Na quinta-feira (17/09), Bolsonaro usou a sua “live” para atacar o ex-juiz Sérgio Moro, que ele mesmo nomeou ministro da Justiça e da Segurança Pública.
Moro, como se sabe, saiu do governo no dia 24 de abril, denunciando a ingerência indevida e ilegal de Bolsonaro na Polícia Federal (PF), com o objetivo de impedir que ilícitos seus e da família – assim como de apaniguados, inclusive milicianos – fossem investigados.
As denúncias de Moro motivaram um inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a coordenadoria do ministro Celso de Mello, decano do Tribunal, que determinou o depoimento presencial de Bolsonaro, com o direito do ex-juiz fazer perguntas ao depoente.
Era essa a causa do acesso de raiva de Bolsonaro contra Moro, na “live” de quinta-feira.
O mais interessante – ou, talvez, singular, ou quase isso – é que ele repetiu, nesse pronunciamento via Internet, o que Lula dissera, dois dias antes, na terça-feira (15/09), em entrevista ao “Diário do Centro do Mundo”, atacando Moro e colocando-se ao lado de Bolsonaro na questão da ingerência na Polícia Federal.
Bolsonaro estava à beira da histeria – ou, provavelmente, além da beira – com o ministro Celso de Mello: “O ministro Celso de Mello queria que eu depusesse de forma presencial respondendo pergunta para dois advogados do Moro e mais o próprio Sergio Moro. O Moro não tem que perguntar nada para mim”.
Daí, os elogios ao ministro Marco Aurélio Mello, que, interferindo no inquérito alheio, suspendera as investigações até que o plenário do STF decida se o depoimento de Bolsonaro será presencial ou por escrito.
“Está na mão do ministro Fux pautar isso daí, e daí a gente, se Deus quiser, enterra logo esse processo e acaba com essa farsa desse ex-ministro da Justiça de me acusar de forma leviana”, disse Bolsonaro.
Por que ele não poderá “enterrar o processo”, se o depoimento for presencial, ele não explicou. Resta concluir que de alguma coisa ele está fugindo. Com a sua seriedade habitual, acrescentou: “Ele está de brincadeira, esse Sergio Moro, mas tudo bem”.
É assim que Bolsonaro trata uma acusação gravíssima, da qual Moro apresentou, inclusive, provas – que já mencionaremos.
Não é à toa que achou necessário apelar a Deus (“se Deus quiser”) e ao presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, como se este lá estivesse para contemplar seus interesses (e também não é à toa que, na mesma “live”, chamou a sua ingerência na PF de “caso pessoal”).
Independente da opinião que cada um possa ter da forma de depoimento adequada ao presidente da República – se presencial ou por escrito – é evidente que Bolsonaro quer fugir das perguntas de Moro.
Nessa campanha contra o ex-juiz, ele conta com um aliado: o sr. Luís Inácio Lula da Silva. Já dizia alguém que em certos momentos, e em certas questões, os campos político-ideológicos costumam assumir insuspeitada nitidez.
Na terça-feira, Lula atacara o ex-juiz Moro, que o condenou pela propina recebida da OAS sob a forma de um triplex no Guarujá, em São Paulo, nos mesmos termos que Bolsonaro faria dois dias depois.
Lula, aliás, defendera explicitamente Bolsonaro:
“[Moro] é tão medíocre que quando ele sai [do governo] tenta criar mais uma pirotecnia. ‘Ai, vou sair porque o Bolsonaro quer indicar o diretor da Polícia Federal’. É importante lembrar que o presidente da República tem o direito de indicar o diretor-geral da PF, sim.”
Logo, Bolsonaro está certo; o errado é Moro.
Lula, nessa aliança tácita com Bolsonaro contra Moro, não se avexa em deformar o motivo da saída deste último do Ministério.
Moro não saiu do governo porque “Bolsonaro queria indicar o diretor da Polícia Federal”, mas porque Bolsonaro queria trocar o diretor-geral e o superintendente da PF do Rio para acobertar a família, isto é, tornar a si e aos seus rebentos, assim como outros parentes, imunes a investigações por transgressões à lei, impunes diante da Polícia e outros órgãos de combate ao crime – inclusive, em última instância, diante da Justiça (v. HP 05/05/2020, Depoimento na íntegra de Moro revela interferência política de Bolsonaro na PF e HP 25/05/2020, Para Moro, interferência ilegal na PF visou proteger amigos e familiares).
Entre os amigos de Bolsonaro que estavam descontentes com Moro, disse a ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-corregedora nacional de Justiça, estavam as milícias do Rio (v. Para Eliana, milícias derrubaram Moro, OESP 13/09/2020; v., também, HP 24/04/2019, Bolsonaro e as milícias).
