CLÓVIS MONTEIRO NETO¹·²
WALTER NEVES¹
A história da chegada dos humanos modernos na Europa aconteceu 10 mil anos antes do que estávamos achando, de acordo com a recente pesquisa liderada pelo cientista Ludovic Slimak, da Université de Toulouse Jean Jaurès, sobre a caverna de Mandrin, no Sudeste da França, publicada na revista Science de fevereiro. Isto significa que, de acordo com os estudos, nossa espécie já estava no continente europeu há cerca de 56.800 anos. Antes se pensava que só havíamos chegado há 45 mil anos.
Dez mil anos é muita coisa, basta pensarmos que a prática da agricultura – a domesticação de vegetais – tem aproximadamente essa temporalidade.
O mais interessante é que esses dez mil anos fazem toda a diferença, pois é o período em que, uma vez confirmada a datação, teria havido uma longa sobreposição no mesmo espaço geográfico – a Europa – de populações de sapiens e neandertais. O que traz um grande impacto em nosso entendimento até então da pré-história hominínia.
Isto significa que muita coisa que antes era considerada como produção neandertal, uma vez que se acreditava não haver sapiens antes de 45 mil anos na Europa, pode ser produto dos sapiens. Isto vale para a produção de ferramentas de pedras, de ossos e até para manifestações de pensamento simbólico como gravuras, pinturas e adornos. Também implica em entender de forma diferente a interação havida entre as duas espécies, uma vez que puderam ter milhares de anos de oportunidade para isso.
Dente por dente
Mas o que foi encontrado em Mandrin?
A caverna de Mandrin fica perto da cidade de Malataverne, no Vale do Rhône, sudeste francês. A região já foi escavada em diferentes épocas e, desde 1990, foram estabelecidas uma sequência de 12 camadas arqueológicas (que vão da camada J à B1), englobando um intervalo entre cerca de 140 mil e 40 mil anos. As camadas geológicas vão sendo nominadas de cima para baixo, à medida que a escavação progride. A primeira camada é a A, a segunda B e assim por diante. As camadas de cima são mais recentes e as de baixo mais antigas. Uma camada tem uma certa homogeneidade que a caracteriza, tendo sido acumulada em um período determinado, representando uma fatia temporal definida. O que marca o início e o fim de uma camada é alguma alteração no depósito de sedimentos, como cinza vulcânica, areia, argila, blocos, concreção calcária etc, que sirva de divisor de eventos. Datando-se um osso de um animal, por exemplo, pode-se usar essa data como referência para a camada.
Pois estava na camada “E” um pequeno grande achado, um dente de leite diagnosticado como sendo de Homo sapiens e que foi datado entre 56.800 e 51.700 anos antes do presente. Cabe lembrar, que até então as idades mais antigas registradas de sapiens na Europa estavam entre 45 e 43 mil anos, baseadas em três locais diferentes na Itália. A datação é extraordinária! Os humanos modernos estarem presentes na Europa muito antes do que se achava mexe bastante com o entendimento sobre de quem é a autoria de diversos achados.
Apesar do parentesco entre sapiens e neandertais, várias alterações morfológicas se acumularam entre as duas espécies ao longo do tempo, permitindo uma clara diferenciação entre elas. E para a nossa sorte, o dente foi uma delas. É raríssimo na paleoantropologia um esqueleto inteiro ser achado. Às vezes um dentinho faz milagres! Foi o caso. Por outro lado, para muitos especialistas este é um ponto frágil na pesquisa. Uma mudança tão grande na interpretação da pré-história humana na Europa não poderia ser baseada em apenas uma evidência.
Mas Mandrin nos trouxe mais. Um estudo pormenorizado das camadas conseguiu estabelecer uma sequência de ocupações em que sapiens e neandertais se alternaram ao longo de milhares de anos, no mesmo local. Em cada um destes momentos, a indústria lítica, que é como chamamos o conjunto de ferramentas de pedra que um determinado grupo de hominínio produz, também se alternou. Este foi um fator importante para caracterizar a mudança de ocupação.
A indústria lítica classicamente associada aos neandertais tem o nome de musteriense. Pois ela estava presente nas camadas B2, B3, C1, C2, D, F, G, H e I. Já nas camadas B1 e E foram encontrados vestígios associados aos sapiens. A camada B1 não tem muita novidade em termos de datação, porque ela é mais recente, em torno de 40 mil anos. Mas a camada E, com o dente e dezenas de objetos líticos, chegou a 56.800 anos de antiguidade!
