ALESSANDRA SCANGARELLI BRITES*
Em texto anterior denominado “A importância da Revolução Russa para o processo de descolonização da Ásia”, esta autora cita a obra “A dominação ocidental na Ásia”, onde o diplomata e historiador indiano K.M. Panikkar expõe as razões de tal influência que resultou em diversos movimentos de independência em diversos países do continente, mesmo naqueles que não iriam aderir ao socialismo, ou comunismo. Um dos pontos chaves da argumentação de Panikkar é o poder de persuasão cultural e intelectual exercido pelos países imperialistas, cujo objetivo é estabelecer um controle das elites locais, como suas principais aliadas, promovendo uma ideia de que são favoráveis a elas, mas ao mesmo tempo submetem-nas ao seu controle direto, exigindo o acesso à livre exploração do país colonizado.
Trata-se de uma argumentação bastante convincente, que aparentemente é desprovida de preconceitos de raça, de cultura, de “valores universais” e que falsamente afirma que respeita os costumes locais. Uma falácia propagandística faz com que os poderosos e os grupos intelectuais, e outros líderes nacionais, locais, acreditem que ao seguir a linha das elites imperialistas será possível permanecer no poder, ao mesmo tempo que transformações socioculturais, pretensamente advindas de uma civilização branca e europeia superior, possam impulsionar mudanças positivas e importantes para o país, ou para a elite local mesmo.
Porém, a realidade é outra. Discutir e analisar os meandros das diferentes formas de dominação imperiais foi um dos focos centrais promovidos pela Revolução Russa/Soviética e o cinema foi um meio de comunicação bastante trabalhado. Pois, ao mesmo tempo que entretém, também é capaz de incitar e levar reflexões deste tipo às massas e, em especial, na época, para os povos colonizados. “Tempestade sobre a Ásia” (1928), ou “Потомок Чингисхана” (O Descendente de Gengis Khan), de Vsevolod Pudovkin, escrito por Osip Brik e Ivan Novokshonov, e estrelado por Valéri Inkijinoff, tem esta clara e assumida intenção.
Trata-se também de uma das obras da “trilogia revolucionária” de Pudovkin, ao lado de “Mãe” e “O Fim de São Petersburgo” e foi exibido com legendas em português pela versão online da 7ª Mostra Mosfilm 2020, promovida pela CPC-Umes Filmes. Em especial, o diretor direciona suas críticas aos britânicos, também, que ocuparam diversas países do continente, entre eles a própria Rússia, em apoio ao exército branco monarquista, que durante a Guerra Civil (1917-1922), tentou impedir a chegado dos Bolcheviques comunistas e socialistas ao poder.
Assim, a sinopse do filme narra a história de um jovem pastor e caçador mongol, que o pai está convalescendo, e que recebe a ajuda espiritual de monge budista. Ao perceber que a família está em posse de uma pele de raposa muito valiosa, o monge tenta roubá-la, mas não é bem-sucedido. Ao fugir deixa cair o que parece ser um amuleto, que é recolhido pela mãe da família. Ao ir vender a pele no mercado, o jovem recebe da mãe o amuleto para proteção. Ao chegar na cidade, logo os colonizadores brancos, que dominam o mercado local, tentam tirar proveito da inocência dos pobres fornecedores de pele, comprando o produto por um valor bem abaixo do mercado.
Ao não receber o que esperava, o jovem pastor rebela-se e fere os donos brancos do estabelecimento. Assim, precisa fugir para não ser capturado. Na sua fuga encontra, com o exército vermelho soviético, combatente dos europeus e russos czaristas imperialistas. Esta jornada o leva para as mãos da elite colonizadora, e antes que ele possa ser condenado à morte, o amuleto traz uma informação preciosa que o faz ser confundido com um descendente de Gengis Khan, causando uma reviravolta no enredo, levando os imperialistas a considerá-lo como figura para o governo a estar sob a tutela deles.
“Tempestade sobre a Ásia” é um filme que obviamente sofreria contestações por diversos membros da intelectualidade europeia, em especial britânica. As críticas vão desde o seu conteúdo propagandístico a sua falta de acuracidade histórica, pois os britânicos formalmente nunca colonizaram a Mongólia, até aos resolutos que almejam promover uma visão única da história de que a União Soviética não passou de um outro império, visando impor o seu controle e modo de vida ao mundo.
Ao autor atento, algumas coisas são perceptíveis. Filmes propagandísticos existem aos montes em indústrias Hollywoodianas, europeias ocidentais e etc, e nem assim perdem o seu valor como obra cinematográfica, muitos, como as produções do cinema soviético, podendo obter a classificação de grandes obras da sétima arte, ou do entretenimento. Por sinal, é possível em debate mais profundo pensar que se um filme tem uma mensagem, ou defende alguma questão, ele não seria essencialmente propagandístico?
Outra questão importante, sobre a acusação da falta de acuracidade histórica, algo também bastante presente na cinematografia ocidental, em “Tempestade sobre a Ásia” pode ser relevado, pois se trata de um filme de ficção. Se permitimos esta liberdade às produções históricas, ou baseadas em fatos históricos do ocidente, porque não aos soviéticos?