É essa denúncia de Moro das atividades ilegais de Bolsonaro, que Lula chamou de “pirotecnia”. Foi nesse esgoto – moral e legal – que Lula aninhou-se na terça-feira. Com Bolsonaro, dois dias depois, repetindo os mesmos ataques contra Moro.
O fato de Moro ter apresentado provas do que disse, é o de menos. O fato da correspondência em que Bolsonaro exige a troca do superintendente da PF no Rio e do diretor-geral agora ser pública, também não faz com que nenhum dos dois – Lula ou Bolsonaro – pensem duas vezes no que dizem, ou apresentem algum arrepio de escrúpulo ao atacar o ex-juiz nessa questão.
Nesse caso, existe até um vídeo, o da reunião ministerial de 22 de abril, dois dias antes da saída de Moro do governo, em que Bolsonaro, raivoso, exige que Moro proteja a sua família, isto é, o zero-um, o zero-dois, etc. (v. além das matérias já citadas, HP 24/04/2020, Moro sai e revela que Bolsonaro quer “controlar” PF para interferir em inquéritos e HP 03/05/2020, Sérgio Moro apresentou mais provas contra Bolsonaro em seu depoimento à PF).
Entretanto, além de todas as provas apresentadas por Moro, existe prova mais clara dos objetivos de Bolsonaro, do que a sua mudança de comportamento após a prisão do seu operador, Fabrício Queiroz?
Apesar de Queiroz permanecer agora do lado de fora da cadeia – por artes do então presidente do STJ, João Otávio de Noronha, e do notório Gilmar Mendes -, Bolsonaro, a partir da descoberta do seu operador no sítio do amigo e advogado Fred Wassef, foi acometido de um acesso de súbita (embora intermitente) mansidão.
Certamente, como o escorpião da piada, ele não nega jamais a sua natureza. Mas algo aconteceu em seu tom público, especialmente no modo como passou a tratar a Justiça, em especial, o STF.
Por quê?
Será porque Queiroz não tem nada a revelar de ilícito, de ilegal, em relação a Bolsonaro, família e outros comparsas?
Lula, porém, parece mais interessado em absolver Bolsonaro:
“Por que achar que o Moro podia [indicar a direção da PF] e [Bolsonaro] não podia? Ele [Moro] tenta ganhar a opinião pública tentando mentir outra vez.”
Bolsonaro tentou dominar a PF para submetê-la aos seus interesses próprios, pessoais – e ilícitos.
No entanto, segundo Lula, é Moro que está mentindo para caluniar esse arcanjo (?) chamado Bolsonaro.
O que espera Lula? Que em troca de sua defesa de Bolsonaro, este facilite a anulação dos processos em que já foi condenado?
Será isso possível? Na cabeça de alguém que se interessa apenas por si mesmo, é bem possível (v. HP 09/11/2019, O interesse de Lula é apenas Lula).
Para quem negou que as provas apresentadas no processo do triplex existissem, apesar delas estarem ali, nos autos, acusar outros de mentir, à custa de passar atestado de graça em um fascista, defensor e representante político de milícias e grupos de extermínio, não é uma façanha tão extraordinária assim (v. HP 19/07/2017, “O triplex não é meu” ou as provas que Lula garante que não existem e HP 22/01/2018, Uma pequena compilação das provas contra Lula (só no caso do triplex)).
Aliás, na mesma entrevista, sobre o processo da propina da Odebrecht no caso do Instituto Lula, seu patrono diz uma frase que merece entrar para certo tipo de antologia:
“É como se tivesse alguma coisa no Colégio D. Pedro II e fossem para cima do D. Pedro II. Dei apenas meu nome para o Instituto.”
Todo mundo sabe que isso não é verdade. Lula não era (e não é) apenas “patrono” do Instituto Lula. É dono dele. O Instituto era o lugar dos negócios de Lula. Para isso, D. Pedro II, faça-se justiça, jamais usou o Colégio Pedro II. Aliás, Pedro II nem ao menos fundou o colégio que tem o seu nome, ao contrário de Lula em relação ao instituto que tem o seu.
Mas, no momento, a ideia de Lula parece ser a de cultivar sua identidade com Bolsonaro. Perguntado sobre as queimadas, disse ele:
“Eu seria irresponsável se dissesse que a natureza não tem nada a ver com isso. Não estou culpando o presidente Bolsonaro mas estou culpando a irresponsabilidade dele de evitar que isso se torne tão grave.”
A “irresponsabilidade de Bolsonaro” deve ser, portanto, algo distinto da pessoa e da figura pública de Bolsonaro.
Talvez apenas um acidente, devido à distração… Bolsonaro, como se sabe, é muito distraído.
CARLOS LOPES
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