Este texto foi elaborado pelo Observatório Internacional da Fundação Maurício Grabois (FMG). Devido à importância e atualidade do assunto, resolvemos reproduzi-lo, para informação e discussão dos nossos leitores
Como uma daquelas grandes coincidências da história, as primeiras palavras sobre o que viria a ser a Nova Rota da Seda, cujo nome oficial é Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), foram proferidas pelo presidente Xi Jinping num dia 7 de setembro, mesmo dia em que se celebra a independência brasileira. O ano era 2013, quando o Brasil ainda começava a ter que lidar com os efeitos amargos do uso eleitoreiro das jornadas de junho daquele ano, que abririam as portas para um Cavalo de Troia. O desdobramento de tal movimento apearia um governo eleito através de um golpe parlamentar (em 2016), vulnerabilizando as tentativas de autonomia do país e levando o Brasil à pior recessão econômica de sua história.
Em contraste, a China, naquele mesmo dia, a partir do discurso de Xi na Universidade de Nazarbayev, no Cazaquistão, em pleno coração da Ásia Central, descortinava o esboço de uma proposta para levar adiante a coordenação de políticas, a integração de infraestrutura, o adensamento comercial, a integração financeira e o estreitamento de laços, para unir os países entre Ásia e Europa, naquela região que anteriormente fora a Rota da Seda. No mês seguinte, falando no parlamento indonésio, o presidente Xi enfatiza que a iniciativa que estava sendo proposta seria mais ampla que a Ásia Central e incluiria também a união marítima entre países para prosperidade mútua. No entanto, seria dois anos depois, em 2015, que a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China (NDRC, na sigla em inglês), junto com o Ministério do Comércio Exterior e o Ministério das Relações Exteriores, publicariam um documento fundador da BRI denominado “Visão e Ações para Promover a Construção Conjunta da Faixa Econômica da Rota da Seda e da Rota Marítima da Seda do Século XXI”.
Ao contrário da maioria dos acordos de livre-comércio ou de defesa mútua que possuem um texto único, legalmente vinculante, para participação dos países que desejarem e forem aceitos, a Iniciativa Cinturão e Rota se caracteriza por uma forma mais fluida de acordo e vinculação. Os países ou organismos multilaterais participam da BRI por meio de Memorandos de Entendimento com prioridades para a cooperação com a República Popular da China. Entre os princípios que estão contidos nestes Memorandos estão o da autodeterminação e da cooperação para o bem comum. Ou seja, isso não cria nenhuma supressão de soberania, não gera amarras ou alinhamentos diplomáticos obrigatórios. Ao contrário, é justamente sua flexibilidade e decisão conjunta dos países acerca dos investimentos a serem realizados que explica a rápida expansão da BRI, o que refuta o discurso atual de que há uma pretensa polêmica entre adesão ou sinergia. Ora, para além dos eufemismos, o acordo é flexível e a decisão é conjunta, se trata, pois, de cooperação.
Por isso, mais de 150 países já participam de tal iniciativa, sendo 17 deles na União Europeia. Também vários países membros de organização de cooperação militar com os Estados Unidos, tais como membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) também firmaram tais memorandos com a China, passando a fazer parte da BRI. Na América do Sul, quase todos os países tinham decidido participar até 2023, e com a decisão da Colômbia em 2024, somente Brasil e Paraguai continuam fora da Iniciativa, sendo que o Paraguai não reconhece a República Popular da China, mantendo desde longa data relações diplomáticas com o governo estabelecido em Taipei. Nestes 11 anos, de Nova Rota da Seda os projetos desenvolvidos sob o âmbito desta Iniciativa envolveram investimentos superiores a 1 trilhão de dólares.
O Brasil e a China comemoram, em 2024, 50 anos de relações diplomáticas frutíferas. Há 30 anos elas alcançaram o nível de Parceria Estratégica e, com a criação da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN), em 2004, os dois países se uniram em 2006 no BRIC, e o nível das relações bilaterais Brasil-China foi elevado ao grau de Parceria Estratégica Global em 2012. Na recente reunião do BRICS Plus, este confirmou sua vocação para ser a base principal para um reordenamento mundial multipolar em prol de projetos autônomos de desenvolvimento soberano.