De qualquer forma, ainda assim, é perceptível que, apesar da sinopse salientar os britânicos como imperialistas, no filme, os personagens que representam os colonizadores, na realidade, poderiam ser provenientes de qualquer nação europeia, ou digamos branca ocidental, pois a marca maior ali estabelecida não é a de uma nação em específico, mas do colonizador ocidental, branco e capitalista. Trata-se de um retrato ficcional mais universal, que tem por base uma realidade que, se não ocorria na Mongólia em específico, certamente encontra fatos concretos na Índia, na China, no Sudeste Asiático e outras regiões do mundo. Em outras palavras, a mensagem e a reflexão anti-imperialista do filme, ainda continua atual e essencial.
Por fim, o “temível” império soviético, para os que tiveram a oportunidade e o interesse de saber dos fatos históricos desta parte do planeta, observa-se que os soviéticos foram um dos primeiros a promoverem e defenderem valores universais jurídicos como respeito à soberania e autodeterminação dos povos. Foram os Bolcheviques que desmantelaram o antigo e centenário império czarista, e deram suporte a causas de libertação nacional, como está na Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia, assinada por Vladimir Lênin e Iósif Stalin, de 15 de novembro de 1917. E com a Mongólia não foi diferente.
Por sinal, a cooperação mongol-soviética foi essencial para afastar a possibilidade de invasão da China ainda sob o comando da Dinastia Qing e posteriormente no combate à agressão japonesa. Se as ideias socialistas influenciaram a diversas pessoas e grupos ao redor do mundo, assim como o capitalismo também o fez, isso faz parte do processo e da dinâmica filosófica humana, de influenciar-se mutuamente.
Assim, independente das críticas, “Tempestade sobre a Ásia”, tem um enredo bem estruturado, irônico, engraçado, simples e profundo. É interessante, que já naquela época, Pudovkin fosse retratar tão bem o chamado “Orientalismo”, que Edward Said faria como um dos seus focos de estudo, a visão idealizada, estereotipada e preconceituosa ocidental das nações orientais, seus costumes e indivíduos. Podemos ver a crítica da crítica, pois ao colocar em evidência personagens mongois como protagonistas, promove uma mudança radical na época, uma revolução em si, como apontam alguns críticos de cinema.
A transformação do jovem pastor também é algo a destacar. Para o cinema da época, a interpretação de Valéri Inkijinoff, francês de origem russo-Buryat, nascido em Irkutsk, Rússia no simples pastor que aos poucos percebe a opressão sendo exercida sobre si e seu povo são primorosas. Por sinal, Inkijinoff deixaria a URSS para ficar na França e ter uma longa carreira no cinema, porém interpretando apenas vilões asiáticos em produções europeias…
Já, os cenários do interior da Mongólia, na época, conseguiram ser bem captados pelas lentes de Pudovkin, e partiram de um processo criativo bastante livre do formato exigido pela indústria cinematográfica em geral. Porém, mesmo assim, segundo o site russo Akademik, o cineasta não deixa de ter críticas a sua própria obra, não compartilhadas pela autora deste texto, é preciso salientar:
“… Estou longe de chamar o filme “O Descendente de Gengis Khan” de a mais bem-sucedida de minhas produções, mas as condições em que tive que trabalhá-lo foram muito bem-sucedidas em minha prática criativa. Fui a lugares novos e completamente desconhecidos, conheci pessoas que nunca tinha visto. Eu não tinha um roteiro pré-concebido, apenas existia um plano de enredo…
…O roteiro cresceu junto com as observações ao vivo, que são de constante interesse para mim. Lembro-me de como, cruzando os enormes planaltos de Buryat-Mongólia, parávamos o carro para tirar fotos das paisagens que, de repente, surpreenderam a todos: gênero, fotos do cotidiano, nem mesmo sabendo que lugar ocupariam no futuro filme … ”
O mais interessante nesta época do cinema soviético e, de certa forma, também posteriormente, é que se trata de uma época onde a palavra revolucionária foi o ideal maior daquela geração. Onde se pensou o cinema como ferramenta cultural, de promover reflexão, ou de propagar uma ideia, onde também se revolucionou a técnica em si, em prol do discurso sócio-político de conscientização das massas.
Como o próprio Pudovkin explica em sua fala sobre a edição, montagem fílmica: “a edição não é meramente o método de juntar cenas ou pedaços separados de um filme, mas sim o método que serve, controla o guia psicológico do espectador“. Pudovkin, como todos os realizadores destemidos de sua geração, tinham e defendiam uma posicionamento político e em “Tempestades sobre Ásia” está expresso: “abaixo aos cães do imperialismo”, ou seja, abaixo aos imperialistas colonizadores e aos líderes nacionais que se deixam dominar por eles.
*Alessandra Scangarelli Brites – é editora chefe e articulista da Revista Intertelas. Jornalista (PUCRS), escritora, tradutora e pesquisadora vinculada ao MidiÁsia (Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática e Contemporânea da UFF) e ao Grupo de Estudos 9 de Maio. Especialista em Política Internacional (PUCRS) e Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS).
Reproduzido da Revista Intertelas com autorização da autora.