SIDNEI SCHNEIDER
No Rei Lear, de Shakespeare, o Bobo da Corte pede, em determinado momento, que o Rei lhe arranje um professor de mentiras: “Gostaria muito de aprender a mentir”. O Rei o contesta: “Se mentires, maroto, serás açoitado”. Assim, fica claro que ao Bobo da Corte está facultado dizer sempre a verdade, jamais será punido por isso, mesmo que desagrade ao Rei, o que muitas vezes acontece, pois esta é a função do Bobo, ser a consciência crítica do soberano e, dentro do enredo, contribuir para a da plateia. O Bobo, sabedor de que se falar a verdade será açoitado pelas duas filhas gananciosas do Rei, entre as três que este tem, ambas prontas para expulsar o Rei do palácio, deixa nítida sua posição: “Não posso compreender que tu e tuas filhas sejam aparentados. Elas me açoitam por eu dizer a verdade, enquanto tu pretendes fazer o mesmo se eu mentir. Sem contar que algumas vezes sou açoitado apenas por ficar quieto” (Ato I, Cena IV).
O diretor Akiro Kurosawa, ao adaptar a peça para o Japão medieval, no belíssimo Ran (1985), filme premiado mundialmente e no Oscar do ano seguinte, cria uma cena muito interessante entre o Rei e o Bobo da Corte. À época, tive o cuidado de anotá-la, e recordei-me insistentemente dela em função dos últimos acontecimentos. O Rei está desolado e sente-se traído, pois cedeu o poder a dois de seus filhos e baniu o terceiro por este revelar a ganância dos irmãos (em substituição às filhas do original), enquanto o Bobo, de quimono e cabelo rabo-de-cavalo, dá cambalhotas e faz piruetas num cenário de escarpa e pedras, igualmente desolado. Sempre pulando, o Bobo critica os erros do Rei através de um koan, gênero oriental de história curta e enigmática: “O ovo da serpente é branco e bonito. O ovo do pássaro é manchado e feio. O pássaro chocou o ovo branco, jogando fora o manchado. Do ovo trocado nasceu a serpente. O pássaro criou a serpente e a serpente comeu o pássaro”.
Naturalmente, uma cena artística deste porte busca a amplitude, permanece aberta a muitas e diferentes reflexões, mas gostaria de trazê-la para o nosso ambiente. Ao aderir, passo a passo, ao propósito de administrar todo um país com o objetivo central de transferir juros, os mais altos do planeta, para o sistema financeiro e especuladores, quem quebrou a economia e deixou ao povo a penúria do desemprego? Quem entregou a maior bacia de petróleo do mundo, abrindo a porteira do pré-sal às petroleiras multinacionais, riqueza que deveria ser a redenção do Brasil, para agora até combustível importarmos? Quem atendeu os interesses do cartel do bilhão, roubou e prejudicou a Petrobrás e outras estatais, para obter propinas milionárias? Quem estimulou a criação de monopólios locais como as fraudulentas JBS e Odebrecht? Quem disse que gostaria de ter dez empresários como Eike Batista, reputando como exemplar o pior falcatrua dos últimos tempos? Em suma, quem preferiu, chocou e criou o terrível ovo branco em detrimento do belo ovo manchado, que a esta gente pareceu feio e sem valor?
Não por acaso, quando denunciou a corrupção dos governos Lula e Dilma, buscando afastar-se dela, o ex-governador e ex-ministro Olívio Dutra falou em Ovo da Serpente, referindo-se não ao filme japonês em questão, mas a outro, com este preciso título, do diretor sueco Ingmar Bergman, em que é narrada criticamente a ascensão do nazismo desde seu débil surgimento. O petista gaúcho conhece Lula muito bem, foi seu Ministro das Cidades, a segunda liderança nacional do PT durante décadas, além de residirem ambos num mesmo apartamento de Brasília, quando eram deputados. Ainda que Olívio tenha silenciado sobre tudo o mais e nem mesmo voltou a falar sobre o assunto, não é de pequena monta a sua comparação.
Pouco se comenta, mas é um fato que Bergman esteve na Alemanha nazista antes do início da Segunda Guerra, fazendo intercâmbio estudantil, um costume das famílias suecas de então, e ali se tornou simpático ao nazismo. De volta à Suécia, manteve esta posição mesmo após o final da Segunda Guerra e a divulgação das atrocidades dos campos de concentração, que ele julgava fossem apenas filmagens de contrapropaganda, meras trucagens não factuais, mentiras dos norte-americanos, aos quais ele tinha mais acesso que aos soviéticos. Como seria de esperar, a posição de Bergman não se sustentou e, quase imediatamente, ele vivenciou importante crise de revisão autocrítica. No recente documentário Ingmar Bergman 100 anos (2018), da diretora sueca Jane Magnusson, tais situações estão registradas. É precisamente esse processo de revisão autocrítica que, anos mais tarde, originará o filme Ovo da Serpente (1977), dirigido com brilhantismo.