Atualmente no Brasil há um debate público, ainda que tímido, sobre a oportunidade e conveniência de participar da Nova Rota da Seda. Além da já concretizada participação de vários países, especialmente de quase todos os vizinhos sul-americanos, há argumentos econômicos e políticos que fundamentam as opiniões que são proferidas sobre o tema. Num momento em que a integração econômica tem deixado de ser a única preocupação relevante para fundar os atos das relações internacionais, especialmente dos países hegemônicos, ressurge o protecionismo e a questão da disputa geopolítica, com Estados Unidos e seus aliados buscando reduzir o adensamento das relações com a República Popular da China ao mesmo tempo em que lutam para impedir seu acesso às tecnologias mais avançadas. Tal disputa geopolítica tem sido um dos principais argumentos utilizados no Brasil, pelos opositores da participação brasileira na Iniciativa, para arguir que não seria interessante o país participar da BRI, pois isso poderia atrair o descontentamento e até mesmo a oposição dos Estados Unidos, um também importante parceiro comercial brasileiro e maior potência militar do mundo atualmente.
Deve-se contraditar que as dezenas de países que já participam da BRI, muitos deles pequenos e bem mais frágeis, não foram tão receosos. Ademais, exercer protagonismo internacional implica fazer escolhas, sabendo de suas implicações. Não se trata de alinhamento ideológico, mas sim de avaliação sobre os benefícios à posição brasileira no cenário internacional e às contribuições ao seu desenvolvimento nacional. Num mundo em transição, com diversos focos de conflito e tensão, real e potencial, isso é ainda mais delicado. Contudo, é preciso clareza dos próprios interesses nacionais, firmeza e assertividade para quem quer exercer alguma liderança, inclusive em órgãos importantes como o BRICS Plus ou como candidato a membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Nesse contexto, o Observatório Internacional da Fundação Maurício Grabois (FMG), espaço de reflexão e sistematização de conhecimento mantido pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), com este relatório-síntese, participa do debate e apresenta os elementos que considera mais importantes para essa discussão. Partindo da centralidade do Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, por meio do qual se pretende que o povo brasileiro alcance a elevação substancial do seu padrão de vida material e espiritual, e percorra o caminho rumo ao Socialismo em nossa pátria, a FMG juntou especialistas no assunto e sistematizou o debate de modo a apresentar as questões que avalia serem as mais prementes que devem pautar a decisão brasileira. Trata-se de subsídio que ora se apresenta aqui para a sociedade brasileira, especialmente aos tomadores de decisão na liderança do Estado Brasileiro, para que seja utilizado como balizador da discussão sobre a oportunidade e conveniência da participação brasileira na Iniciativa Cinturão e Rota.
A situação da China mudou muito desde o início da Reforma e Abertura, em 1978, a qual fora inicialmente liderada pelo presidente Deng Xiaoping. De uma economia ainda relativamente atrasada em comparação às maiores potências capitalistas, o país se tornou uma das duas grandes potências econômicas mundiais em poucas décadas. Neste sentido, o sucesso das políticas de Deng mostrou também suas limitações temporais, com esgotamento de várias iniciativas, o que fez o presidente Xi Jinping propor novas soluções para um novo tempo, no início da década passada. Tal tentativa da China de mudar o seu patamar de desenvolvimento no início dos anos 2010, após a crise do subprime, causou grande consternação nos Estados Unidos, os quais acreditavam que aquele país se tornaria mais subordinado a partir do acesso à Organização Mundial do Comércio. Destarte, o momento atual é de grande fricção da potência estadunidense com o gigante asiático e também com a Rússia. E neste sentido, os EUA têm pressionado diversos parceiros e aliados a se afastarem das relações com a China, de modo até mesmo a causar prejuízo a tais aliados, como foi o caso da empresa holandesa ASML, que viu seus lucros despencarem ao se recusar a exportar máquinas para a fabricação de chips aos chineses.
A discussão sobre a participação do Brasil na Nova Rota da Seda se dá nesse contexto de rivalidade geopolítica internacional. Estando o nosso país na América Latina, região em que os EUA exercem forte hegemonia, há temor de esgarçamento de relações com aquele país, o qual além de ser importante parceiro econômico teria grande poder de desestabilização política e militar, fato já visto em várias situações regionais. Sobre a prospectiva da situação geopolítica não é de se esperar arrefecimento das posições estadunidenses num horizonte visível, uma vez que os sinais são claros de preparação para um longo período de rivalidade. Um dos termômetros dessa realidade são os artigos publicados pela intelligentsia estadunidense da área de relações internacionais e defesa nas revistas de debates de alto nível daquele país, tais como a Foreign Affairs. Tal conjuntura não é complicador tão somente nas relações externas do Brasil: a eventual participação brasileira na BRI poderia ter sido discutida de forma aberta por ocasião da visita do presidente Lula à China em março de 2023, no entanto, a polarização política interna, com a extrema-direita alimentando um temor contra a potência asiática num contexto em que tentara aplicar um golpe de Estado em 8 de janeiro do mesmo ano, foi mais um dos fatores que alimentou a cautela com a análise de conveniência e oportunidade.
