Noutro dia, ouvi os versos de Eduardo Alves da Costa serem atribuídos, mais uma vez, a Bertolt Brecht. Na época da ditadura – lembro do Congresso da SBPC de 1977, na PUC da rua Monte Alegre, em São Paulo – era comum atribuí-los a Maiakóvski.
Não era qualquer Congresso da SBPC. Aquele tivera sua realização proibida duas vezes: na Universidade Federal do Ceará (UFC) e na USP. Tratava-se, portanto, de um desafio aberto à ditadura.
Daí, os versos de Eduardo Alves da Costa aparecerem tanto, embora com autoria errada.
Devem ser versos, concluirá o leitor mais jovem, muito bons, para serem atribuídos a tais poetas, a um Brecht e a um Maiakóvski.
Mas, dirá a jovem leitora, de que versos estamos falando?
Ora, destes aqui:
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Existem várias paródias (no bom sentido), mas os versos básicos, os versos de Eduardo, são esses.
A leitora não sabia que esses versos são de um poeta brasileiro?
Pois é. Em uma entrevista a Rôney Rodrigues, do site Outras Palavras, realizada em abril deste ano, Eduardo diz:
“Esses dias mesmo, uma amiga minha falou que vão fazer algumas conferências de literatura na USP e vão ler meu poema, mas atribuído ao Maiakóvski. Ela me perguntou se eu teria como provar que o poema é meu. Falei que poderia mandar a Obra Completa do Maiakóvski que comprei em Paris e pedir para eles verem se encontram o meu poema naqueles sete volumes e, se não for suficiente, mando também todas as antologias e livros em que o poema foi publicado com o meu nome.”
Aos 83 anos, o poeta diz algo – e algo importante – sobre a relação do fascismo com a poesia.
Em 1972, depois de 20 dias preso, interrogado no DOPS de São Paulo, o delegado insistiu:
– Vai falar ou não, poeta?
Ele não tinha o que falar, daquilo que o delegado queria que ele falasse. Tinha dito isso durante 20 dias. Sem resultado. Então, naquele momento, chorou.
– Vocês artistas são muito sensíveis! Você é poeta, não é? – disse outro dos interrogadores.
Eduardo:
– Sou poeta.
A réplica policial foi:
– Na minha opinião o negócio de poeta é dar o cu.
“Nessa época”, comenta Eduardo, “na URSS ou na Europa Oriental, um poeta, quando bom, tinha status de figura histórica ou de nobre. Já no Brasil, ser poeta é dar o cu (cf. “Fui um poeta marginal na ditadura”, entrevista a Rôney Rodrigues, Outras Palavras, 01/04/2019).
Sobre a confusão na autoria dos versos – provavelmente, os mais frequentes durante a ditadura, com exceção das letras de músicas – ele acrescenta algo que, para a maioria dos poetas, seria doloroso, mas, para ele, aparentemente, não:
“Levei minha filha, pequenininha, a uma manifestação [das Diretas-Já] e ela falou: olha seu poema papai! Só que embaixo tinha outro nome.”
Então, para acabar com essas confusões – ou na esperança de acabar com elas, pois a esperança, dizem, é a última coisa que um ser humano pode… esperar – republicamos, aqui, o poema de Eduardo Alves da Costa, escrito na década de 60 do século passado, onde estão os célebres (com toda razão) versos (C.L.).
No caminho, com Maiakóvski
EDUARDO ALVES DA COSTA
Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.
Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.
Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.
E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!