CARLOS LOPES
No último sábado, quando li a notícia de que Antonio Paim morrera no dia anterior (30/04), não pude deixar de pensar: ele estava vivo?
Não era (e não é) uma imagem literária ou uma figura de linguagem – eu não estava pensando em sua morte intelectual ou moral.
Realmente, pensava que ele houvesse morrido, mas isso deve ser um sinal de que sua obra, que alguns jornais badalaram no fim de semana, desceu a um nível de insignificância suficiente para que seu autor fosse confundido com alguém fisicamente morto. É o contrário do que acontece com os grandes autores – quem acha que Marx ou Hegel estão mortos, apesar de sabermos que eles estão?
Ao contrário dos obituários publicados na imprensa, Paim não foi um “pensador liberal”, muito menos um “historiador liberal” – até porque ele não distinguia a história de seus preconceitos pessoais.
Ele era – ou, melhor, tornou-se – um reacionário empedernido, daqueles que repetiam chavões anticomunistas sob formas supostamente (muito supostamente) intelectuais.
Encontrei pessoalmente Paim, pela última vez, lá pela segunda metade de 1965 ou primeira metade de 1966. Eu era adolescente e acompanhava meu pai, que era, até então, velho amigo de Paim. Os dois estiveram entre os condenados por resistir à invasão da Imprensa Popular, jornal do Partido Comunista, durante o governo Dutra, e, também, estiveram presos na antiga cadeia da rua Frei Caneca.
Naquela época, Paim era um sujeito bem humorado, piadista, fisicamente um pouco parecido com um de seus conterrâneos mais famosos, Dorival Caymmi.
Estava, ainda, bem distante daquele sujeito amargo, de rosto ressentido, que dedurava “patrulhas ideológicas marxistas” na PUC, antes da ditadura cair.
Ou daquele pequeno, medíocre e covarde intelectual que atacou Nelson Werneck Sodré nas páginas do “Correio da Manhã” – então, o principal jornal do Rio – no momento em que o historiador e general, cassado pelo golpe de 64 e proibido pela ditadura de publicar em jornais, não podia responder.
Resta dizer que a passagem de Paim para o campo da reação nada teve a ver com uma conversão desinteressada, eivada de pureza ideológica.
Seu irmão, Gilberto, logo depois de 1º de abril de 1964, tornou-se um carrega-malas do então mandachuva da economia, Roberto Campos.
Para surpresa geral, em um debate sobre política econômica promovido por Ênio Silveira na Revista Civilização Brasileira, Gilberto Paim apareceu defendendo o plano do notório Bob Fields, o PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo).
A surpresa era porque ele se dizia “professor do ISEB”, ou seja, ao mesmo tempo procurava capitalizar o prestígio intelectual do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, destruído (literalmente) pela mesma ditadura a qual ele agora servia.
A propósito, como esclareceu Nelson Werneck Sodré em Memórias de um Escritor, Gilberto Paim jamais foi “professor do ISEB”. Ele fora, apenas, membro da assessoria do professor Guerreiro Ramos, este, sim, docente do ISEB.
Gilberto Paim, após 1964, assumiu a editoria do caderno econômico do “Correio da Manhã”. Foi lá que, em três edições, abriu as páginas do jornal para que seu irmão, Antonio, fizesse seu longo, reacionário e traiçoeiro ataque a Nelson Werneck Sodré (em A Fúria de Calibã: memórias do golpe de 64, Werneck Sodré se refere ao episódio, sem mencionar o nome; v. liv. cit. Bertrand Brasil, 1994, pp. 247 e segs).
Porém, quando eu e meu pai o encontramos pela última vez, depois do golpe de 64, Antonio Paim já estava fazendo a sua opção – ou, talvez, já a tivesse feito.
O que demonstra isso é seu livro de 1966, A Filosofia da Escola do Recife, onde a recuperação de Tobias Barreto, e de alguns ecléticos medíocres, esconde a reabilitação do pensamento colonial – ou, melhor, colonizado, no limite, escravagista.
De resto, Agripino Grieco tem razão ao dizer que da chamada “Escola do Recife” salvou-se o seu propagandista, Sílvio Romero, mas exatamente porque tem pouco a ver com o que chama – ou é chamado – “Escola do Recife”.
Mas, desse último encontro com Paim, guardo outra lembrança – meu pai perguntando a um homem que julgava um amigo, sobre o que acontecera com seu irmão, que passara de defensor do desenvolvimentismo a defensor da ditadura em seu aspecto mais arrasador para o povo – a política econômica.
Paim não disse que concordava com o irmão. Procurou justificar suas ações, mas através de injustiças que ele teria sofrido e de caminhos que seria necessário descobrir na nova situação.
Aquilo marcou meu pai, pois ele repetiu aquela conversa algumas vezes, durante a vida – e somente por isso eu consigo lembrá-la.
Antonio Paim, provavelmente, se considerava um injustiçado pelos comunistas – e seu frustrado casamento com uma cidadã soviética, um problema que se tornou público devido às implicações políticas na época, não o ajudou a superar esse sentimento de injustiça que era apenas incapacidade de se identificar com a humanidade, inclusive com a nação e seu povo.
Entretanto – e esta é a prova do que acabamos de dizer – ele devia toda a sua formação acadêmica aos comunistas, formado que foi na Universidade Lomonosov, de Moscou.
Que haja escolhido o caminho mais fácil, sob a ditadura, teve a consequência de parecer, ele e sua obra, já mortos antes do desaparecimento físico do autor.