A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, suspendendo sua própria decisão que lhe dava acesso aos dados sigilosos de 600 mil contribuintes, somente não é mais esquisita que a própria decisão que foi suspensa.
Diz o despacho de Toffoli:
“Diante das informações satisfatoriamente prestadas pela UIF, em atendimento ao pedido dessa Corte, em 15/11/19, torno sem efeito a decisão na parte em que foram solicitadas, em 25/10/19 cópia dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIF’s), expedidos nos últimos 3 (três) anos.”
UIF é a Unidade de Inteligência Financeira, na qual Bolsonaro transformou o COAF, depois que este detectou as transações suspeitas de um de seus filhos, Flávio Bolsonaro.
Mas… se a UIF podia prestar as informações que Toffoli queria, por que tomar uma decisão que expunha 600 mil pessoas, quase todas sem nenhuma suspeita – para não falar delito – que justificasse essa exposição?
Uma fonte da assessoria de Toffoli revelou que ele não sabia do número de atingidos por sua medida – e disse isso para defendê-lo.
Então, podemos imaginar: de repente, 600 mil contribuintes desabaram sobre a cabeça de Toffoli. Agora, imagine o leitor uma investigação de 600 mil contribuintes, quase todos eles inocentes de qualquer crime, até mesmo isentos de qualquer suspeita, feita por Toffoli.
Como, no poema de Goethe, dizia o feiticeiro ao seu desastrado aprendiz: “Com espíritos poderosos só devem lidar aqueles que os dominam”.
Mas não é uma surpresa esse desastre. Toffoli não está no STF por seu saber jurídico ou por suas obras eruditas. Está lá porque foi advogado do PT e de Lula, que o nomeou. Ou alguém acha que ele tem outra credencial para ser ministro do STF?
Toffoli, evidentemente, não faz outra coisa, desde que assumiu a presidência do STF, do que tentar exibir o poder que tem nas mãos.
Disso faz parte, também, a bajulação a Bolsonaro, com afagos ao golpe de 1964 e a invenção de “pactos” para que o STF – e, de resto, o Judiciário – se submetam às infâmias que circulam pelo Planalto e pelo Ministério da Economia (v. HP 03/10/2018, Juízes repudiam declarações de Toffoli sobre golpe de 1964; HP 29/05/2019, Juízes federais criticam Toffoli e o pacto com Bolsonaro; e HP 09/08/2019, Toffoli prega que função do STF é “não atrapalhar” Bolsonaro).
É verdade que nada disso deu certo, até agora, com uma exceção: a impunidade de Flávio Bolsonaro diante das investigações da polícia e do Ministério Público do Rio de Janeiro, decidida por Toffoli à custa de paralisar milhares de investigações em todo o Brasil.
Relembrando: Toffoli, a pedido de Flávio Bolsonaro, impediu todas as investigações, no Brasil, com base em relatórios do COAF, Receita Federal e Banco Central (v. HP 19/07/2019, Para livrar Flávio Bolsonaro de investigações, Toffoli suspendeu a lei e até a si mesmo).
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) demonstrou, já, a ilegalidade de Toffoli ao aceitar o pedido de Flávio Bolsonaro. Simplesmente, dizem os promotores, o pedido foi aceito em uma ação que não trata das informações do COAF.
Só para resumir: Toffoli aceitou um pedido de Flávio Bolsonaro em uma ação que, como já apontamos, nada tinha a ver com o seu caso. Mas, também, mostra o MPRJ, nada tinha a ver com a legalidade ou ilegalidade da transmissão de informações do COAF aos órgãos de investigação, sem autorização judicial.
Entretanto, a alegação de Flávio Bolsonaro é, exatamente, uma suposta ilegalidade na transmissão de um RIF [Relatório de Investigação Financeira], aliás, mais de um, pelo COAF ao Ministério Público do Rio de Janeiro, detectando suas operações bancárias suspeitas.
Diz o MPRJ:
“O tema controvertido naqueles autos diz respeito, única e exclusivamente, à eventual necessidade de autorização judicial para que o Fisco [isto é, a Receita] compartilhe com o Ministério Público dados obtidos mediante o acesso irrestrito a ‘documentos, livros e registros de instituições bancárias’” (cf. MPRJ, Manifestação ao Excelentíssimo Senhor Presidente do STF no Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP, p. 3, grifo no original).
Portanto, Toffoli não poderia ter impedido as investigações com base em informações do COAF, em um processo que não trata disso.
Contrariando a máxima do Barão de Itararé (“De onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo”), o recém escolhido procurador geral da República, Augusto Aras, foi até mais enfático que o MPRJ, pedindo aos ministros do STF que revoguem a liminar de Dias Toffoli que protegeu Flávio Bolsonaro.
Em memorial dirigido ao STF, diz o procurador geral:
“Na decisão proferida nestes autos em 15 de julho de 2019, o Ministro Dias Toffoli ‘ampliou’ o tema objeto deste RE [Recurso Extraordinário] e nele incluiu, também, a possibilidade ou não de outros órgãos de fiscalização e controle, como o COAF, o BACEN, a CVM e outros, compartilharem dados acobertados por sigilo com o Ministério Público, sem a intermediação do Poder Judiciário (grifo no original).
“Ocorre que não há dispositivo legal que permita a ampliação unilateral da controvérsia posta a exame, incluindo no julgamento de processo em que reconhecida a repercussão geral da matéria controvérsia a ela estranha” (grifo nosso).
Aras, literalmente, apontou que Toffoli, ao incorporar o caso de Flávio Bolsonaro a um “tema de repercussão geral” (ou seja, a um julgamento com consequências obrigatórias para a Justiça), “usurpou” a competência do plenário do STF (cf. PGR, Memorial ao STF, 18/11/2019, p. 3).
O procurador, em seguida, estende-se sobre as consequências da decisão de Toffoli, nacionais (a superlotação de um Judiciário já superlotado, por pedidos de informações bancárias de suspeitos) e internacionais (a infração dos tratados de que o Brasil é signatário).
Mas o significativo, aqui, é que o procurador Aras, escolhido por Bolsonaro, por fora da lista tríplice, também acha a liminar de Toffoli, para proteger Flávio Bolsonaro, um escândalo.
C.L.