Nova premiê Takaichi jura tornar o Japão grande novamente, mas a serviço de Washington

Nova premiê Takaichi promete mais dependência aos EUA (AP)

Saudado por manchetes como “momento histórico”, a ascensão de Sanae Takaichi ao posto de primeira mulher primeira-ministra do Japão, marca “não a emancipação do Japão das restrições do pós-guerra, mas o aprofundamento de seu alinhamento estratégico com o projeto Indo-Pacífico de Washington”, assinalou o analista francês André Benoit, na RT.

Vitória que veio após um período turbulento para o Partido Liberal Democrático (LDP) do Japão, “enfraquecido por derrotas eleitorais consecutivas que o despojaram de sua maioria em ambas as câmaras da Dieta”.

Para Benoit, a nova primeira-ministra prometeu canalizar “a frustração pública com a inflação, estagnação e imigração em um renovado senso de propósito. A mensagem era clara: o Japão deve se orgulhar novamente.”

“Orgulho” que, denunciou, “é modelado em um projeto que Washington conhece bem – um Japão mais forte, mas de maneira que sirva à estratégia americana mais ampla na Ásia”.

A China – ele destacou – foi rápida em perceber. “O Japão deve refletir sobre sua história e lembrar as lições para não repetir os erros da guerra do passado”, disse Lin Jian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China. O aviso insinuou o que os vizinhos de Tóquio suspeitam: que a ‘nova independência’ do Japão pode, de fato, ser um retorno às antigas lealdades – desta vez sob uma bandeira americana.

FRENESI REARMAMENTISTA

No centro da agenda de Takaichi está a promessa de revisar o Artigo 9 da Constituição, a cláusula que vincula o país ao pacifismo desde a Segunda Guerra Mundial, para expandir o direito do Japão à “autodefesa coletiva”. Uma mudança iniciada por Abe, mas que agora acelera em um ritmo sem precedentes.

O Japão está adquirindo e desenvolvendo capacidades de ataque de longo alcance, incluindo mísseis de cruzeiro Tomahawk fabricados nos EUA e sistemas AGM-158 JASSM, bem como seu próprio míssil Type-12, cujo alcance foi estendido para quase 1.000 quilômetros. Os destróieres de helicópteros da classe Izumo estão sendo convertidos para implantar caças furtivos F-35B, enquanto novos investimentos são feitos em programas de defesa cibernética e espacial.

Refletindo essas ambições, o orçamento de defesa do Japão para o ano fiscal de 2026 é projetado em cerca de ¥ 8,8 trilhões (cerca de US$ 60 bilhões) – o maior de sua história e um aumento de 4-5% em relação a 2025. O objetivo é atingir 2% do PIB até 2027, atendendo à referência da Otan para uma ‘dissuasão confiável’.

Meta que “se alinha perfeitamente com os apelos de Washington por um maior ‘compartilhamento de encargos’”, enfatizou Benoit.

Como disse o secretário adjunto de Defesa dos EUA para Assuntos de Segurança do Indo-Pacífico, John Noh, “o Japão há muito subestima os gastos com sua própria defesa, especialmente devido às ameaças representadas pela China e pela RPDC”, incitando Tóquio a ser seu peão na contenção da China.

“ZERO VEZES”

Críticos em casa e no exterior questionam se essa militarização realmente aumenta a soberania do Japão – ou o vincula ainda mais ao arsenal dos EUA. “Jeffrey D. Sachs, da Universidade de Columbia, argumenta: “Os EUA agem como se o Japão precisasse ser defendido contra a China. Vamos dar uma olhada. Durante os últimos 1.000 anos, quantas vezes a China tentou invadir o Japão? Se você respondeu zero, você está correto.”

Por enquanto, a “autonomia” de Tóquio parece “menos independência e mais alinhamento”, observa o autor. “As bandeiras podem ser diferentes, mas o hardware – e a estratégia – permanecem inconfundivelmente americanos.”

DECLÍNIO, SUBMISSÃO E DÍVIDA

Para Benoit, se a nova postura de defesa do Japão é o músculo do projeto de Takaichi, sua base econômica é “o osso frágil”. O país entra nesta nova era de força “sobrecarregada pelo declínio demográfico, dívida e crescimento lento – um paradoxo para uma nação que se orgulha de disciplina e eficiência”.