Não lembramos desta revisão exatamente para falar de Bergman, mas para constatar que, entre nós, muitos brasileiros, das mais diferentes classes e matizes, também se decidiram por um momentâneo apoio a Bolsonaro. Ao externarem seu legítimo repúdio ao desgoverno petista (ao estelionato eleitoral, ao roubo desenfreado, à destruição do trabalho e das empresas nacionais) apoiaram num primeiro reflexo o que lhes pareceu o exato oposto. Sem atentar, no entanto, que Bolsonaro e seu programa de governo são a continuação da política econômica petista de modo ainda mais extremado, com viés antidemocrático que objetiva sua sustentação. Se a Sra. Roussef entregou o pré-sal de Libra e Temer o de Carcará, entre outras áreas, Bolsonaro quer entregar tudo, “a Petrobrás completa”, “todas as estatais com exceção de Furnas, da Caixa e do Banco do Brasil”, aprofundar as reformas da previdência realizadas pelos governos FHC, Lula e Dilma, e a intentada sem sucesso por Temer, para tirar ainda mais direitos dos trabalhadores e aposentados. E, igualmente, quer destinar os vultosos recursos advindos destas medidas para garantir os sacrossantos juros dos empanturrados banqueiros e rentistas. O que é isso senão a continuidade em grau extremo do que tivemos nos últimos tempos?
Se Lula atendeu o banqueiro Meirelles, Dilma o banqueiro Levy, Temer os banqueiros Meirelles e Goldfajn, qual diferença haveria em Bolsonaro, que terá o banqueiro e malversador de fundos públicos Paulo Guedes no Ministério da Economia e chegou a convidar Ilan Goldfajn, um dos sócios do Itaú, a permanecer no Banco Central? É preciso cuidado, olhar bem para a realidade, pois se não o fizermos, poderemos nós mesmos favorecer involuntariamente a sibilante e diabólica criatura.
Em relação às eleições do ponto de vista estrito, quando boa parte da nação justamente votou em Haddad somente por julgar Bolsonaro ainda pior, é preciso verificar, quem chocou e criou o ovo da serpente? Quem elegeu Bolsonaro seu adversário ideal, após as eleições de 2014, para ainda tentar posar de progressista, após a tremenda traição do estelionato eleitoral que revoltou o povo? Quem, quando Temer esteve muito perto de ser derrubado, mandou recolher as faixas de “Fora Temer” e aliou-se a ele no julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE, com o objetivo de ganhar tempo, impedir a realização de novas eleições e “deixar Temer sangrar” até o final do mandato, enquanto quem sangrava era o povo brasileiro? Quem, pensando apenas no seu próprio umbigo, desidratou a única candidatura em condições de derrotar Bolsonaro no segundo turno, conforme mostravam todas as pesquisas, em favor da sua própria sorte de presidiário corrupto e em desfavor do país? Quem desfavoreceu inclusive a seu pupilo, que assumiu o humilhante papel de impedir a vitória real do povo brasileiro nas eleições? Quem, após patrocinar a perda das eleições, com a vitória do pior candidato (como disse Ciro Gomes lucidamente, “o PT elegeu Bolsonaro”) ainda quer impor aos outros partidos e às outras forças a sua hegemonia na Oposição, o que só favoreceria a Bolsonaro e à aplicação do seu nefasto programa entreguista? Sem estas questões, não vamos aglutinar uma ampla frente das forças vivas da nação, uma ampla frente nacional e democrática, capaz de impedir as delirantes vontades dos que acham normal bater continência à bandeira dos Estados Unidos e fatiar a Amazônia entre as corporações daquele país.
Um amigo lembrou que já estávamos há quarenta anos nessa luta, assinalando a perspectiva de mudança que desde então em nós se entranhou. Após a conquista do fim da ditadura, tivemos vitórias importantes, como a Constituição de 1988, o impeachment do entreguista Collor, a não privatização da quase renomeada Petrobrax, o arquivamento da Reforma da Previdência, mas não foi possível avançar mais muitíssimo em função deste Cavalo de Tróia dentro da Nação Brasileira que tem sido o PT, principalmente através da ação de Lula, da subserviente direção partidária e certas lideranças.
Denunciar as sucessivas traições dos governos e líderes petistas, também as autocríticas miúdas não mais do que cosméticas, inclusive certo mau-caratismo próprio apenas de ladrões e criminosos, é a maneira concreta de alcançar a união do maior conjunto viável de forças em torno da libertação da nossa Pátria das ameaças que sobre ela pairam. E não o silêncio, como a alguns inicialmente possa parecer. A hora não é de passar a mão em cima de erros e traições, principalmente quando tão graves e destrutivas, mas sim de superar esta fase já demasiado longa da quinta coluna. Quem tiver compromisso com o povo acabará por se perfilar a seu lado.
Ninguém está negando a realização de alianças eventuais, em situações específicas ou próprias da dinâmica do parlamento, mas a fase da hegemonia imposta no grito ou através da compra de parlamentares, podem ter certeza os dirigentes petistas, e basta olhar ao redor as forças da Oposição, esta acabou.
Algumas pessoas falam que o país está a caminho das trevas. Temos, antes de mais nada, que aprumar o nosso Sol. Assim garantiremos, tão logo quanto possível, o desenvolvimento e o voo do pássaro. E a derrota da serpente.
Vai ter crítica do filme O Doutrinador?
Todo Pais que quiser prosperar tem que investir em cultura e ser justo para com os menos favorecidos.
Igualdade, liberdade e Solidariedade , por um mundo melhor.