(HP, 30/06/2010)
“Nous ne sommes plus vos singes” (“Nós não somos mais vossos macacos”), disse o primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba, ao rei Baudoin, da Bélgica, no dia da independência do país, 30 de junho de 1960.
Baudoin, nesse dia, proferira um dos mais arrogantes discursos já ouvidos de um colonizador. Na então Leopoldville (hoje, Kinshasa), o rei belga fizera uma elegia à “genialidade” de seu tio-avô, Leopoldo II – que, em 1885, por cima até do Estado belga, tornara o Congo uma fazenda pessoal, com sua população como escravos.
O discurso de Lumumba foi um dos mais irrecorríveis libelos já pronunciados contra a escravidão, o racismo e o colonialismo.
Assim nascia, há 50 anos, a República Democrática do Congo. Um país que teve a independência liderada por um homem como Patrice Lumumba – um dos maiores que já existiram – e que conseguiu sobreviver aos colonialistas belgas, aos imperialistas norte-americanos, e a Mobuto, está, certamente, destinado a um grande papel na História da Humanidade.
O texto que publicamos nesta página saiu originalmente em nossa edição de 7 de novembro de 2003. Para a republicação de agora, reescrevemos, para maior clareza, alguns trechos, revisamos a base documental, acrescentamos algumas informações e corrigimos um problema factual – a verdadeira identidade de Joseph Scheider, agente da CIA que depôs na Comissão Church, enviado a Leopoldville para envenenar Lumumba.
CARLOS LOPES
Até hoje o conjunto dos documentos sobre a ação do governo dos EUA para assassinar o líder da independência do Congo e primeiro-ministro do país, Patrice Lumumba, não foram liberados. No entanto, em 1975, o relatório da comissão presidida pelo senador Frank Church revelou o conteúdo da maior parte deles.
Após Watergate e o arrombamento do consultório do psicanalista de Daniel Ellsberg – que havia divulgado a documentação secreta sobre o Vietnã conhecida como “Papéis do Pentágono” – o escândalo da ação ilegal da CIA dentro dos EUA fez com que Gerald Ford, que sucedera Nixon, instalasse uma comissão de inquérito, sob a chefia de Nelson Rockefeller. Era uma investigação de fancaria – Rockefeller, durante o governo Eisenhower, tinha sido o mentor das operações encobertas da CIA.
Porém, as informações começaram a vazar. Daí, a investigação do Congresso, que levou à demissão de William Colby, diretor-geral da CIA (e à nomeação de seu sucessor, George H. Bush, indicado por Nelson Rockefeller).
Colby fora um dos maiores assassinos da CIA durante quase 30 anos. Após sua demissão da CIA, tornou-se pacifista – em especial, ativista anti-guerra nuclear. Em 1996, Colby desapareceu, durante um trajeto de caiaque. Seu corpo foi encontrado nove dias depois – o inquérito subsequente concluiu que ele sofrera um infarto enquanto remava, caindo fora do caiaque e afogando-se.
No início de seus vários depoimentos no Congresso, Colby parecia querer reconhecimento pelos crimes da agência. Bem antes da Comissão Church, em 1971, ao lhe ser perguntado se era verdade que o Programa Phoenix – concebido e dirigido por ele no Vietnã – assassinara 60 mil “suspeitos” de serem “ativistas comunistas”, Colby respondeu que não, que os assassinados tinham sido “entre janeiro de 1968 e maio de 1971”, precisamente, 20.587 vietnamitas.
O deputado Ogden Reid, então republicano de Nova Iorque, um ex-embaixador dos EUA, perguntou: “Você está seguro de que sabemos distinguir uma pessoa leal ao Vietcong da coletividade de cidadãos do Vietnã do Sul?”.
Colby: “Não”.
Reid insistiu: “Você declararia peremptoriamente que o [Programa] Fenix nunca perpetrou matança premeditada de civis não-combatentes?”.
Resposta de Colby: “Não, eu não poderia dizer isso… Eu certamente jamais diria isso”.
Em suas memórias – que têm o título de “Homens de Honra” – Colby afirma que “a CIA nunca matou alguém por si própria”, isto é, sem ordem superior – sem ordem do presidente dos EUA, única autoridade acima da CIA. Todas as provas mostram que a afirmação é verdadeira. Naturalmente, com uma exceção: quando a vítima foi o próprio presidente.