Em 2025, a economia do Japão permanece presa entre a pressão inflacionária e a estagnação, sublinhou. “O crescimento real do PIB deve oscilar entre 0,4% e 0,7% até 2026, limitado por exportações fracas e consumo doméstico estável. O acordo comercial EUA-Japão recalibrado de 2025 manteve as tarifas sobre automóveis em até 25%, ressaltando como as obrigações da aliança podem funcionar como restrições econômicas.”

Embora não citado por Benoit, o acordo obriga o Japão a investir US$ 550 bilhões na reindustrialização dos EUA, imposição vista por muitos no país como um novo “tratado desigual”.

A taxa de pobreza do Japão, de 15,4%, de acordo com os últimos dados disponíveis, está bem acima da média da OCDE de 11%. O coeficiente de Gini de 32,3 destaca os limites da redistribuição em uma sociedade envelhecida, onde a desigualdade se aprofunda.

“Mas culpar a estagnação apenas pela demografia é um erro”, alertou Hiroshi Yoshikawa, professor de economia da Universidade Rissho. “O aumento da pobreza é a outra face de nossa sociedade envelhecida.”

O governo de Takaichi planeja compensar a estagnação com gastos sociais expandidos, incentivos fiscais e subsídios para creches – medidas destinadas a manter mulheres e idosos na força de trabalho.

Mas essas políticas correm o risco de “alimentar a inflação e ampliar a cratera fiscal: a dívida pública do Japão já ultrapassa 250% do PIB, a mais alta entre as economias avançadas”. O Banco do Japão, embora insinue aumentos graduais das taxas,” ainda mantém taxas de juros ultrabaixas” – um equilíbrio precário entre “sustentar o crescimento e conter as pressões sobre os preços”.

NA TEIA DE WASHINGTON

Sob o Acordo-Quadro EUA-Japão de 2025, Tóquio se comprometeu a comprar a longo prazo recursos energéticos americanos no valor de cerca de US$ 7 bilhões por ano. A segurança energética, antes uma preocupação nacional, é agora outra vertente da teia de interdependência EUA-Japão, apontou Benoit.

“No final, a “autonomia” econômica do Japão se parece muito com sua defesa: financiada, fornecida e silenciosamente guiada por Washington. Cada novo iene gasto em soberania parece comprar um pouco mais de dependência.”

De acordo com o analista, a população do país está encolhendo mais rápido do que qualquer outra no mundo desenvolvido, e a força de trabalho está envelhecendo além do reparo. Fábricas, casas de repouso e canteiros de obras enfrentam escassez crônica de mão de obra, mas a imigração – o remédio mais óbvio – permanece “politicamente radioativa”.

“Os migrantes representam apenas 2% da população do Japão, uma das taxas mais baixas entre as economias avançadas. Takaichi, de acordo com sua plataforma chauvinista, deve apertar ainda mais os controles.”

Esse sentimento ressoa com os eleitores, mas se choca com a realidade econômica. O Japão não pode sustentar suas ambições de crescimento, muito menos sua indústria de defesa expandida, sem um influxo de capital humano. A contradição é impressionante. “À medida que Takaichi constrói uma economia de fortaleza e pede um exército mais forte, a própria mão de obra necessária para realizar esses objetivos está desaparecendo.”

O Japão, por outro lado, continua “a igualar a pureza demográfica com a força nacional” – mesmo quando essa pureza se torna uma fraqueza existencial.

Sohei Kamiya, secretário-geral do partido de extrema-direita Sanseito, disse sem rodeios: “Por que os estrangeiros vêm em primeiro lugar quando os japoneses estão lutando para sobreviver e sofrendo de medo?” Suas palavras ecoam um sentimento comum, mas ignoram a aritmética: sem migrantes, as ambições do Japão – econômicas ou geopolíticas – podem ser simplesmente impossíveis de sustentar.

