Documentos que a Boeing se viu forçada a enviar à Administração Federal de Aviação dos EUA (FAA) e ao Comitê de Transportes da Câmara foram classificados como “muito preocupantes”, registrou o Seattle Times, citando uma fonte que teve acesso aos advogados da gigante aeroespacial. O principal conselheiro jurídico do recém demitido presidente Dennis Muilenburg, J.Michael Luttig, acaba de se aposentar.
Os documentos incluem novas mensagens do piloto-chefe de testes do 737 Max da Boeing, Mark Forkner, cuja troca de comentários com um colega, enquanto bebia vodka, em 2016 – “basicamente menti” e “enganei reguladores” -, ao virem a público em outubro provocaram indignação entre os familiares das vítimas e o público em geral.
O comitê da Câmara que investiga o escândalo da Boeing declarou que os documentos levantam novas e sérias questões sobre o modelo 737 Max. Parecem fornecer uma imagem “muito inquietante” das preocupações expressadas pelos empregados da Boeing sobre o compromisso da companhia com a segurança e “dos esforços de alguns funcionários para garantir que os planos de produção não fossem alterados pelos reguladores”, disse um porta-voz.
Um verdadeiro frankenstein voador, em cinco meses dois 737 Max – o maior sucesso de vendas da Boeing da atualidade até então, com quase 5.000 pedidos em carteira – se estatelaram, matando 346 pessoas. Agências de segurança aérea do mundo inteiro determinaram que o modelo fosse imediatamente aterrado, e desde então o escândalo só faz crescer. Nas vésperas de Natal, a Boeing anunciou a suspensão da produção do modelo, depois de um pito público da FAA, que nos últimos anos vinha sendo praticamente um apêndice da corporação, e de nove meses só gastando e sem receber um dólar do fatídico modelo.
“MANCHETES” TIRAM SONO DA BOEING
Segundo o jornal de Seattle, um executivo sênior da Boeing, falando sob condição de anonimato, reclamou dos novos documentos de Forkner, asseverando que o que eles contêm é o mesmo tipo de “conversa fiada” sobre a FAA das mensagens de outubro.
Para o dirigente, os documentos não serão propriamente “explosivos” – como se um registro que reitera no mínimo omissão da corporação, para não dizer opção por correr o risco, na morte de 346 passageiros e tripulantes pudesse não ser ‘explosivo’ – mas “gerarão manchetes” e continuarão sendo “um problema” para a Boeing.
Ele acrescentou que podem haver documentos adicionais dos quais “não tem conhecimento” – declaração que mais parece a busca de um álibi.
Na análise do jornal, o momento da liberação dos documentos para as agências governamentais, tão perto das festas de fim de ano e no mesmo dia da demissão do executivo-chefe Muilenburg, “pode ter a intenção de divulgar as más notícias ao mesmo tempo, com menos cobertura da imprensa”.
Para o presidente do Comitê de Transportes e Infraestrutura da Câmara, o democrata Peter DeFazio, a derrubada de Muilenburg da chefia da Boeing “estava muito atrasada”. Para ele, com base no que foi descoberto até agora na investigação sobre o design, desenvolvimento e certificação do Boeing 737 MAX, “fica claro que sob seu comando a Boeing tomou várias decisões devastadoras que sugerem que o lucro tem prioridade sobre a segurança”.
Outro especialista ouvido pelo ST, Henry Harteveldt, da Atmosphere Research Group, também não poupou Muilenburg. “A Boeing estava tão fria, quase calculista, com seus comentários iniciais e, quando eles responderam, não havia absolutamente nenhuma medida de compaixão ou empatia nos comentários públicos iniciais da empresa”.
PILOTO-BOMBA
Forkner se tornou um problema continuado para a empresa, segundo esse mesmo executivo, “porque contratou seu próprio advogado de defesa criminal em vez de advogados contratados pela Boeing, e a empresa não sabe o que está fazendo”.
Enquanto Forkner invocou sua Quinta Emenda contra a auto-incriminação para evitar entregar os registros das mensagens ao Departamento de Justiça, a Boeing não sabe se pode fechar um acordo com os promotores em troca de sua cooperação, disse ele.
Forkner foi o piloto-técnico-chefe do 737 durante o desenvolvimento do Max. O trabalho da equipe de pilotos que ele liderou foi testar os sistemas de controle de vôo Max em um simulador e determinar as informações e o treinamento que os pilotos de linhas aéreas precisariam para pilotar o avião.
Foi Forkner quem enviou um e-mail a um oficial da FAA em março de 2016 solicitando que as informações sobre o novo software de controle de voo do Max – conhecido como Sistema de Aumento de Características de Manobra (MCAS) – fossem omitidas dos manuais do piloto e não mencionadas no treinamento do piloto.
Decisão que praticamente significou uma sentença de morte para os 346 passageiros e tripulantes a bordo de 737 Max novinhos em folha, com o dispositivo anti-estol (instalado para supostamente resolver o desequilíbrio estrutural do modelo), após leitura errada do único sensor de ângulo de inclinação, levar o avião repetida e descontroladamente a embicar até o desastre final, enquanto os pilotos tentavam desesperadamente lutar contra o que sequer sabiam de que se tratava.
“BASICAMENTE ENGANANDO REGULADORES”
Na troca de mensagens instantâneas de 2016 entre Forkner e outro piloto da Boeing, este afirmou que “basicamente mentiu para os reguladores (sem saber).”
Na conversa solta, durante a qual Forkner estava bebendo vodka, ele disse que o MCAS havia “disparado” durante os testes em simuladores em 2016.
A Boeing disse mais tarde que se referia ao software do simulador como defeituoso, e não ao próprio MCAS.
E em um e-mail separado de 2016 para um funcionário da FAA, Forkner brincou dizendo que ele estava “fazendo várias viagens… enganando os reguladores (estrangeiros) a aceitar o treinamento que foi aceito pela FAA”.
É A ENGENHARIA, ESTÚPIDO
Para Richard Aboulafia, vice-presidente da consultoria aeroespacial Teal Group, a demissão de Muilenburg se tornara “inevitável”, mas é discutível se seu substituto, um executivo oriundo do setor financeiro, David Calhoun, consiga tirar a Boeing da crise, quando o problema flagrante é na parte da engenharia.
“Em termos de experiência, esse pode ser o conjunto de habilidades errado para mudar a Boeing”, assinalou, registrando que Calhoun está no conselho da Boeing há 10 anos, vindo do setor de private equity e da GE na era Jack Welch. “Esse é o tipo de currículo de que a Boeing não sente falta e não é como se ele estivesse trazendo uma nova perspectiva. Isso não quer dizer que você precise de alguém de fora, mas, idealmente, você teria uma combinação de exposição comercial no mercado, experiência em gerenciamento de programas e formação em engenharia ou, pelo menos, um forte entendimento e apreciação pela engenharia”, acrescentou. “É isso que falta na Boeing e é disso que a empresa realmente precisa.”
A.P.