“O governo pretende investir/financiar no complexo processo de reindustrialização (designado na nomenclatura governamental de neoindustrialização) apenas R$ 100 bilhões por ano dos R$ 300 bilhões previstos para o triênio. Ajuda bastante, mas ainda precisa melhorar. Pois destruir é fácil, construir é difícil”, argumenta o economista
O economista e professor Nilson Araújo de Souza avaliou, nesta quarta-feira (31), em entrevista ao HP, o plano de reindustrialização, anunciado recentemente pelo governo. Para ele, a proposta está no caminho certo. Ele chama a atenção, no entanto, para as restrições impostas pela política fiscal restritiva, defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Para Nilson, há a necessidade de ampliar os recursos para a retomada da indústria brasileira, desmontada e sucateada nos últimos quarenta anos.
“Ele [o plano] está na direção correta”, disse o professor. “Mas quero fazer alguns alertas”, acrescentou. “Em primeiro lugar, é praticamente impossível realizar uma tarefa dessa dimensão – reconstruir a indústria em novas bases tecnológicas – sem que se proteja a indústria em processo de reconstrução, adotando desde tarifas de importação até medidas não-tarifárias, tais como subsídios fiscais e creditícios. Todos os países que se industrializaram, inclusive o Brasil no passado, usaram esse instrumento poderoso”, argumentou.
“O programa propõe o uso do investimento público como uma das alavancas do processo de reindustrialização. Isso é mais do que correto. Mas, para isso, é imprescindível remontar a Petrobrás e recuperar a Eletrobrás, empresas que têm uma larga experiência em estimular a criação e desenvolvimento de empresas nacionais, além de derrubar as taxas de juros e as normas draconianas do novo marco fiscal, que limitam e mesmo bloqueiam o investimento público”, prosseguiu o economista. Confira!
SEGUE A ENTREVISTA
HORA DO POVO: Como avalia o plano de retomada da indústria apresentado pelo governo?
NILSON ARAÚJO: Vou primeiro expor o que é o plano Nova Indústria Brasil para que os leitores e leitoras conheçam o conteúdo do que estamos discutindo. Pois bem, quem construiu essa proposta “governada por missões” foi o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, que é composto por membros do governo e da sociedade, tendo como presidente o vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, e como Secretária Executiva minha amiga Verena Hitner.
O programa – que vai de 2024 a 2033, ainda que os recursos previstos se limitem ao período 2024 a 2026 – se divide em seis missões, a saber:
- 1) cadeias agroindustriais, que prevê aumentar de 18% para 70% os estabelecimentos mecanizados da agricultura familiar, além do que 95% dessas máquinas devem ser produzidas nacionalmente;
- 2) complexo industrial da saúde, que visa promover o aumento de 42% para 70% a participação da produção nacional de insumos em saúde, como medicamentos, vacinas, IFAs, equipamentos e dispositivos médicos;
- 3) bem-estar das pessoas nas cidades por meio da mobilidade urbana, infraestrutura, saneamento e moradia, visando a reduzir em 20% o tempo de deslocamento do trabalhador de casa para o trabalho;
- 4) transformação digital, que objetiva elevar de 23,3% para 90% as empresas nacionais digitalizadas, triplicando a participação nacional com as novas tecnologias;
- 5) bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energética, que visa ampliar de 21,4% para 50% a participação dos biocombustíveis na matriz energética de transportes e assim diminuir em 30% a emissão de carbono da indústria nacional;
- 6) tecnologia da defesa, que busca garantir nossa soberania e estabelece a meta de atingir 50% da produção nacional da tecnologia para apetrechar o setor de defesa (tais como energia nuclear, sistemas de comunicação e sensorialmente, sistemas de propulsão e veículos e remotamente controlados).