EISENHOWER
O assassinato de Lumumba é o primeiro dos assassinatos de líderes políticos pela CIA relatado pela Comissão Church:
“A comissão coletou sólida evidência de uma conspiração para assassinar Patrice Lumumba. A forte hostilidade para com Lumumba, proclamada pelos mais altos níveis do governo, pode ter tido a intenção de iniciar uma operação de assassinato; no mínimo, ela engendrou tal operação. A evidência indica que é provável que a forte inquietação que o presidente Eisenhower expressou sobre Lumumba na reunião do Conselho de Segurança Nacional de 18 de agosto de 1960 foi tomada por Allen Dulles [diretor da CIA e irmão do secretário de Estado de Eisenhower, Foster Dulles] como uma autorização para assassinar Lumumba. Nota da Comissão Church: “De fato, um membro do Conselho presente à reunião de 18 de agosto acredita que testemunhou uma ordem presidencial para assassinar Lumumba” (United States Senate, Select committee to study governmental operations with respect to intelligence activities, “Interim Report: III. Alleged Assassination Plots Involving Foreign Leaders”, pág. 13).
Realmente, não se tratava de uma “autorização”, eufemismo adotado, como outros – segundo as memórias de Colby – devido à pressão da CIA. Todos os testemunhos constantes do relatório demonstram que Eisenhower ordenou o assassinato de Lumumba.
Patrice Lumumba viajara a Washington no mês anterior à ordem de Eisenhower. Recebera algumas “ofertas de ajuda” do governo americano. No entanto, o primeiro-ministro do Congo não estava disposto a ver – num dos países de maiores riquezas naturais do mundo, inclusive a maior reserva de urânio da Terra – a exploração belga, contra a qual lutara por longos anos, ser substituída pela dos norte-americanos.
Nos seus 67 dias de governo, Lumumba não fez nenhuma nacionalização ou restrição aos interesses americanos. No entanto, era óbvio que o negro – e pobre, líder de um povo pobre – Lumumba não era daqueles que se submetiam. Daí o ódio de Eisenhower, no qual era evidente o elemento racista.
“Na semana que se seguiu à reunião de 18 de agosto”, prossegue o relatório Church, “um conselheiro do presidente frisou ao Grupo Especial – a subcomissão do Conselho responsável por planejar as operações encobertas – ‘a necessidade de ação muito direta’ contra Lumumba e incitou a uma decisão que não descartasse a consideração de ‘qualquer tipo de atividade que possa contribuir para livrar-se de Lumumba’. No dia seguinte, Dulles telegrafou ao Funcionário da Base da CIA em Leopoldville, República do Congo, que ‘nos altos escalões’ a ‘remoção’ de Lumumba era ‘um urgente e prioritário objetivo’. Logo depois, o serviço clandestino da CIA formulou uma trama para assassinar Lumumba” (III. “Assassination Planning and the Plots, A. Congo”, pág. 13).
DULLES
O partido de Lumumba, o Movimento Nacional Congolês (MNC), vencera por ampla margem as eleições que precederam a declaração de independência, no dia 30 de junho de 1960.
Logo em seguida, a CIA enviou à sua base no Congo um novo membro, Victor Hedgman. É este que o relatório Church designa como o “Funcionário da Base”. A razão é que ele tinha contato direto com a direção da CIA, sem subordinar-se ao chefe da base, Larry Devlin.
Hedgman, ao depor na comissão Church “disse que o assassinato de Lumumba não foi discutido em seus comunicados à CIA anteriores à sua partida do Congo, nem durante seu breve retorno ao quartel-general em conexão com a visita de Lumumba a Washington em julho”.
Realmente, os telegramas entre a CIA e sua base em Leopoldville (atual Kinshasa) só começaram a se referir diretamente ao assassinato a partir de agosto, ou seja, depois da reunião em que Eisenhower “expressou” sua “forte inquietação”.
Mas a CIA já estava conspirando: um telegrama do mesmo dia da reunião, do Congo para a sede da CIA, depois de mostrar dúvidas sobre se Lumumba era ou não comunista, fala em “ação para evitar outra Cuba” e que “o objetivo operacional da base é substituir Lumumba pelo grupo pró-ocidental”.
No mesmo dia, o chefe da Divisão África da CIA, Bronson Tweedy, respondeu que “estava procurando a aprovação do Departamento de Estado para a operação proposta, baseada na ‘sua e nossa crença de que Lumumba deve ser removido’”.
Logo no dia seguinte, já depois da reunião com Eisenhower, “o diretor do ramo de operações encobertas da CIA, Richard Bissell, assinou um telegrama para Leopoldville, dizendo que ‘você está autorizado a prosseguir com a operação’” (rel. cit. pág. 15).
