Os milhões de argentinos que a amavam nunca tiveram a oportunidade de votar nela. Ela não acreditava em piedade e levantou nas silhuetas plebeias o orgulho da justiça social. Sabia que às vezes o ponto médio não é o ponto de equilíbrio. Nessa terça-feira, 7 de maio, se completam 100 anos de uma mulher com status de mito.
SERGIO WISCHÑEVSKY, no Página 12
Nunca ocupou um posto dentro do Estado, jamais teve um cargo eletivo. Os milhões de argentinos que a amavam não tiveram a oportunidade de votar nela. Passaram cem anos do nascimento de uma mulher com status de mito. Sem dúvida, poderia e deveria ser estudada para além das paixões, mas despojada delas perde grande parte do seu encanto e da sua verdadeira transcendência histórica. Sem essa auréola, sem esse sopro de vida, uma biografia de Evita não é uma análise, é uma autópsia.
“Ninguém, a não ser o povo, me chama de Evita. Somente os descamisados aprenderam a me chamar assim. Os homens de governo, os líderes políticos, os embaixadores, os homens de empresas, profissionais, intelectuais, etc., que me visitam, costumam me chamar de senhora; e alguns inclusive me dizem publicamente Excelência ou Digníssima Senhora e, ainda às vezes, Senhora Presidenta. Quando uma criança me chama de Evita, me sinto como a mãe de todas as crianças e de todos os fracos e humildes da minha terra”. Escreveu em 1951 em seu livro testemunho: A razão da minha vida.
Maria Eva Duarte de Perón, Evita, fazia seus discursos sem ler, entendeu que o oposto da ordem não é o caos, mas uma nova ordem, e foi isso que ela incorporou, uma nova ordem justicialista que não compartilha com a caridade, não acreditou na pena e levantou nas silhuetas plebeias o orgulho da Justiça Social.
Sua vida tem todos os condimentos de uma história que parece tirada da mitologia grega. O nascimento nos Toldos em sete de maio de 1919. Filha de Juan Duarte e Juana Ibarguren. O pai, rico estanciero e político conservador de Chivilcoy, participou nas manobras governamentais de expropriação de terras aos mapuches. Os Toldos foi um acampamento mapuche. Juana, sua mãe, era uma mulher humilde, resignada a um lugar secundário diante do poder do patrão que mantinha duas famílias: a legal e a de Eva.
Viveu no campo até 1926, a data em que o pai morreu e a família foi deserdada, ficando completamente desprotegida, tendo que deixar a estância em que viviam. A imagem de sua mãe, com ela ainda muito jovem e seus irmãos, chegando ao funeral de onde foram expulsos com desdém, é um drama comovente, um quadro excepcional daquela Argentina.
A segunda parte dessa história começa em 1935, quando Evita, com 15 anos, viajou para Buenos Aires. É aí que sua luta para ser atriz começa, ela se envolve com o show business, se esforça para “ser alguém na vida”. São tempos difíceis, a crise social e econômica iniciada em 1930 gerou uma grande massa humana de migração interna numa única direção: das províncias até a cidade grande em busca de oportunidades. Conseguiu emprego no rádio interpretando Mulheres da história [radionovela]. Adquiriu um vocabulário muito rico e incomum, o que deixou frases inesquecíveis na memória popular. Aparece em revistas, participa de companhias de teatro, faz sua incursão no cinema. No domingo 26 de julho de 1936, no jornal La Capital de Rosario, apareceu sua primeira foto pública, conhecida com o seguinte título: “Eva Duarte, jovem atriz que conseguiu se destacar no decurso da temporada que termina hoje no Odeon”. E outro traço surgiu: foi uma das fundadoras da Asociación Radial Argentina (ARA), o primeiro sindicato de trabalhadores da rádio.
O terceiro grande capítulo começa em 22 de janeiro de 1944 no estádio Luna Park, em um ato para arrecadar fundos para as vítimas de um terremoto devastador na cidade de San Juan. Ali Eva, 24, conhece Perón, um viúvo de 48 anos. O inesquecível Roberto Galán sempre assegurou que ele os apresentou e gostamos de acreditar nele. Apenas um mês depois eles estavam vivendo juntos, e isso foi um escândalo para os conservadores camaradas das Forças Armadas.
Apenas cinco dias após o irreversível cisma político ocorrido em 17 de outubro de 1945, Perón e Evita se casaram em Junín e concentraram-se na campanha eleitoral com vistas às eleições presidenciais de fevereiro de 1946. Eleições que abriram um profundo embate político na Argentina, a ruptura social já levava várias décadas. O peronismo enfrentou praticamente toda a classe política de então, nucleada na União Democrática, e contra todos os prognósticos conquistou a presidência. Eva quebrou os protocolos do costume daqueles tempos em que as esposas dos candidatos se restringiam a um papel apolítico e “conforme o que se espera de uma dama”. Não foi esse o caso, ela participou e falou em muitos atos, teve voz e discurso próprio. Naqueles meses ela levantou as bandeiras, de longa tradição, dos direitos políticos das mulheres. E em 1947 foi ela quem anunciou às argentinas que o direito de votar e participar da política estava consagrado.
A tradição indicava que Eva deveria ser a “primeira dama” e que se lhe reservava a presidência da centenária Sociedade de Beneficência; mas as senhoras ilustres lhe negaram essa honra, dizendo que era jovem demais: “Então que seja minha mãe”, protestou sarcasticamente e logo em seguida deu por dissolvida a organização. Os motivos ela deixou bem claro: “Não. Não é filantropia, nem caridade, nem esmola, nem solidariedade social, nem é beneficência. Nem sequer é ajuda social, embora para dar um nome aproximado eu coloquei esse. Para mim, é estritamente justiça. O que mais me deixou indignada no início da ajuda social era que a qualificassem de esmola ou caridade”.
Essas formas desafiadoras, o conteúdo igualitário, seus ares de mulher poderosa sem culpa ou falsas modéstias lhe renderam um amor descomunal pelas multidões trabalhadoras que a elevavam à categoria de Santa, e um ódio raramente visto pelos setores anti-peronistas. Ezequiel Martinez Estrada não se privou de dizer: “Esta mulher não tinha apenas a falta de vergonha da mulher pública na cama, mas o destemor da mulher pública no palco … uma fraude capaz de desempenhar qualquer papel, mesmo o de uma dama honrada…” Na Fundação Eva Perón ela realizou trabalhos de enorme magnitude, e seus inimigos o reconheceram criticando-a por quão boa era a comida, a atenção e as roupas que distribuía entre os humildes.
O ponto culminante de sua relação com as multidões foi sem dúvida, o 31 de agosto de 1951, quando as pessoas lhe pediam que fosse candidata à vice-presidência e Evita jurava que não lhe importavam os cargos. Foi um diálogo espontâneo, natural, com uma tensão aberta. Ainda não sabemos com certeza por que “renunciou às honras, porém não à luta”. Ela parecia hesitante, com vontade de dizer que sim, o povo estava pedindo, não conseguiu dar o “não” definitivo, que veio dias depois em mensagem por cadeia nacional.
O câncer uterino levou a jovem que não teve filhos e se converteu em mãe de tantos. Mulher de definições, sabia que às vezes o ponto médio não é o ponto de equilíbrio: “Eu, no entanto, pelo meu jeito de ser, nem sempre estou nesse ponto de equilíbrio. O reconheço. Quase sempre para mim a justiça é um pouco além do meio do caminho… Mais perto dos trabalhadores do que dos patrões”!