Entre os instrumentos previstos para o programa, destaca-se o financiamento público: para três anos, o montante é de R$ 300 bilhões: R$ 106 bilhões que haviam sido anunciados em julho do ano passado, por ocasião da primeira reunião do CNDI, e mais R$ 195 bilhões agora, que serão aportados pelo BNDES, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Empresa Brasileira de Estudos e Projetos (Embrapii).
O critério para distribuir essas verbas é a composição entre o estímulo ao aumento da produtividade pela compra de equipamentos, a implementação de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação e de sustentabilidade da indústria, além de incentivos para o acesso ao mercado internacional.
Um outro importante instrumento de apoio à reindustrialização em novas bases tecnológicas são as compras governamentais. Para levar adiante essa imprescindível medida num processo de industrialização, o presidente Lula rejeitou o acordo Mercosul-União Europeia, devido à inaceitável exigência dos seus governos de que os países do Cone Sul abrissem mão de usar as próprias compras governamentais como importante instrumento de política industrial para serem abocanhadas por grupos econômicos europeus.
“O Presidente Lula rejeitou o acordo Mercosul-União Europeia, devido à inaceitável exigência dos seus governos de que os países do Cone Sul abrissem mão de usar as próprias compras governamentais como importante instrumento de política industrial para serem abocanhadas por grupos econômicos europeus”
O programa prevê também a adoção de subvenções fiscais ou creditícias em apoio à indústria. O investimento público, outro instrumento fundamental no programa, tem um papel protagonista na reindustrialização.
Constam ainda do programa créditos tributários, apoio no comércio exterior, transferência de tecnologia, propriedade intelectual, infraestrutura de qualidade (a ser proporcionado pelo Novo PAC), participação acionaria, regulação da economia, encomendas estatais tecnológicas e exigência de conteúdo local.
HP: Qual então sua avaliação do Plano?
NILSON: Ele está na direção correta. Gostei da decisão de elaborar o programa com base em missões, seguindo a recomendação da Mariana Mazzucato. Economista italiana, sediada em Londres, vem analisando as contradições do capitalismo contemporâneo e elaborou a concepção de planejar o desenvolvimento não com base em setores da economia, mas sim fundamentado em missões.
Diz ela:
“Grande parte da atual análise econômica tende a focar nas dívidas e nos déficits públicos. Mas uma abordagem orientada por missões traz uma nova maneira de ver as coisas. Fazer a economia trabalhar para os objetivos sociais, em vez de fazer a sociedade trabalhar para a economia, exige reverter a maneira como se avaliam os orçamentos hoje”.
O governar por missões seria para ela eleger o Estado como protagonista do desenvolvimento a fim de colocar a economia a serviço do bem-estar da população, metodologicamente, as missões são transversais: atravessam as ações de vários ministérios e demais órgãos da administração pública.
“O governar por missões seria para ela [Mazzucato] eleger o Estado como protagonista do desenvolvimento a fim de colocar a economia a serviço do bem-estar da população”
Até aqui tudo bem. Mas quero fazer alguns alertas. Em primeiro lugar, é praticamente impossível realizar uma tarefa dessa dimensão – reconstruir a indústria em novas bases tecnológicas – sem que se proteja a indústria em processo de reconstrução, adotando desde tarifas de importação até medidas não-tarifárias, tais como subsídios fiscais e creditícios. Todos os países que se industrializaram, inclusive o Brasil no passado, usaram esse instrumento poderoso. E o Brasil, que se desindustrializou, deve viver um novo período de industrialização, aproveitando e desenvolvendo tecnologicamente o que sobrou e incorporando novas indústrias de ponta.
Existe um grau de abertura comercial externa muito grande no Brasil. Praticamente aboliram as tarifas de importação, além de outras medidas de contenção das importações. Além disso, a nossa moeda está valorizada, puxada pelos juros reais siderais e que por isso mesmo atraem os dólares especulativos, barateando o produto estrangeiro que invade o nosso mercado interno e arrasa a nossa indústria.