Ainda sobre a questão geopolítica, é preciso ter uma análise sóbria sobre eventuais implicações de uma participação do Brasil na BRI. Em que pese muitos avaliarem que a participação brasileira na Nova Rota da Seda pudesse ser entendida como um alinhamento e isso viesse a criar fricções com os EUA que pudessem vulnerabilizar a estabilidade brasileira, é de se ponderar que a BRI não possui dispositivos de defesa mútua ou mesmo de alinhamento político, havendo ali foco na cooperação para o desenvolvimento. Na verdade, o Brasil é parte do questionável acordo de defesa mútua da qual também faz parte os EUA, e não existe neste momento qualquer discussão elevada para sua denúncia. Ao decidir participar da BRI, o que o Brasil estaria fazendo é manter sua tradição de independência e autonomia nas relações exteriores, de largas tradições, dialogando com diversos polos com fulcro na autodeterminação nacional e na não ingerência nos assuntos internos de outros países. Aliás, países com excelentes relações com os EUA como Áustria, Chile, Costa Rica e Arábia Saudita, inclusive a maioria dos países sul-americanos já citados, já fazem parte da Iniciativa sem que isso tenha de fato estremecido as relações com os EUA.
Por outro lado, a rivalidade geopolítica entre EUA e China tem produzido situações em que uma eventual participação na BRI tende a beneficiar o Brasil. Trata-se da tentativa estadunidense de se desvencilhar da complementariedade econômica direta com a China buscando o nearshoring como alternativa. Trata-se de estratégia em que, em vez de comprar produtos chineses, os EUA buscam alternativas em países mais próximos ou mais amigáveis. Países como o México e Vietnã têm se tornado grandes beneficiários desta política. No entanto, não faltam exemplos também no Brasil. Uma grande fabricante chinesa de máquinas pesadas tem utilizado sua fábrica no Brasil como plataforma de exportações para o mercado estadunidense. Como as tarifas e restrições dos EUA possuem algumas limitações operacionais próprias para não inviabilizar totalmente o comércio, brechas como essas podem ajudar ainda mais o Brasil a atrair empresas chinesas para as quais não haja restrição de venda naquele mercado. Para isso, a participação do Brasil na Nova Rota da Seda pode ser de grande valia, e tal potencial de geração de empregos, renda e transferência de tecnologia não pode ser desprezado.
A questão da eventual participação do Brasil na BRI deve ser pautada pelo interesse nacional e pela perspectiva de construção e implementação de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento para o país. Consequentemente, é necessário negociar com a China termos favoráveis ao nosso país. Em diversos países, a participação na BRI levou ao aumento do investimento chinês bem como ao adensamento de comércio. No caso do Brasil, dado o tamanho de sua economia e sua importância geopolítica, essas vantagens não podem se dar de forma diminuta. Ao contrário, o Brasil precisa fazer uma proposta ousada para apreciação pelo lado chinês. No entanto, é possível que se houver mais adiamentos possa se perder o bom momento para uma discussão em que haja vantagens reais para o lado brasileiro. Do mesmo modo, não se pode pensar numa eventual participação na Iniciativa chinesa sem que o Brasil tenha claro seus interesses e os coloque de forma clara e com metas palpáveis para o parceiro chinês. O Brasil é um grande país no cenário regional e mundial, e isso lhe permite negociar em patamares elevados, mas para isso é preciso que o Brasil saiba o que quer.
Assim, os especialistas reunidos pelo Observatório Internacional da FMG propõem que o Brasil não se furte a discutir uma eventual participação na Nova Rota da Seda. Mas que faça tal discussão em nível elevado, com foco em ganhos mútuos, com clareza dos interesses brasileiros e buscando maximizar as oportunidades dali derivadas.
