Liz Truss – que já se disse “pronta” para acionar armas atômicas ainda que isso signifique uma “aniquilação global” – é a substituta de Boris Johnson: Inglaterra vive verão do descontentamento, com inflação recorde, greves e protestos
A ex-ministra das relações exteriores britânica, Liz Truss – conhecida por se pretender um clone tardio da ‘Dama de Ferro’ Margareth Thatcher e pela obtusidade – acaba de ser eleita, em votação interna dos filiados do Partido Conservador, a nova primeira-ministra em substituição a Boris Johnson, que renunciou em julho, após uma sucessão de escândalos e festinhas de Covid – embora, como a sucessora assinalou, ele continue muito popular “em Kiev”.
BoJo – como ele é conhecido nos meios políticos -, ele próprio um clone de Trump, aliás, um tanto mais apatetado, vai ter, assim, uma substituta, digamos, à altura.
A escolha ocorre em um momento particularmente aflitivo para os ingleses, com a maior inflação em 40 anos (10,1% em junho), 1 em cada seis britânicos sob ameaça de ‘pobreza energética’ – incapacidade de pagar as contas de eletricidade – com o inverno chegando, enquanto a federação de pequenas empresas advertiu que a metade delas corre o risco de colapso pelo custo da energia.
No final de agosto, a Reuters citou o regulador de energia britânico Ofgem dizendo que os preços da eletricidade no Reino Unido aumentarão 80% a partir de 1º de outubro e a conta média das famílias para o ano será superior a £ 3.500. O limite superior de £ 3.549 para eletricidade quase triplicará em relação ao inverno passado (£ 1.277).
A Inglaterra está vivendo um “verão do descontentamento”, com greves e protestos, admite a mídia. O Banco da Inglaterra prevê que o país entrará em recessão no próximo ano. Na votação interna, Truss obteve 57% contra 43% do ex-ministro do Tesouro, Rishi Sunak.
“PRONTA” PARA A “ANIQUILAÇÃO GLOBAL”
No decorrer da extensa campanha interna conservadora – que durou dois meses enquanto o país se afundava na crise e na inflação – Madame Truss asseverou em agosto que estava “pronta” para ativar os submarinos Trident armados nuclearmente “mesmo que isso significasse aniquilação global”.
Declaração feita em paralelo à escalada das sanções contra Moscou – para “destruir a economia russa”, como ela falou – e da conclamação ao envio de “armas pesadas, aviões e tanques” ao regime de Kiev.
A outra faceta já citada de Truss ficou patente em entrevista à BBC em que confundiu o Mar Báltico com o Mar Cáspio e, ao se reunir com o chanceler russo Sergei Lavrov em Moscou em fevereiro, por insistir em dizer que Londres “jamais reconheceria a soberania da Rússia” sobre Rostov e Voronezh – regiões russas inquestionáveis e que ela não sabia diferenciar das repúblicas rebeladas do Donbass.
SENSO DE OPORTUNIDADE
Segundo a mídia britânica, ao longo de sua trajetória política Madame Truss demonstrou um afiado senso de oportunidade – ou oportunismo, segundo os mais exigentes -, tendo sido na adolescência vagamente de “esquerda” por influência dos pais, flertou com os Liberais-Democráticos (à direita dos blairistas) e finalmente adentrou de mala e cuia nos conservadores.
Onde já transitou por vários cargos, com o mesmo desembaraço com que ensinou geografia ao ignaro Lavrov.
Ainda de sua lavra como chanceler, é a proposição de uma OTAN em que o sol jamais se ponha, uma “OTAN global”, direcionada contra a Rússia e a China, para “manter a ordem mundial sob regras” (de Washington). “A geopolítica está de volta”, alardeou na ocasião.
Também ameaçou Pequim com sanções, se não se dobrar à “ordem das regras”, talvez saudosa dos tempos em que a Marinha Real governava os mares e o tráfico de ópio.
O portal Politico EU revelou que Truss vinha preparando sua campanha há meses, enquanto ocorria a fritura de Johnson, com suas “fizz com Liz”, como chamava os acenos à bancada conservadora, mas teve o cuidado de só se lançar candidata oficialmente após a renúncia dele, enquanto torrava Sunak por ter ido com muita sede ao pote.
AOS MAGNATAS, O ALÍVIO
Diante da crise, o arremedo de Thatcher tem uma receita infalível: reduzir os impostos e deixar de lado aquela proposição absurda de seu oponente na corrida a Downing Street 10, Sunak, que queria impor um adicional sobre os lucros extraordinários das petroleiras, que estão fazendo um baile de arromba enquanto o resto da economia, e os trabalhadores, gemem.
A estreante também rechaçou proposta do líder dos trabalhistas, Keir Starmer, aliás, Sir Keir Starmer, amigo da rainha e de Tony Blair, de congelar o limite do preço da energia, porque, segundo ela, engessaria a economia e custaria dinheiro, “mas realmente não iria tratar da causa raiz” do problema (Putin?).
Entre outras proposições adiantadas por Truss em sua campanha estão, segundo compilação da mídia britânica, “captar ‘as oportunidades’ da saída da Inglaterra da União Europeia, “incluindo a desregulamentação da City londrina” [setor financeiro]; estender a outros países africanos o acordo existente com Ruanda para deportar imigrantes; e aumentar o gasto bélico para 3% do PIB até 2030 – o que terá como efeito colateral devastar os programas sociais, mas fará a felicidade do complexo industrial-militar norte-americano.
Durante o debate interno, o oponente Sunak havia denunciado que o plano econômico esboçado por Truss somente faria a inflação aumentar e classificado o corte de impostos proposto por ela como uma “falha moral”. Após a votação, ele convocou os conservadores a se unirem sob Truss, “que liderará o país através de tempos difíceis”.
RESCALDO DO BREXIT
Há também o rescaldo do Brexit e, a parte mais difícil disso, sobre o acordo na fronteira comum na Irlanda. O ministro irlandês para assuntos europeus, Thomas Byrne, disse que Dublin está contando com o histórico da Truss de mudar suas posições quanto ao projeto de lei que estará sendo analisado pela Câmara dos Lordes nas próximas semanas.
“Espero que ela mostre o pragmatismo que sem dúvida demonstrou no passado… Ela se opôs ao Brexit; ela mudou de partido; ela mostrou que pode mudar suas opiniões”, disse Byrne, acrescentando: “ouvimos tons mais suaves de Liz Truss no passado. Acho que há lá pragmatismo”. Mas – acrescentou – a lei [que viola o acordo do Brexit] “tem que se ir”.