dos lucros.
Com a queda da taxa de lucros, os empresários cortam os investimentos e, por conseguinte, as compras de meios de produção. Com isso, o “consumo intermediário” deixa de substituir o consumo final, fazendo o subconsumo aparecer em toda a sua plenitude. A redução das compras de meios de produção provoca demissão de trabalhadores nesse setor, reduzindo a massa salarial e fazendo contrair ainda mais o consumo total dos trabalhadores. O resultado é a queda das vendas do setor de bens de consumo, mais demissão, mais queda de salário e mais queda nas vendas. Em dificuldades, as empresas mais débeis fecham as portas ou vendem suas fábricas. As forças produtivas já não cabem nos estreitos marcos das relações de produção capitalistas, como diria Marx. Nesse processo, barateiam os elementos do capital fixo (máquinas, equipamentos, prédios) e se desvaloriza a força de trabalho – isto é, destroem-se forças produtivas. Só assim, a taxa de lucro volta a subir, reanimando de novo a economia. É essa a dinâmica da crise e do ciclo econômico capitalista. E isso está tin-tin por tin-tin na obra de Marx.
Keynes teve o mérito de, sacudido pela Grande Depressão, escapar dos preconceitos de seus mestres, os economistas neoclássicos, que achavam que, se as tais forças de mercado operassem livremente, a economia caminharia para o equilíbrio. Keynes percebeu que o processo era precisamente o contrário: se funcionassem livremente, as “forças de mercado” conduziriam, inevitavelmente, ao desequilíbrio, à crise. E, ainda que usando uma linguagem distinta, reproduziu, no fundamental, o raciocínio que já fora feito por Marx. Constatou ele que, quanto mais cresce o nível de renda da economia, também cresce o consumo total, mas a um ritmo inferior, isto é, os acréscimos de consumo derivados dos acréscimos de renda tendem a ser cada vez menores. Com isso, a propensão a consumir diminui com o crescimento da renda. Portanto, o consumo cresce menos do que a produção, como já constatara Marx.
Mas, completa Keynes, a crise só se instaura quando há um colapso do que ele chamava de Eficiência Marginal do Capital (EMC), que seria a expectativa de rendimento que poderia ser obtido pelo investimento da última unidade de capital. É a maneira keynesiana de ver o comportamento da taxa de lucro. Vários fatores poderiam levar ao colapso da EMC, dentre eles a percepção dos empresários de que estaria havendo uma queda da propensão a consumir. Com a queda da EMC, caem os investimentos, reduz a demanda de meios de produção, demitem-se trabalhadores, cai a massa salarial, cai o consumo e deflagra-se a crise.
Como se vê, um raciocínio muito parecido ao desenvolvido por Marx. Uma diferença é que, enquanto Keynes trabalha com a expectativa de queda da taxa de lucro, Marx trabalha com a queda efetiva dessa taxa. Mas, apesar da crença dos keynesianos, essa não é uma diferença muito grande, na medida em que, no fundamental, a expectativa keynesiana de queda do lucro é baseada no comportamento efetivo observado na taxa de lucro e, por outro lado, para Marx, não é necessário esperar o colapso efetivo da taxa de lucro para os empresários cortarem os investimentos; ao perceberem que a tendência à queda está se verificando, passam a esperar que ela vai seguir ocorrendo (expectativa) e, em face disso, antecipam o corte dos investimentos.
A diferença substancial é que Keynes, ao contrário de Marx, acreditava que, com a intervenção do Estado na economia, as crises poderiam ser evitadas. O Estado, por não pautar seu comportamento pelo que ocorre com a taxa de lucro, poderia realizar investimentos, mesmo com a EMC em queda; além disso, através do gasto público e de políticas de redistribuição de renda, poderia estimular o consumo, compensando a tendência à queda da propensão a consumir. Os keynesianos das várias vertentes, depois da crescente intervenção estatal do período de pós-guerra, chegaram a acreditar que o ciclo econômico havia sido abolido. O recrudescimento das crises desde os anos setenta mostrou que Marx tinha razão ao perceber que, independentemente da ação do Estado, a combinação do conjunto das contradições da economia capitalista conduziria, irremediavelmente, a crises econômicas periódicas.
O que os keynesianos não perceberam foi que o Estado, usando as políticas keynesianas, pode promover o desenvolvimento, ajudar a economia a sair da crise, mas, enquanto preponderar a propriedade privada e, portanto, o interesse individual na busca do lucro, a ação estatal não poderá impedir a emergência das crises periódicas, na medida em que não pode planejar o conjunto da atividade econômica. Então, Dr. Krugman, o mérito de Keynes não foi decifrar “o código da economia de crise”, pois isso já havia sido feito por Marx. O seu mérito foi sistematizar melhor o que já havia de elaboração sobre o papel do Estado na economia, desde as formulações de Malthus, passando pelas de Alexander Hamilton e Frederick List, até as de Karl Manhein. Equivocou-se – mais seus discípulos do que ele próprio – ao atribuir ao Estado mais do que ele poderia dar, mas percebeu que, nesta época de domínio dos monopólios, torna-se praticamente impossível a saída automática das crises, tornando-se obrigatória a ação do Estado, ou seja, é impossível pensar o funcionamento da economia capitalista de hoje sem o papel do Estado, a despeito das alucinações dos adoradores modernos de um mercado em extinção.
Impressiona pela atualidade (o caráter cíclico das crises econômicas sob o capitalismo nos traz sempre à presença de uma realidade assim) o artigo do século passado. Mais do que uma homenagem à sua republicação, justo mencionar que foi escrito [provavelmente] em 1998, para que leitores menos conhecedores dos economistas citados mais facilmente se localizem no tempo ante a expressões como “século passado”.
Mais uma vez parabéns e obrigado pela acurácia editorial.