Cinco dias depois, em 24 de agosto, Hedgman enviou o seguinte relatório ao diretor da CIA, Allen Dulles, sobre os congoleses que a CIA estava subornando: “abordaram Kasavubu [presidente do Congo] com plano de assassinar Lumumba. Kasavubu recusou concordar, dizendo-se relutante [quanto] ao recurso à violência [por] não existir outro líder com suficiente estatura para substituir Lumumba” (rel. cit. Pág. 15).
No dia posterior, Dulles foi a uma reunião do Grupo Especial. As minutas da reunião descrevem que depois de Dulles expor o “esboço de alguns planos da CIA para ações políticas contra Lumumba, tais como arranjar um voto de não-confiança no parlamento congolês, Gordon Gray, o Assessor Especial do Presidente para Assuntos de Segurança Nacional, relatou que o presidente ‘expressou sentimentos extremamente fortes sobre a necessidade de uma ação sem rodeios’”.
Dulles não tinha escrúpulos quanto a assassinatos. Mas não era um idiota. Evidentemente, ele sabia que os tais “planos de ação política” eram inviáveis, porque o MNC tinha maioria ampla no parlamento. Portanto, seu objetivo ao apresentá-los era obter uma confirmação explícita, por parte de Eisenhower (representado, na reunião, por Gray), da ordem de assassinato. E conseguiu.
No dia seguinte, ele mesmo enviou um telegrama à base da CIA em Leopoldville:
“Nos altos escalões aqui é agudamente clara a conclusão de que se Lumumba continua a ocupar alto cargo o inevitável resultado será no melhor dos casos o caos e no pior a pavimentação do caminho para a tomada do Congo pelos comunistas, com desastrosas consequências para o prestígio da ONU e para os interesses do mundo livre. Consequentemente, nós concluímos que sua remoção deve ser um primeiro e urgente objetivo e que sob as condições existentes isso deve ser uma alta prioridade de nossa ação encoberta”.
Sobre a suposta preocupação quanto à ONU, nesse momento ela (e, sobretudo, o seu secretário geral, Dag Hammarskjold) apoiava Lumumba, que exigia a saída das tropas belgas do país, enviando, a pedido do primeiro-ministro, forças de paz para o Congo. Hammarskjold seria morto um ano depois, num suspeito acidente aéreo, quando tentava um acordo na guerra civil que ensanguentou o Congo, após o assassinato de Lumumba.
No mesmo telegrama, Dulles dá à sua base no Congo “irrestrita autoridade (….) incluindo mesmo a mais agressiva ação se ela puder ser mantida encoberta. Nós imaginamos que os alvos de oportunidade devem estar presentes por si próprios a você”. (pág. 16).
GOLPE
Se é possível dúvida a respeito do significado desse telegrama, elas foram tiradas pelo depoimento, na Comissão Church, do então diretor de operações encobertas da CIA, Richard Bissell. Segundo Bissell, “o telegrama era um meio de indicar, através de um circunlóquio, que o presidente queria Lumumba assassinado (Nota da Comissão Church: Bissell depôs que Dulles teria usado a frase ‘altos escalões’ para referir-se ao presidente)”.
O mesmo disse Bronson Tweedy, o diretor da Divisão África da CIA. Tweedy – que redigiu a mensagem que Dulles assinou – disse que “o telegrama indicava que Dulles tinha recebido autorização do ‘nível político’”, isto é, Eisenhower.
No dia 5 de setembro de 1960, Kasavubu, a soldo da CIA, demitiu o primeiro-ministro Lumumba, passando por cima do parlamento. No dia 14, Mobutu, o cão de fila, perpetrou um sanguinário golpe de Estado, tramado e apoiado pela CIA.
Lumumba foi detido em sua residência. As tropas da ONU impediram o seu assassinato naquele momento.
No entanto, mostra a Comissão Church, “a evidência indica que o afastamento de Lumumba não aliviou as preocupações a respeito dele no governo dos Estados Unidos. Durante esse período, funcionários da CIA no Congo aconselharam e ajudaram contatos congoleses conhecidos pela intenção de assassinar Lumumba. Os funcionários também instaram alguns desses contatos congoleses ao ‘permanente descarte’ de Lumumba. Além disso, a CIA se opôs à reabertura do parlamento depois do golpe por causa da probabilidade de que o parlamento quisesse Lumumba de volta ao poder” (pág. 16).
Sete dias antes do golpe – e dois dias após a demissão de Lumumba – um telegrama de Leopoldville para Dulles dizia, ao relatar um encontro com “políticos congoleses de alto nível em estreito contato com a base da CIA”:
“Lumumba na oposição é quase tão perigoso quanto no cargo [o que] indica e implica a conclusão [que] deve ser eliminado fisicamente”.
