MARCO ANTÔNIO CAMPANELLA (*)
As histórias da máfia italiana, com raízes ainda na primeira metade do século 19, cujos integrantes e descendentes se espalharam por outros países, notadamente Estados Unidos e Austrália, são bastante conhecidas, entre outros, pelos estudiosos de história e os adoradores da temática inspiradora de reconhecidos diretores de cinema.
Foi, como se sabe, uma sociedade secreta que se organizou em torno de algumas práticas criminosas. Para se sustentar, mantinha uma ligação estreita com autoridades públicas cevadas pela propina e outros beneplácitos.
Os mafiosos de então – e alguns que sobreviveram à contemporaneidade, desenvolveram algumas características na busca da simpatia por parte das pessoas mais humildes, desassistidas e desprotegidas pelo Estado. Muitos sicilianos, berço dessa organização, tinham os mafiosos mais como protetores do que como criminosos.
Muitos já escreveram e disseram que Bolsonaro encabeça um governo mafioso, integrado por apoiadores de milicianos.
Em pouco mais de oito meses de governo, os fatos são generosos em sua capacidade de demonstrar a real natureza de Bolsonaro e do bolsonarismo, cada vez mais ruidoso em suas manifestações e atitudes, e reduzido em sua expressividade.
Bolsonaro, antes, ao longo de sete mandatos de deputado federal, emitiu vários sinais de seus liames com os milicianos e torturadores. Essa identidade foi manifestada de forma mais nítida no voto histérico pelo impeachment de Dilma no plenário da Câmara dos Deputados ao ovacionar o coronel Brilhante Ustra, reconhecido torturador nos tempos de chumbo: identidade com os porões da ditadura e não com os militares que vertebravam o regime ditatorial, embora muitos deles, inclusive os da cúpula, sabiam o que acontecia nos subterrâneos onde elementos como Ustra, Fleury, entre outros, operavam com desenvoltura.
Ou seja, Bolsonaro identifica-se com o que existe e existiu de mais apodrecido e retrógrado no terreno político.
No plano ideológico, sua identificação é com figuras como Olavo de Carvalho, conselheiro-mór, o mesmo que, do alto de seu pedantismo, em solo norte-americano, instruiu seguidores no Brasil, como tarefa prioritária, organizar um exército de milicianos para defender Bolsonaro e seu governo.
Na economia, sua identidade é com Paulo Guedes e a sua política que devasta a economia nacional, destrói os empregos e direitos sociais e aliena criminosamente o patrimônio público.
Na área externa, Trump é a cara-metade com quem pratica um alinhamento serviçal, abjeto e medíocre, gerando prejuízos de milhões de dólares na balança comercial brasileira, inclusive com os americanos.
Os mafiosos dos quais falamos no início desse texto, diferentemente dos bolsonaristas, não se propunham a assumir diretamente o poder, ainda que o tenham feito pontualmente em algumas localidades e no âmbito da Justiça, mas mantê-lo sob seu controle e, assim, preservar seus interesses: sonegação de impostos, formação de cartéis e milícias, corrupção, contrabando, extorsão, fraudes, tráfico de armas, tráfico de informações e de influências, etc, práticas criminosas cujos indícios, coincidentemente, poderiam ser apontadas no núcleo bolsonarista.
Mas o fato é que a máfia tinha um código de ética, ainda que para a consecução daquelas ilicitudes. Entre seus mandamentos destacam-se, entre outros, o de que os compromissos devem sempre ser honrados, a verdade deve sempre prevalecer quando solicitada uma informação e dinheiro e o patrimônio alheios não podem ser apropriados indevidamente, virtudes pouco ou nada encontradas no atual núcleo de poder no país.
Qual a ética do bolsonarismo?
A dos milicianos cujo método na política é o extermínio dos adversários?
A dos ultraliberais comandados por Guedes que se esmeram cotidianamente na produção de medidas para empobrecer os que vivem do trabalho e da produção em benefício da casta financeira a quem obedecem cegamente?
A do sociopata Olavo de Carvalho, usurpador contumaz da realidade?
Em menos de um ano, Bolsonaro se especializou na blindagem da família e dos amigos das graves denúncias que já surgiram até o momento.
O caso Queiroz continua em banho-maria, mesmo depois de descoberto o paradeiro do ex-assessor do então deputado estadual, Flávio Bolsonaro, hoje senador. Nesse episódio, a família e Bolsonaro receberam uma ajudinha do presidente do STF, Dias Toffoli, que acatou pedido do senador para suspender todos os inquéritos que têm como base dados sigilosos do COAF e da Receita Federal sem autorização judicial, todavia, antes disso, não foram poucas as manobras do presidente para manter o controle sobre esses órgãos para blindar o filho.
A negociata já conhecida no Paraguai como Itaipugate continua abafada. O governo daquele país foi denunciado por “alta traição” e “extorsão financeira” pelo presidente da ANDE, Pedro Ferreira, devido a ter compactuado com o empresário Alexandre Giordano, suplente de senador do PSL paulista, que fez lobby para extorquir mais de US$ 200 milhões do país vizinho, até 2023, e com a compra de energia de Itaipu por baixo do custo para venda desta energia com exclusividade em nosso país. Dono da Comercializadora Léros, Giordano afirmava representar a família Bolsonaro na negociata. Há fortes indícios de uma reunião ocorrida em março deste ano com o ministro da economia paraguaio, irmão do presidente paraguaio, na Embaixada do Paraguai, com o filho de Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
Agora, recentemente, foi o caso de outro amigo da família, o deputado Hélio Lopes Negão (PSL-RJ), considerado amigo íntimo e braço direito de Bolsonaro. Uma investigação da Polícia Federal contra o parlamentar é mais um motivo da guerra do ocupante do Planalto contra a instituição, em razão do inquérito em andamento que identificou crimes previdenciários. A alegação de que se tratava de um homônimo do deputado não durou algumas horas. O investigado é realmente o amigo de Bolsonaro.
Outra evidência da compulsão de Bolsonaro e seu entorno de controlar órgãos estratégicos aconteceu na demissão do secretário da Receita Federal, Marcos Cintra. A informação de que Cintra fora demitido por ter defendido publicamente a volta de um imposto assemelhado à antiga CPMF não convenceu ninguém, pois o próprio chefe imediato dele, Paulo Guedes, falara abertamente sobre a possibilidade do novo tributo. Cintra foi demitido por ter sido incapaz de blindar o órgão e proteger os integrantes da facção, denunciados ou investigados.
Que ética é essa?
Trata-se, visivelmente, de um governo despido de qualquer vestígio de integridade moral, que procura se manter pelo mais absoluto desrespeito à democracia, aos direitos e à soberania do país; e pela negação doentia às conquistas históricas no plano econômico, social e cultural.
O bolsonarismo não chega a ser, sequer, uma caricatura da máfia como a conhecemos historicamente.
Trata-se da expressão genuína dos que subsistiam nos porões da sociedade e que ganharam notoriedade e a luz do dia por uma circunstância única já abundantemente analisada.
Como seu tempo é curto, por razões óbvias (muitos já avaliam que Bolsonaro não consegue concluir seu mandato), é necessário acelerar o processo de desmonte civilizatório da sociedade brasileira conquistado ao longo de quase um século.
O que não percebem é que avança com a mesma (ou mais) intensidade, a resistência e a possibilidade de nos livrar dessa tragédia!
(*) Jornalista, foi editor-chefe do HP.