
No final do século XIX, após a derrota do projeto Dantas/Rui Barbosa, os senhores de escravos aprovaram, na Câmara dos Deputados, uma lei dos sexagenários que liberava o cativo aos 65 anos (60 + 5 anos para “ressarcir” o dono pela perda da “mercadoria” e pelos “investimentos” em benefício do escravo…).
Foi um escândalo, que passou para a História – às vezes, até sob a forma de piada.
Porém, 134 anos depois, em entrevista à GloboNews, o presidente da Câmara dos Deputados, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), declarou que “todo mundo consegue trabalhar hoje até 80, 75 anos” (v. vídeo abaixo).
O deputado está, portanto, dizendo que, mais de um século depois da Lei dos Sexagenários, as pessoas têm agora de trabalhar 15 anos a mais que na época da escravidão para obter alforria.
Imaginemos um trabalhador – digamos, um eletricista industrial ou um carpinteiro naval ou um torneiro mecânico – dentro de uma fábrica aos 80 anos ou aos 75 anos.
Ou, imaginemos um cortador de cana da Zona da Mata de Pernambuco, aos 80 anos, exercendo sua profissão.
Podíamos continuar infinitamente, mas apenas notemos que, também, quase todos os médicos – ou advogados ou professores ou engenheiros – não têm a menor condição de praticar a sua profissão aos 80 anos (ou aos 75 anos, que seja).
E, além dessa falta de condição física, também não é justo que eles continuem a trabalhar mais tempo do que era exigido dos escravos para se libertar.
É verdade, os escravos não viviam tanto tempo quanto nós vivemos hoje em dia.
Poucos chegavam aos 65 anos.
E quantos chegam, hoje, aos 80 anos, faixa etária que, pelo último Censo, constitui 0,8% da população?
Ainda mais importante: quantos vão chegar, trabalhando, aos 80 anos?
Por que o prolongamento da vida tem de ser uma maldição, a fazer com que o cidadão tenha que trabalhar até aos 80 anos – ou, talvez, mais, se a nossa vida aumentar mais um pouco?
Entretanto, Maia estava apenas sintetizando a “reforma” de Guedes e Bolsonaro.
O estranho é que ele, talvez sem perceber, transmita como posição sua, que a “reforma da Previdência” do governo tem o precípuo objetivo, no final das contas, de que nenhum trabalhador se aposente neste país.
Não é isso o que significa “todo mundo consegue trabalhar hoje até 80, 75 anos”?
Pois, se isso não é verdade – e, evidentemente, não é – seu significado se reduz a um objetivo: o de que o trabalhador deve morrer trabalhando, sem se aposentar, ou, na melhor das hipóteses (e com muito boa vontade), próximo a morrer.
Se trabalhar até aos 80 anos deve ser algo tão banal para “todo mundo”, sem provocar nenhum escândalo – nem um rubor facial -, o sentido dessa reforma somente pode ser o de que trabalhar sem descanso até a cova, deve ser o destino de quem trabalha – para gáudio dos que não trabalham, ao estilo (estilo?) de Paulo Guedes e outros escroques.
Mas, por que estamos falando da “reforma” do governo, se o entrevistado da GloboNews foi Maia, que é presidente da Câmara?
Porque é da “reforma” do governo que Maia estava falando, após – segundo informação do canal de TV em que foi entrevistado – encontrar-se com o sátrapa de Bolsonaro para a economia.
Tanto assim que o conjunto da declaração do deputado foi o seguinte:
“Eu sou a favor de uma regra de transição [para uma idade mínima maior para se aposentar] mais curta. Todos nós temos uma expectativa de vida maior. Quando a gente chega a 60 anos, ela aumenta mais ainda. Nós temos que entender que trabalhar até 62 anos sem transição não é problema nenhum. Todo mundo consegue trabalhar hoje até 80, 75 anos” (v. vídeo abaixo).