Neste sentido, há quatro importantes temas a serem tratados com a China:
1) intensificar a cooperação em Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI), envolvendo instituições públicas e privadas de CTI, bem como empresas, de Brasil e China, sobretudo em áreas estratégicas como as energias renováveis, biotecnologia, bioeconomia, agricultura regenerativa, transportes, aviação civil, economia de baixo carbono e as novas tecnologias de informação e comunicação, e elegendo prioridades, como a inteligência artificial, por exemplo. A experiência do acordo do Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS), assinado em 1993, demonstra que essas poderiam ser experiências bem sucedidas;
2) definir e implementar projetos de investimento, em parceria com a China, para dinamizar, reforçar e complementar a estratégia brasileira de reindustrialização em novas bases tecnológicas, a Nova Indústria Brasil (NIB), em suas seis missões, que incluem os setores de infraestrutura, moradia e mobilidade, agroindústria, complexo industrial de saúde, transformação digital, bioeconomia e transição energética, e tecnologia de defesa;
3) criar as condições para o aumento da complexidade do comércio bilateral, incluindo o incremento de exportações brasileiras de produtos de maior valor agregado;
4) promover a integração sul-americana, com a participação chinesa e de sua capacidade de projetamento e de financiamento, principalmente na construção de infraestrutura, mediante a definição de projetos prioritários, incluindo a compra de insumos no Brasil e na região sul-americana.
Ou seja, o Brasil precisa ter clareza sobre o papel da parceria estratégica global com a China no seu Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, e saber replicar, sem alinhamentos automáticos, estratégias que o próprio Brasil utilizou em sua arrancada industrial, adaptadas ao tempo, incluindo joint ventures, compromissos com transferências tecnológicas, obrigações com relação a investimentos e inovação, garantindo da mesma forma as condições setoriais de desenvolvimento e o acesso a novas tecnologias.
A partir do estabelecimento dessas grandes prioridades, é preciso, a partir de um projeto brasileiro de aceleração do desenvolvimento e de busca de autonomia nacional e de integração regional, fazer o desdobramento em iniciativas concretas com prazos e metas. Sabe-se que os Memorandos de Entendimento assinados no escopo da BRI são geralmente sucintos e tratam de forma genérica de cooperação. É possível, no entanto, ali já priorizar os setores mais importantes, de forma ampla e, posteriormente, nos planos de trabalho ter como foco aumentar o detalhamento a fim de tornar realizáveis os projetos acordados. Essa deve ser uma estratégia do Brasil numa discussão de participação na BRI: se concentrar nos interesses brasileiros, e para isso é fundamental que o Estado brasileiro, bem como os setores empresariais, tenha consciência de que é possível e desejável utilizar essa oportunidade como uma alavanca para o desenvolvimento sustentável e para a busca de maior autonomia nacional. Para isso, é preciso superar algumas travas mentais que foram postas em parte da liderança brasileira de vários setores, as quais acreditam que é sábio abdicar de qualquer busca de estratégia e planejamento para o desenvolvimento do país. Ao contrário, é preciso demonstrar a necessidade do desenvolvimento sustentável que diminua as desigualdades sociais e regionais, e isso só pode se dar com uma estratégia ousada de diversificação de oportunidades.
Por fim, é preciso calcular o eventual custo da não-participação do Brasil na BRI. Como tudo em política, existe um timing e implicações. O Brasil deixaria de participar do projeto que é a mais importante iniciativa diplomática de Pequim, parceiro como o qual se tem grandes sinergias. O Brasil se veria fora de Iniciativa que envolve mais de 150 países, e que é promovida por um parceiro estratégico do BRICS Plus. O Brasil não faria parte de importantes decisões sobre projetos efetivos de infraestrutura relacionados à integração sul-americana, já que, à exceção do Paraguai, todos os seus vizinhos da região já participam da BRI. Por último, mas não menos importante: até que ponto a não participação do Brasil garantiria a não ingerência dos EUA em assuntos domésticos brasileiros? Em relações internacionais, respeita-se aqueles que são altivos na defesa do próprio interesse nacional.
Enfim, inequivocamente é uma decisão tão complexa quanto importante. O fato é que a tomada de decisão, a favor ou não, terá implicações. E, claro, nosso projeto nacional depende da clareza acerca da direção das transformações internacionais. Historicamente, a inserção internacional tem sido determinante na trajetória dos países. Com o Brasil não foi, não é, e não será diferente.