SOB OCUPAÇÃO DE 54 MIL SOLDADOS DOS EUA

Mais de setenta anos após o fim oficial da ocupação dos EUA, cerca de 54.000 soldados americanos ainda estão estacionados em todo o arquipélago – um lembrete permanente de quem finalmente ancora a segurança do Japão. “As bases em Okinawa, Yokosuka e Misawa formam a espinha dorsal da aliança EUA-Japão sob o Tratado de Cooperação e Segurança Mútua, cobrindo tudo, desde defesa antimísseis até guerra cibernética e espacial.”

Em fevereiro de 2025, o então primeiro-ministro Shigeru Ishiba se reuniu com o presidente Donald Trump em Washington para “reafirmar o compromisso dos aliados com um ‘Indo-Pacífico Livre e Aberto’.” A declaração conjunta prometia maior dissuasão, interoperabilidade mais profunda e, crucialmente, cobertura total da defesa dos EUA sob o Artigo V do tratado – estendendo-se até mesmo às contestadas Ilhas Senkaku, algumas ilhotas rochosas a noroeste de Taiwan.

Sob Takaichi, é improvável que essa dinâmica mude. “Tóquio continuará a hospedar a base avançada mais cara do mundo do poder dos EUA, pagando uma parcela cada vez maior da conta. Washington pressionou o Japão a gastar até 5% de seu PIB em defesa – mais do que o dobro de sua trajetória atual – como parte de um esforço mais amplo para ‘compartilhamento de cargas’”.

No entanto, por enquanto, Takaichi não mostra sinais de qualquer questionamento. “Seu governo provavelmente expandirá os exercícios conjuntos com a Austrália e as Filipinas, estreitando ainda mais a rede de alianças destinadas a conter a China – uma rede concebida, financiada e dirigida do outro lado do Pacífico.”

ENTRE O DRAGÃO E A ÁGUIA

Apesar de toda a conversa de Takaichi sobre soberania, a liberdade de manobra do Japão “é fortemente limitada por seu lugar entre dois gigantes – China e Estados Unidos”. Os números contam a história.

“Em 2024, o comércio entre o Japão e a China totalizou cerca de US$ 292,6 bilhões, cerca de um quinto de todo o volume do Japão. A China continua sendo o maior parceiro comercial do Japão, respondendo por 17,6% das exportações e 22,5% das importações. Os Estados Unidos, por sua vez, são o maior destino de exportação do Japão e um de seus principais fornecedores de importação.”

“Em suma, o Japão lucra com a China enquanto se arma contra ela – em grande parte por insistência de Washington”.

“A contradição é gritante, mas familiar: assim como a dependência da Europa da energia russa, mesmo quando apoiou sanções contra Moscou, a sobrevivência econômica do Japão depende do próprio poder que está sendo encorajado a conter”.

Jeffrey D. Sachs, da Universidade de Columbia, captou a ironia: “O Japão e a Coréia não precisam dos EUA para se defender. Eles são ricos e certamente podem fornecer sua própria defesa. Muito mais importante, a diplomacia pode garantir a paz no nordeste da Ásia de forma muito mais eficaz – e muito menos dispendiosa – do que as tropas dos EUA”.

SOBERANIA POR PERMISSÃO

Takaichi se apresenta como a líder que restaurará o orgulho do Japão – a herdeira da visão de Shinzo Abe de uma “nação normal” livre das restrições do pós-guerra. “No entanto, o Japão que ela lidera é menos independente do que nunca. Sua segurança é subscrita pelos Estados Unidos, sua economia amarrada a Washington e Pequim, sua demografia corroendo a própria base de autossuficiência que celebra.”

“A retórica da autonomia esconde um sistema de dependência gerenciada: bases americanas em solo japonês, mísseis americanos em silos japoneses, gás americano em gasodutos japoneses. Até mesmo o impulso para a ‘autossuficiência estratégica’ avança ao longo das linhas americanas, calibrado para servir à arquitetura do Indo-Pacífico elaborada em Washington.”

“Em um século turbulento de alianças inconstantes e impérios em declínio, a nova era do Japão começa com uma velha verdade: sob a bandeira da independência, continua sendo uma nação soberana apenas com permissão,” conclui Bernoit.

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