A idade mínima de 62 anos, para os homens, é a que consta de um dos rascunhos de Paulo Guedes sobre a reforma da Previdência, “vazados” por seu autor (ele acredita que, desse jeito, o povo irá se acostumando com a ideia de perder direitos).
Portanto, era dessa “reforma” que o deputado Maia estava falando.
Significativamente – embora, também, absurdamente – ele diz que “quando a gente chega a 60 anos, ela [a expectativa de vida] aumenta mais ainda”.
A afirmação é fantástica. Óbvio que a expectativa de vida diminui com a idade (apesar dessa ser daquelas verdades que não precisam ser demonstradas, cf. IBGE, Tábuas completas de mortalidade para o Brasil).
Não temos dúvida que o deputado Maia sabe disso.
Exatamente por essa razão, a afirmação é tão absurda que resolvemos interpretar de outra forma: será que o deputado estaria dizendo que a expectativa de vida aos 60 anos aumentou mais, ao longo dos anos, que a expectativa de vida ao nascer?
Não deve ser isso.
Porque não é verdade.
Considerando a tabela do IBGE, com início no ano de 1940 até 2017, o aumento da expectativa de vida ao nascer foi três vezes maior (a rigor, 3,3 vezes maior) que o aumento da expectativa de vida aos 60 anos (cf. IBGE, Tábua completa de mortalidade para o Brasil – 2017, p. 9).
O que, aliás, é lógico, considerando a queda na morte das crianças (a redução da mortalidade na infância foi -93% entre 1940 e 2017).
Então, não foi isso que o deputado disse – ou quis dizer.
O mais provável é que tenha se confundido com a “nova” argumentação do governo, segundo a qual, para a aposentadoria, não tem mais importância a expectativa de vida ao nascer, mas a expectativa de vida depois dos 60 ou 65 anos – em suma, a expectativa de vida na idade mínima em que o trabalhador se aposentaria, se a “reforma” de Bolsonaro passasse.
Com esse tipo de argumento, que deve ter ouvido de Guedes, o deputado acabou por dizer que a expectativa de vida “aumenta ainda mais” depois dos 60 anos – e que “todos conseguem” trabalhar aos 80 anos.
Não seria o primeiro cidadão a ser enganado por Guedes – e a se confundir, ao não perceber que foi enganado.
Mais uma razão para se precaver com esse elemento, pois nada do que ele fala, em princípio, merece credibilidade, até porque sua profissão, durante mais de 40 anos, era tapear os outros no mercado financeiro – e ninguém, até agora, além do próprio, disse que ele sabe fazer outra coisa.
EXPECTATIVAS
Somente para abordar, embora sumariamente, a questão:
Expectativas de vida são médias. Não têm utilidade alguma para determinar qual deve ser a idade mínima das aposentadorias, muito menos para determinar que deve existir alguma idade mínima.
Tomemos a maior cidade do país, São Paulo.
A expectativa de vida ao nascer, nos Jardins, uma coleção de bairros ricos, é de 81,6 anos.
Porém, a expectativa de vida em outro jardim, que não faz parte dos Jardins, o Jardim Ângela, bairro pobre da zona sul da cidade, é de 55,7 anos.
A expectativa da Cidade Tiradentes, bairro da zona leste na mesma cidade, é de 59,8 anos.
Mas a expectativa de vida em São Paulo é de 76,3 anos (v. Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis, Dados Abertos).
A média, portanto, abafa, oculta que contingentes inteiros da população, milhões de pessoas, não alcançam os 60 anos.
Então, que utilidade tem, nessa questão da idade mínima, saber que a expectativa de vida, ao nascer, no Brasil, é 76 anos?
Da mesma forma, há 18 Estados brasileiros em que a expectativa de vida é menor que a média nacional e apenas oito Estados em que essa expectativa é maior que a média nacional.
Mas a própria expectativa de vida em cada Estado – ou em cada município, como vimos no caso de São Paulo – é uma média que esconde os problemas.
O que queremos dizer com isso?
