
E se eu disser que tem uma outra data histórica da qual os paulistas podem se orgulhar, o 5 de julho
ORLANDO SILVA*
Hoje é feriado em São Paulo. Estou aqui em Brasília, trabalhando, porque o feriado de 9 de julho é uma data paulista, por aqui é um dia normal.
Você sabe a razão deste feriado? Sabe por que só é comemorado em São Paulo? Na verdade, o 9 de julho é uma comemoração da Revolução de 1932, um movimento liderado por paulistas contra o governo do Getúlio.
Mas e se eu falar para você que esta data não merece lá muita comemoração?
Vou dizer mais: e se eu disser que tem uma outra data histórica da qual os paulistas podem se orgulhar, o 5 de julho, que mereceria muito, mas muito mais ser comemoração, mas que é totalmente esquecida? Uma data que merecia ser um feriado nacional, inclusive?
Em 1930 Getúlio chega ao poder acabando com a Primeira República ou, como os getulistas gostavam de chamar, A República Velha. Este movimento, que ficou conhecido como Revolução de 1930, foi muito importante e, na prática, inaugurou o processo de modernização do Brasil, de introdução do nosso país no “tempo do mundo”, como o pessoal costuma dizer.
Quem foram os derrotados de 1930? Grupos oligárquicos de todo o Brasil que governavam sob a hegemonia da oligarquia de São Paulo. Aqueles eram os grandes escravocratas do país. Como dizia o historiador Sérgio Buarque de Holanda, a República era o Império dos Fazendeiros. Uma pequena casta de grandes proprietários de terra que queria que o Brasil continuasse a ser um fazendão exportador no qual o povo não tinha direito nenhum.

Em 1932 esta oligarquia paulista, que tinha perdido o poder, levantou São Paulo contra o governo Getúlio Vargas. A reivindicação, a bandeira que foi colocada à frente desta guerra civil de paulistas contra o governo era, em tese, justa: Uma constituição. Por isso, muita gente boa, decente, do povo, aderiu à revolta e lutou ao lado desses oligarcas. Essa turma, claro, merece todo o nosso respeito.
Mas o que estava por trás da batalha era uma tentativa de fazer o carro da história andar para trás, ou seja, de fazer o Brasil voltar aos tempos da Velha República, ao predomínio absoluto dos paulistas que tinham um projeto arcaico para o país.
É bem mais grave do que isso, na verdade. À frente dos paulistas estava uma turma tremendamente racista. Gente que construiu toda uma narrativa de que os paulistas não poderiam ser governados por gente de outros estados porque eram superiores.
Vou pegar só um exemplo, Ibrahim Nobre, considerado o Tribuno da Revolução de 32. Ele dizia coisas como estas aqui, trazidas num livro da professora Barbara Weinstein. Cito a professora:
Novamente é o tribuno de 1932, Ibrahim Nobre, que na sua brutal sinceridade explicita a intensidade do racismo então presente. Em 1933, “o tribuno de 1932” declarou que se devia fazer em São Paulo como na Alemanha, onde Hitler instalava uma “profilaxia antijudaica”, mas que em São Paulo deveriam ser eliminados os elementos que “joanalbertizaram” o sangue paulista (Weinstein, 2015, p. 94).
Tá bom para vocês? Essa é só uma pequena amostra.
Mas que diabos é o “Joanalbertizaram” que está na frase do sujeito? Ele está se referindo a João Alberto, o interventor de Getúlio em São Paulo. Qual o problema de João Alberto? É que ele era paraibano. Como assim, um paraibano, um homem racialmente inferior, vai mandar nos arianos paulistas? Deu para sacar?
1924
Se esta contrarrevolução não merece a nossa comemoração, qual mereceria? Eu não tenho dúvidas, a Revolução de 1924, esta sim uma revolta de sentido democrático.
Para entender o que aconteceu em São Paulo é preciso lembrar que a década 1920 é marcada por uma série de lutas contra a República Oligárquica e antidemocrática dominada pela elite de São Paulo. Uma das faces destas lutas é o chamado tenentismo, ou seja, uma série de ações feitas pela baixa oficialidade do exército de sentido democrático e popular.
O primeiro episódio dessa história você aprendeu na escola: a Revolta dos 18 do Forte, que rolou em 1922, mesmo ano da Semana de Arte Moderna e da Fundação do Partido Comunista.