“Existe um grau de abertura comercial externa muito grande no Brasil. Praticamente aboliram as tarifas de importação, além de outras medidas de contenção das importações”
Sem barrar essa invasão desbragada, fica muito difícil, senão impossível, reconstruir nossa indústria. Essa proteção externa não consta dos instrumentos previstos no Plano. Os neoliberais pontificam que o protecionismo é para proteger “empresário vagabundo”. Vagabundos são eles que não se cansam de puxar o saco dos rentistas financeiros e das transnacionais, cujos interesses eles representam como verdadeiros capachos.
O programa propõe o uso do investimento público como uma das alavancas do processo de reindustrialização. Isso é mais do que correto. Mas, para isso, é imprescindível remontar a Petrobrás e recuperar a Eletrobrás, empresas que têm uma larga experiência em estimular a criação e desenvolvimento de empresas nacionais, além de derrubar as taxas de juros e as normas draconianas do novo marco fiscal, que limitam e mesmo bloqueiam o investimento público.
“O programa propõe o uso do investimento público como uma das alavancas do processo de reindustrialização. Isso é mais do que correto. Mas, para isso, é imprescindível remontar a Petrobrás e recuperar a Eletrobrás, empresas que têm uma larga experiência em estimular a criação e desenvolvimento de empresas nacionais”
Uma das missões é “Bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energética”. Considero que esse processo não deve se dar à custa do desenvolvimento das forças produtivas”. Por exemplo, não podemos abrir mão de explorar a Margem Equatorial porque, além de precisarmos dessa imensa massa de recursos sob a forma de petróleo e gás, ela pode terminar provocando a sanha expropriadora do imperialismo estadunidense.
Acho que foi acertada a alocução do Presidente Lula, quando disse que a transição ambiental e energética “não pode servir de fachada para um neocolonialismo”. E completou: “a floresta tropical não pode ser vista apenas como um santuário ecológico”, mas deve desenvolver-se e ajudar a desenvolver o Brasil a partir de sua própria e específica realidade.
Não vi no documento uma decisão firme de que a prioridade é o mercado interno, alavancado pelo poder de compra do salário, complementado pelo mercado externo. E ênfase demasiada nas exportações. Sinto, além disso, que o volume de investimento programado ainda não está no ponto, mas isso fica para a pergunta seguinte.
“Não vi no documento uma decisão firme de que a prioridade é o mercado interno, alavancado pelo poder de compra do salário, complementado pelo mercado externo. E ênfase demasiada nas exportações”
HP: Os recursos destinados para a retomada da indústria são suficientes?
NILSON: Vejamos agora o volume do investimento e financiamento públicos. Somando novos R$ 195 bilhões aos R$ 106 bilhões já anunciados no ano passado, chegamos aos R$ 300 bilhões divulgados. Se em 2023 o valor do PIB nominal foi da ordem de R$ 10,7 trilhões e a taxa de investimento de 17% do PIB, tivemos um volume de investimentos totais (FBCF) de 1,8 trilhão.
Digamos, a título de exemplo, que o investimento na indústria de transformação corresponda a 20% do total (média de 2007-2008) e que depois baixou para 16%, isso significa que ela teria realizado em 2023 um investimento entre R$ 290 bilhões e R$ 360 bilhões por ano. Pesquisa inédita feita pela Fiesp (“Investimento e estoque de capital da indústria de transformação – 1996 a 2021”, setembro de 2023) indica que o Brasil precisa investir R$ 456 bilhões (4,6% do PIB) anualmente por pelo menos sete anos para retomar o auge da indústria de transformação.
O governo pretende investir/financiar no complexo processo de reindustrialização (designado na nomenclatura governamental de neoindustrialização) apenas R$ 100 bilhões por ano dos R$ 300 bilhões previstos para o triênio. Ajuda bastante, mas ainda precisa melhorar. Pois destruir é fácil, construir é difícil.