Ponta por ponta
Além do já falado dente de leite, na camada E foram encontrados dezenas de artefatos de pedra que não eram mousteriense. Os neandertais tinham uma variedade de peças líticas limitada em comparação aos humanos modernos. Os sapiens tinham um enorme “kit de ferramentas”, incluindo pequenas pontas, lâminas muito finas, artefatos mais finamente trabalhados, além do uso de uma multiplicidade de matérias primas. As pontas e micro pontas encontradas na camada E (veja a foto) carregam essa característica sapiens, apesar de guardar um estilo próprio. Um estilo que foi identificado em outros sítios da região, especialmente na caverna de Néron. Por essa razão o estilo ficou batizado como neroniano.
Ao todo, nas diversas camadas, foram recuperados nove dentes, representando pelo menos sete indivíduos, cerca de 60 mil líticos e 70 mil vestígios de fauna. O quadro das ocupações foi montado, ora com o diagnóstico da indústria lítica, ora com a da análise dos dentes. No caso da camada E, os dois fatores, tanto o fóssil quanto a indústria lítica associada, apontaram que eram sapiens os que ali estavam há extraordinários 56.800 anos!
O que muda?
Nas últimas décadas, vários especialistas começaram a se convencer de que os neandertais haviam produzido pinturas, ferramentas mais rebuscadas, adornos corporais, e que esta produção representava a expressão de um pensamento simbólico precoce.
Um dos mais proeminentes arqueólogos de Portugal, João Zilhão, estudioso de sítios neandertais na Europa, em entrevista a Kate Wong, publicada em 2010 na Scientific American, defende que os neandertais tinham pensamento simbólico e foram os autores de adornos e tintas usadas para pinturas corporais. Ele cita especificamente dois sítios. O primeiro no sudeste da Espanha, Cueva de los Aviones, escavado em 1985, com datação entre 48.000 e 50.000 anos atrás. Ele revisitou a coleção no museu e encontrou uma concha perfurada de uma forma específica que indicava o uso dela como pingente. Também achou outra concha em que havia resíduo de pigmento vermelho – ela poderia ter sido pintada ou servido de base para a tinta – e um osso de cavalo com marca de pigmento.
O segundo lugar, Cueva Antón, cerca de 60 km do primeiro, onde Zilhão escavou sítios neandertais desde 2008, um estudante seu encontrou uma concha perfurada também com pigmentos, neste caso alaranjados. A antiguidade do sítio é similar ao primeiro, 50 mil anos. Na entrevista, um dos primeiros argumentos atribuindo aos neandertais a “obra de arte” foi que os sítios eram “10 mil anos antes dos humanos modernos terem entrado na Europa”.
Mandrin vem derrubar esse argumento. Esse é o maior impacto da descoberta na caverna francesa. Isto também não quer dizer que os neandertais não possam ter feito os artefatos estudados por Zilhão. Mas a discussão fica mais complexa. Será que não houve também uma alternação de ocupações sapiens e neandertais e os objetos que estavam no museu, escavados há tanto tempo, estavam misturados? Se houve convivência entre as duas espécies, os neandertais não poderiam ter simplesmente imitado algo dos sapiens, em vez de estarem expressando um pensamento simbólico próprio? Ou trocado objetos?
Pano para manga
O arqueólogo João Zilhão sugere que se os neandertais tinham pensamento simbólico, provavelmente esta seria uma característica que estaria presente no nosso último ancestral comum (entre sapiens e neandertal), que foi o Homo heidelbergensis. Há cerca de 200 mil anos, os sapiens evoluíam do heidelbergensis na África enquanto os neandertais estavam evoluindo do heidelbergensis na Europa. Como visto, o estudo da evolução humana é muito dinâmico. Cada novo achado pode ter o poder de alterar toda a compreensão que tínhamos antes. Novas descobertas, novos estudos, novas teorias. E assim caminha a humanidade. Mandrin ainda vai dar muito pano para manga.
¹Núcleo de Popularização dos Conhecimentos sobre Evolução Humana, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo.
²Editor-geral do Jornal Hora do Povo