Que basear a idade mínima em médias desse tipo significa, necessariamente, tirar dos pobres para dar aos ricos – pois são os pobres que estão abaixo da média, considerada supostamente igual para todos.
Colocar uma idade mínima de 62 anos para gente cuja expectativa de vida, como no Jardim Ângela ou na Cidade Tiradentes – ou em qualquer município do interior do Nordeste – mal ultrapassa 55 anos, é condená-los a nunca se aposentar.
É evidente, por outro lado, o objetivo da “nova” argumentação, a de que aquilo que vale é a expectativa de vida a partir de 65 anos.
Com isso, eliminaram, ou tentam eliminar, na estatística, aqueles que morreram antes disso.
Pois, para ter alguma expectativa de vida aos 65 anos (ou aos 60 anos ou aos 62 anos) é preciso chegar a essa idade.
Esta é a razão pela qual o IBGE destaca a expectativa de vida ao nascercomo especial em relação às das outras idades, pois ela “reflete o nível da mortalidade de uma população como um todo, pois um recém-nascido irá sofrer os riscos de morte em todas as fases da vida” (cf. IBGE, Tábua completa de mortalidade para o Brasil – 2017, p. 12).
Ao contrário, a expectativa de vida aos 65 anos (ou aos 60 anos ou aos 62 anos) reflete apenas a perspectiva daqueles que conseguiram chegar a essas idades.
Com as regras atuais, ou com as regras passadas (antes das anteriores “reformas da Previdência”), muitos dos que morreram antes dessas idades conseguiram aposentar-se.
Se elevada a idade mínima, eles não conseguiriam fazê-lo.
Esta é a razão porque Guedes & outros descobriram que só é válida a expectativa de vida a partir da idade mínima que querem estabelecer. Porque isso significa impedir alguns milhões de pessoas de se aposentar.
Por fim, uma consideração estatística.
Qualquer bioestatístico – ou profissional que foi obrigado a estudar bioestatística – sabe que as médias só têm grande importância para fenômenos com a chamada “distribuição normal” (que é expressa pela chamada “curva de Gauss” ou “curva do sino”).
Por exemplo, se a população fosse composta por trabalhadores mais ou menos na mesma situação, quanto ao trabalho, à renda e às condições de vida – ou, se fosse mais ou menos parecida com uma manada de búfalos ou elefantes – essas médias seriam de grande validade.
Porém, no Brasil, quanto aos seres humanos, as coisas não são assim.
Por exemplo:
“Entre os países para os quais existem dados disponíveis, o Brasil é o que mais concentra renda no 1% mais rico, sustentando o 3º pior índice de Gini na América Latina e Caribe (atrás somente da Colômbia e de Honduras).
“Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) o Brasil é o 10º país mais desigual do mundo, num ranking de mais de 140 países” (cf. Mapa da Desigualdade
“As pessoas que recebem um salário mínimo teriam que trabalhar 19 anos para equiparar um mês de renda média do 0,1% mais rico da população” (cf. Oxfam Brasil, “A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras”, setembro/2017, p. 21).
O que Guedes e Bolsonaro – e sua “reforma da Previdência” – estão tentando fazer é tratar essa imensa desigualdade como se fosse igual.
Não há coisa mais injusta para com quem está do lado mais pobre da população.
Sucintamente, trata-se de estabelecer uma idade mínima em que o trabalhador morra antes de se aposentar.
Assim, haveria uma grande “economia”, que seria transferida para os juros que os bancos e outros rentistas auferem – de modo cavalar, na falta de uma expressão mais adequada.
Não é um exagero. Tanto assim que o presidente da Câmara, após se encontrar com Guedes, falou em “80 anos”, etc.
Leitores, o bolsonarismo é uma espécie de sarna. Foi só o deputado Maia conversar com Guedes para dizer que “todo mundo consegue trabalhar hoje até 80, 75 anos”.
Mas isso – até pelo absurdo – passa. Ainda bem que, hoje, existem excelentes tratamentos para a sarna.
CARLOS LOPES