Em uma live especial do Meia Noite em Pequim, da TV Grabois, o pesquisador e escritor Elias Jabbour comenta o informe do presidente Xi Jinping ao 20º Congresso do Partido Comunista da China.
Que – registra Jabbour – teve “destaque zero” na mídia brasileira, afora alguns comentários pejorativos de plantão. O que é incompreensível na medida em que a China é o maior parceiro comercial do Brasil e no 20º Congresso, como ele assinala, estão sendo tomadas decisões, como a da autossuficiência, que podem nos atingir.
Nas considerações iniciais, o pesquisador apontou que cresceu a participação feminina no Congresso do partido, tendo alcançado agora os 30%. Já se percebe uma mudança de baixo para cima, embora ainda sejam os quadros homens que estão nos órgãos superiores.
Na questão da política de Covid Zero, não vai ter mudança de rota brusca. Quanto a Taiwan, trata-se de assunto interno da China, que vai tomar sua decisão de como vai reintegrar de fato, o que já é seu de direito. No discurso, a parte sobre as conquistas dos últimos dez anos serve para embasar os novos rumos.
Para Jabbour, abre-se o espaço para que a China possa vir a fazer um xeque mate no capitalismo pela via da planificação do comércio exterior, que realiza hoje. A política de Washington de deter o crescimento chinês com sanções tem se mostrado complicada na medida em que 140 países têm a China como principal parceiro comercial.
Sintoma desse enfrentamento é a ordem, dada na semana passada, pelo presidente Biden a todos os norte-americanos que trabalham na China no setor de semicondutores para que saiam, caso contrário vão perder sua cidadania americana. Estão apertando o torniquete no que concerne à possibilidade da China ter acesso à tecnologia de semicondutores.
A resposta da China vai ser – enfatiza Jabbour – dobrar a aposta no sistema nacional de inovação tecnológica, e deve aumentar o número de estatais da China voltadas à construção de semicondutores assim como redirecionar para aí toda a energia que a juventude chinesa, antes focada nas Big Tech.
No informe, Xi Jinping coloca ênfase na Nova Estratégia de Desenvolvimento baseado na autossuficiência tecnológica.
Para o pesquisador, não se trata, ao contrário do que acham muitos economistas heterodoxos, de uma suposta resposta ao “esgotamento do crescimento pautado no investimento” ou do “esgotamento do crescimento pautado pelas exportações”. O que é um absurdo: é impossível as exportações puxarem uma economia como a China; os investimentos, sim.
Ele sublinha que a China chegou num ponto da fronteira tecnológica em que tem que ter “a capacidade de reinternalização de cadeias produtivas que estão fora da China”.
Internalização do eixo dinâmico de fora para dentro que a China conseguiu fazer durante muito tempo, muito bem: indústria de base, siderurgia, indústria mecânica pesada, toda a infraestrutura de trens de alta velocidade. O que amplificou nos seus centros de pesquisa ligados às grandes empresas estatais.
O que está ficando muito difícil de fazer no setor de semicondutores, daí essa nova estratégia de desenvolvimento. O presidente Xi – destaca Jabbour – coloca alguns pontos dos quais pouco se tem falado, o fortalecimento do setor público da economia ao lado também do fortalecimento dos setores não públicos.
As empresas estatais chinesas têm sido o núcleo pelo qual se constituiu todo sistema nacional de inovação tecnológica desde o primeiro plano quinquenal, que é de 2006.
Outra questão central envolve a busca da segurança alimentar, como forma de evitar que o imperialismo, em um futuro conflito, bloqueie a importação de grãos pela China. O que se espera atingir a partir de uma mudança estrutural na agricultura chinesa, de um agricultura baseada em pequenos lotes familiares, uma agricultura familiar, para a agricultura comercial, de grande porte, uma agricultura que Marx chamara de alta composição orgânica do capital.
Do ponto de vista conceitual – acrescenta Jabbour – não é muito difícil explicar: há uma separação entre indústria e agricultura mas também existe um tendência de transformação da agricultura num ramo da indústria.
A agricultura chinesa hoje ela é cada vez mais industrial, ou seja, a escala de produção. É um processo que envolve êxodo rural e para isso tem de haver uma planificação desse êxodo rural. O que não é algo fácil, mas está se fazendo com muito sucesso. Os chineses urbanizaram em dez anos 13 milhões de pessoas por ano, sem favelizar o país.
Xi Jinping falou, também, em novas políticas regionais equilibradas. Ou seja, a intensificação do processo de especialização produtiva em alta tecnologia. De um lado, poupador de mão de obra; do outro, industrialização da agricultura.
É um processo que já está acontecendo e vai demandar muita criatividade no que concerne a novos esquemas tanto de divisão social do trabalho quanto de urbanização. Isso significa, por exemplo, habitar as cidades fantasmas.
Os chineses falam o tempo todo em transformar o marxismo em algo chinês ou sinização do marxismo, no fundamental o socialismo científico, o marxismo, só ganha força material de fato quando se adapta a uma realidade nacional. Então as revoluções não acontecem com receita pronta, os processos de desenvolvimento dos partidos comunistas no poder não acontecem com receita pronta, até porque o marxismo tem de se adaptar àquela estrutura cultural anterior, àquela estrutura de classe do país.
Mas para China hoje isso alcança outro patamar, porque existe o desafio da governança. A burguesia já sabe governar, ela exerce o poder há 200, 300 anos, consegue ter soluções simples para questões complexas, pois a resposta que tem que dar não é para as massas mas sim para meia dúzia de ricos que controlam o Estado, então é impossível a China importar do Ocidente as formas de governar o Estado.
Essa preocupação que envolve a transformação do marxismo em algo chinês, o desafio da governança chinesa, é um ponto alto do informe político de Xi Jinping.
Até porque sem isso não vai ter como a China enfrentar os desafios nos próximos anos; são desafios que podem colocar em xeque a própria experiência do socialismo chinês enquanto tentativa civilizatória.
Para terminar, Jabbour realça outro ponto do discurso, em que Xi Jinping fala que “o processo de modernização da China mostra à humanidade que existem outras escolhas a serem feitas”.
Estrategicamente o que a China busca ao expor uma frase dessas no meio do informe, do nada, é uma reforma da governança internacional, que não permita que os países que não tenham o mesmo modelo socioeconômico do tal ‘Ocidente’ – que é meia dúzia de países decadentes -, não sofram bullying. Expressão que ele cita literalmente.
Elias Jabbour é professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ.