Com loas à “união bipartidária” – mas com o muro -, autoelogios ao “milagre econômico” norte-americano, apologia da guerra comercial e da saída do Tratado INF e até afagos às deputadas democratas, o segundo discurso do Estado da União de Trump, na madrugada de terça-feira para quarta-feira (6) foi mais para o telepromter do que para o Twitter, como uma comentarista política antecipara.
Mas, registrou o New York Times, “isso dura até quando?” Provavelmente até o próximo tweet, se valer a avaliação de que a “mensagem reconfortante” de Trump “estava totalmente em desacordo com a realidade acre de como ele governa”.
O jornal também registrou a “hostilidade vibrante” entre os dois lados, que evidencia o verdadeiro estado da união: “fraturado, rachado, dolorosamente disfuncional”.
VIETNÃ
Trump também anunciou que sua cúpula com o líder norte-coreano Kim Jong Un será no Vietnã, nos dia 27 e 28, após capitalizar os 15 meses “sem testes nucleares ou de mísseis”. Se não estivesse na presidência, afirmou, os EUA estariam “em uma grande guerra na Coreia”.
O “milagre econômico” é aquele que fez Wall Street bater recorde de estufamento de bolha e exacerbou a desigualdade, com dez anos de congelamento do salário mínimo e trabalhadores tão desesperados que até votaram em Trump, depois do estelionato eleitoral de Obama. “A inveja do mundo”, afirmou Trump.
Uma tradição criada por George Washington em 1790, o Discurso do Estado da União é repetida por todos os presidentes, uma vez por ano, perante o Congresso, os militares e a Suprema Corte.
Virou um circo, com Trump levando como convidados duas mulheres cujos familares foram vítimas de um ‘imigrante assassino’, um idoso salvo do campo de concentração de Dachau e um veterano da II Guerra Mundial, uma negra que fora condenada a prisão perpétua por crimes menores, um policial que atuou no tiroteio na sinagoga no ano passado e até uma garotinha que teve câncer.
“SHUTDOWN
Da parte dos democratas, vieram sobreviventes dos tiroteios nas escolas, imigrantes que chegaram ainda criança aos EUA (‘dreamers’), ilegais que trabalharam no resort de Trump, ativistas transgênero, líderes do movimento Me Too e servidores federais que ficaram um mês sem salário no ‘shutdown’.
Foi o primeiro discurso de Trump no Congresso sob a nova situação em que os democratas controlam a Câmara. Algumas das suas exaltações ao bipartidarismo pareciam xerocadas daquelas embromações típicas de Obama, e tão cínicas quanto.
De qualquer forma, até debaixo da farsa do Russiagate é sempre possível aprovar alguma coisa juntos, com Trump conclamando a erradicar o HIV em dez anos (quem seria contra?) e a investir US$ 50 milhões (só?) por ano para prevenir o câncer infantil.
Voltou a apoiar a licença paternidade. Pediu medidas para fazer baixar os preços dos remédios e da saúde nos EUA, mais caros do que na maior parte do mundo, e para deter a epidemia dos opiáceos.
Saudou a participação feminina – o atual congresso é o que mais deputadas tem na história -, com a bancada feminina democrata trajada de branco, em homenagem às sufragistas e aos 100 anos da conquista do direito de voto às mulheres nos EUA.
INFRAESTRUTURA
Ele também comemorou a aprovação de lei “Primeiro Passo” – para amenizar as injustiças cometidas sob as penas excessivas para negros (aprovadas por Bill Clinton), e acelerando revisões judiciais. A questão da infraestrutura decadente dos EUA foi requentada, direto do discurso do ano passado, e sem ter avançado um milímetro.
Mas todas essas exaltações à “cooperação bipartidária” tinham como alvo as investigações do promotor especial Robert Mueller, que não cessa de armar o laço no pescoço de Trump e as ameaças provenientes da Câmara democrata.
Ele cutucou Mueller implicitamente, ao dizer que “a única coisa que pode parar nossa economia são guerras tolas e investigações partidárias ridículas”. “Se vai haver paz e legislação, não pode haver guerra e investigação. Simplesmente não funciona assim!”, acrescentou.
O ex-animador de reality show mostrou-se otimista de um acordo com a China, voltando a dizer que sua relação com o presidente Xi Jinping é excelente, mas voltou a repetir as cínicas histórias de “roubo da propriedade intelectual” e de “países que abusaram” dos EUA nas relações comerciais.
Trump capitalizou, ainda, sua maquiagem do Nafta e que os países da Otan hajam atendido sua exigência de aumentar o pagamento pela “segurança”, isto é, pela ocupação. Jurou ter recuperado o exército norte-americano, com orçamento recorde, e prometeu mais.
Defendeu a retirada da Síria – que ainda não houve – e as negociações com o Talibã no Afeganistão: “grandes nações não ficam em guerras sem fim”. Após voltar a acusar o Irã, se gabou de ter rompido o acordo assinado por Obama e outros seis países e das novas sanções.
O presidente bilionário fez, ainda, questão de lembrar seu garoto Juan Guaidó, que, depois de um inspirador telefonema de encorajamento dele, Trump, se autoproclamou presidente da Venezuela. Aplausos das duas bancadas. Além do petróleo, os presidentes norte-americanos amam muito a democracia e até promovem golpes só para defendê-la.
XENOFOBIA
Sem ameaças explícitas, o tuitador-em-chefe dos EUA insistiu no seu muro da xenofobia e tentou apavorar o público com contos de ‘hordas de assassinos das maras salvadorenhas’ (nascidas nos guetos de Los Angeles) entrando pelas brechas na fronteira. E da avalanche de imigrantes, levados até à fronteira “de ônibus e caminhão”.
“No passado, a maioria das pessoas nesta sala votou por um muro, mas o muro apropriado nunca foi construído. Eu o construirei”, asseverou. Segundo Trump, a construção de um muro em El Paso – cidade do Texas na fronteira com o México – levou a uma redução drástica da criminalidade. “Simples assim, muros f uncionam e muros salvam vidas”.
Uma questão em que Trump inovou foi em ser o primeiro presidente a dizer que os EUA “jamais serão socialistas”, coisa que, até aqui, ninguém achava que era preciso. Só porque Bernie Sanders sugere coisas tão básicas quanto universidade gratuita e Medicare para todos, que já existem na maioria das nações civilizadas. Vai ver, não deu para dizer que os EUA “jamais serão vermelhos”, porque o vermelho é a cor dos republicanos (e azul, a dos democratas).
Até o dia 15 republicanos e democratas têm que achar uma saída para o impasse no orçamento, ou Trump poderá decretar o fechamento do governo federal de novo. Ou decretar “emergência nacional” para construir seu muro, como tem ameaçado. A campanha eleitoral do próximo ano já está pegando fogo.
ANTONIO PIMENTA