No telegrama, a “conclusão” é atribuída aos congoleses. Mas era a CIA que “instava ao permanente descarte” de Lumumba. Na véspera do golpe, o diretor da Divisão África, Bronson Tweedy, telegrafou à sua base: “Talentos e dinamismo de Lumumba aparecem [como] fator esmagador no restabelecimento de sua posição a cada vez que parece meio perdido. Em outras palavras, a cada momento Lumumba tem a oportunidade de ter a última palavra. Ele pode influenciar os acontecimentos em seu proveito”.
GOTTLIEB
Transcrevemos um dos parágrafos do Relatório da Comissão Church:
“Um dia depois do golpe de Mobutu, o ‘funcionário da base’ [Hedgman] relatou que estava servindo como consultor de um esforço congolês para ‘eliminar’ Lumumba, devido ao seu ‘medo’ de que Lumumba podia, na verdade, ter se fortalecido ao colocar-se sob a custódia da ONU, o que permitia uma base segura de operações. Hedgman concluía: ‘A única solução é removê-lo da cena rapidamente’ (Leopoldville para o Diretor [Dulles], 15/09/60)”.
No entanto, os traidores congoleses não tinham coragem de assassinar Lumumba, o que fez com que a CIA redobrasse a instigação. No dia 17, o “funcionário da base” relatou outro encontro, com um “senador congolês”: “[o senador] relutantemente concordou que Lumumba deve ir permanentemente. Desconfia [de outro líder congolês] mas deseja fazer a paz com ele para os propósitos de eliminação de Lumumba (Leopoldville ao Diretor, 17/09/60)”.
Os traidores tinham medo de Lumumba, ou seja, do povo. A CIA, então, que tinha tramado o golpe de Mobutu, inventou um golpe de Estado… liderado por Lumumba: “o ‘funcionário da base’ advertiu a um líder-chave congolês sobre a trama de golpe articulada por Lumumba e dois correligionários, e ‘instou à prisão ou outro mais permanente descarte de Lumumba, Gizenga e Mulele’ (Leopoldville para o Diretor, 20/09/60).
Gizenga e Mulele eram os principais líderes do MNC, depois de Lumumba.
Nessa situação, Washington mandou um enviado ao Congo: “Bissell pediu a um cientista da CIA, Joseph Scheider, para fazer preparados para assassinar ou incapacitar um ‘líder africano’. De acordo com [o depoimento de] Scheider, Bissell disse que o encargo vinha da ‘mais alta autoridade’. Scheider procurou materiais biológicos tóxicos e recebeu ordem de Tweedy para entregar esses materiais ao funcionário da base em Leopoldville. Em setembro, Scheider entregou as substâncias letais ao funcionário da base em Leopoldville e instruiu-o para assassinar Patrice Lumumba. O funcionário da base testemunhou que foi dito por Scheider que o presidente Eisenhower tinha ordenado o assassinato de Lumumba”.
Joseph Scheider, sabe-se hoje, era um pseudônimo utilizado no relatório da Comissão Church para encobrir Sidney Gottlieb, o chefe do MKultra – o notório departamento de “controle de mentes” da CIA. Mais tarde, o chefe da base da CIA, Larry Devlin, relatou (ver seu depoimento no documentário “Who Killed Lumumba?”, de David Akerman, da BBC) que, quando Lumumba ainda estava sob a proteção da ONU, recebeu ordens para esperar um enviado, e que este era o sinistro Gottlieb, que entregou-lhe um tubo de pasta de dente envenenada, para que a introduzisse no banheiro da residência de Lumumba.
Scheider, aliás, Gottlieb, segundo o seu depoimento e o de Hedgman, partiu do Congo em 30 de outubro. A prisão domiciliar de Lumumba ainda duraria até 27 de novembro.
No entanto, baseado no fracasso das tentativas da CIA, o relatório Church conclui por sua inocência e a do governo americano.
Para chegar a essa conclusão, os membros da comissão ignoraram a ação da CIA na perseguição a Lumumba, quando este tentou chegar a Stanleyville, onde seus partidários se concentraram após o golpe de Estado, a ação americana para impedir que as tropas da ONU o protegessem e evitassem sua prisão e tortura pública e, sobretudo, o incitamento da CIA (documentado, entre outros, por Akerman) para que Mobutu o entregasse ao psicopata Moise Tshombe – e aos mercenários belgas que o sustentavam em Katanga.