Na ocasião, jovens oficiais do exército tentaram promover uma rebelião que tomasse o poder no Rio de Janeiro. Poxa, militares tentando tomar o poder? Isso lá é uma coisa boa? Pois é, para a gente ver como as coisas são complexas. Esses militares carregavam um programa democrático, antioligárquico e popular! Eram jovens militares progressistas, oficiais, em geral, de baixa patente influenciados por ideias avançadas para a época. Quem conhece, por exemplo, a história da Revolução dos Cravos em Portugal sabe que é possível que militares derrubem regimes antidemocráticos.
Pois bem, a tentativa de derrubar o governo reacionário do Arthur Bernardes não deu certo e os rebeldes ficaram cercados em um Forte Militar em Copacabana. A decisão deles foi impactante, dispensaram os soldados de patente menor e decidiram não se render. Dezessete deles saíram, de peito aberto, contra os milhares de soldados legalistas que os cercavam e foram abatidos ali, na praia de Copacabana. Dezessete? Sim, dezessete rebeldes que eram militares que estavam dentro do Forte e uma pessoa do povo que, comovida com o gesto, se juntou a eles. Só dois sobreviveram à ação de heroísmo: os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes.
O episódio foi recebido com grande admiração pelo povo, que viu aqueles garotos sacrificarem a vida por um ideal.
A derrota não desanimou a turma e eles tentaram uma nova iniciativa, desta vez em São Paulo. Siqueira Campos, um dos sobreviventes, foi um dos líderes mais importantes desta nova revolta. A data escolhida? 5 de julho, em homenagem ao dia do sacrifício dos 18 do forte.
Desta vez os rebeldes tinham aprendido com 1922 e conseguiram sublevar vários quartéis, inclusive de Força Pública de São Paulo, com Miguel Costa à frente.
Depois de 4 dias e noites de dura batalha, o governador do Estado de São Paulo se retirou do Palácio dos Campos Elíseos e os rebeldes tomaram o poder em São Paulo. A revolução tinha vencido no Estado mais importante do país! A data da fuga do governador fantoche de Arthur Bernardes? Um 9 de julho como hoje.

Os revolucionários ficaram no poder por 20 dias. Foram obrigados a recuar porque o governo de Arthur Bernardes decidiu castigar o povo da cidade, com bombardeios indiscriminados que atingiam os civis em grande quantidade. Paulo Duarte, que viveu aquela situação e publicou um livro sobre o assunto, escreveu o seguinte:
As granadas caíam a esmo, ora aqui, ora acolá, como si o objectivo só da artilharia governista fosse atirar sobre a cidade em geral, sem ponto certo. … 0 bombardeio durava dias e noites sem cessar; a Santa Casa se enchia de mulheres e crianças; os cemitérios pejavam-se de cadáveres e as fileiras revolucionárias não perdiam um só homem. Dir-se-ia que o governo demonstrava o seu ódio não à revolução, mas ao povo paulista. (Cohen, IIka Stern. Bombas sobre São Paulo)
Os bombardeios criminosos do governo central levaram a população a apoiar os rebeldes e a odiar ainda mais o presidente da República. O prefeito da cidade alertava o governo de Arthur Bernardes que a “agitação bolchevique” crescia entre os operários que viam suas casas e fábricas destruídas pelas bombas lançadas pelos aviões.
Os revolucionários tinham condições para resistir, mas não queriam que a população da cidade continuasse sendo massacrada. Assim, sem ser derrotados, eles revolucionários decidiram abandonar o poder.
Na noite do dia 27 de julho, eles se retiraram do Palácio do Governo distribuindo à população um manifesto de agradecimento:
Nosso objetivo fundamental era e é uma revolução no Brasil que elevasse os corações, que saccudisse os nervos, que estimulasse o sangue da raça enfraquecida, explorada, ludibriada e escravisada. Para isto era necessário um facto empolgante qual o da ocupação da Capital Paulista … A semente está plantada e já antevemos, pelo espírito revolucionário latente dos municipios que conseguimos matar o marasmo politico que avassalou o Brasil. (Cohen, IIka Stern. Bombas sobre São Paulo)
O programa desta revolução era confuso, os métodos dos rebeldes podem ser discutidos, houve obviamente muitos erros. Mas não é assim que a história das rebeliões progressistas avançam? Alguém é capaz de dizer que, por haver equívocos, erros, sei lá, a Comuna de Paris foi um erro? Que era melhor que ela não tivesse acontecido? O povo e seus aliados aprendem a lutar lutando…

Os rebeldes abandonaram a cidade, mas não abandonaram a luta. não depuseram suas armas, foram em direção ao Paraná e lá fixaram posição. Estavam, na verdade, esperando uma coluna de novos rebeldes que haviam se sublevado no Rio Grande do Sul. Estes rebeldes que marcharam para encontrar seus novos companheiros eram liderados por um Capitão chamado Luís Carlos Prestes.
O encontro dava início a uma nova aventura rebelde, a coluna Prestes-Miguel Costa que percorreria impressionantes 25 mil quilômetros, onze estados, espalhando um imaginário rebelde por todo o país.
Mas essa já é uma outra história…
*Orlando Silva é deputado federal do PCdoB de São Paulo. Texto publicado inicialmente no formato de “fio‘ no seu perfil na rede social X.
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