O Brasil é nosso: construir um país confortável para o povo

Diretores do CNAB cantam o Hino à Negritude, do professor Eduardo de Oliveira, na comemoração do 13 de Maio de 2018 (Foto: Ronaldo MT)


[Reproduzimos, abaixo, devido ao seu interesse para a luta de nosso povo, a tese que serviu para discussão no V congresso do Congresso Nacional Afro-Brasileiro (CNAB), realizado em São Paulo no último dia 27, que elegeu presidente Irapuan Ramos Santos. (C.L.)]

1. Em 30 anos de luta, através de quatro congressos, com a participação de seu fundador, Eduardo de Oliveira, o Congresso Nacional Afro-Brasileiro afirmou a identidade negra como a parcela essencial da identidade nacional, brasileira, desde a época do tráfico negreiro e da escravidão – ou seja, desde a Descoberta, até os dias de hoje.

2. Essa identidade nacional, construída em mais de 500 anos, estabeleceu-se através dos acontecimentos históricos cruciais que formaram o país chamado Brasil: a resistência e vitória sobre a Invasão Holandesa; a cultura da cana e a fabricação do açúcar; a busca e mineração de metais e pedras preciosas no interior, com a expansão do território; a luta pela Independência e superação do estatuto colonial lusitano; os primórdios da industrialização do país; a luta pela Abolição da Escravatura e pela República; a luta contra as oligarquias, sobretudo a oligarquia cafeeira, e a Revolução de 30.

3. Nas teses para os congressos anteriores de nossa entidade, definimos os pilares de nossa existência, intrinsecamente ligada à cultura, ao Estado e à economia brasileiras, desde o aprisionamento de nossos antepassados na África até nossa transformação em população genuinamente brasileira.

4. Aqui, cabe a observação de que os africanos que chegaram ao Brasil, desde o século XVI, não permaneceram – muito menos os seus descendentes – africanos. Pelo contrário, formaram uma civilização brasileira, solidificada pela mestiçagem, signo da formação do país.

5. Assim, é inútil opor, como incompatíveis, as duas vertentes, negras ou mestiças, do movimento libertador de nosso povo – aquela representada pelos que se integraram à sociedade oficial existente, lutando por sua transformação, e aquela, externa à sociedade oficial, representada pelos quilombos. Por que um Luiz Gama e um Zumbi dos Palmares seriam opostos? São vertentes complementares, que, inclusive, se interligaram para ocupar todo o espaço que havia, dentro do Brasil, para elas.

6. É correta, nas nossas teses anteriores, a observação – já feita por muitos, inclusive por Joaquim Nabuco, em 1883 – de que “tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar”.

7. Entretanto, isso não tornou o nosso povo – vale dizer, os miscigenados descendentes de africanos – donos daquilo que construíram, donos do país que edificaram. Em síntese, não os tornou felizes. Foram expropriados daquilo que construíram, despojados da riqueza por eles mesmos produzida, e, até mesmo, nos primeiros anos após a Abolição, excluídos da força de trabalho.

8. Nesse sentido, é justo dizer que, após a Abolição, os descendentes de africanos não foram promovidos a cidadãos plenos da nacionalidade. Isto, no entanto, não diminuiu a grandeza da conquista da Abolição, nem nos transformou em vítimas ou marginais. Pelo contrário, tivemos orgulho de nossa condição de brasileiros, representado pela Abolição – e devemos ter orgulho desta condição, mais que quaisquer outros cidadãos.

9. As revoltas que se seguiram, inclusive a Revolta da Chibata, mostraram a nossa condição principal de brasileiros – e isso é ainda mais evidente nas revoltas tenentistas e na Revolução de 30. Toda a base das mudanças que houve no Brasil, contra o imperialismo, desde antes de 1930 até depois de 1954, quando houve o martírio do presidente Getúlio Vargas, foi composta principalmente por negros e mestiços – isto é, pelo povo brasileiro.

10. A política da Revolução de 30, a começar pela lei que reservava dois terços das vagas nas empresas a trabalhadores brasileiros, foi de promoção dos negros e mestiços que formavam o povo brasileiro. Da mesma forma, a promoção de modalidades culturais de componente eminentemente afro-nacional, desde o samba (e outras formas musicais) até a capoeira, que foi legalizada pelo presidente Vargas.

11. Apesar disso, após o golpe de 1964 e a instalação da ditadura pró-imperialista no país, nosso povo – e, portanto, a população de negros e mestiços – sofreria brutais retrocessos, a começar pelo arrocho salarial, antagônico a toda a política de valorização do trabalho, implantada desde 1930.

12. Mas estivemos à frente – e como base de massas – das grandes manifestações que derrubaram a ditadura, tanto das greves operárias que abalaram o regime autoritário, quanto das concentrações que exigiram eleições diretas e a volta da democracia. Podemos dizer, com o extremo rigor da verdade: nós derrubamos a ditadura que, 21 anos antes, fora instalada contra nós.

13. A Constituição de 88 consagraria as conquistas de nossa longa luta. Infelizmente, e muito em função dos acontecimentos internacionais – dos quais o principal foi a queda do socialismo na União Soviética -, não conseguimos voltar aos trilhos do desenvolvimento nacional. Pelo contrário, as primeiras eleições diretas conduziram ao poder um réprobo, um degenerado – e o Brasil foi forçado a seguir pelo caminho do neoliberalismo, isto é, da mais estúpida submissão à matriz imperialista, com a imposição da fome, da miséria e da privatização ao nosso povo.

14. Apesar de construir um país, e um grande país, com seu território e sua cultura, ao longo de cinco séculos, os descendentes de africanos ainda não se sentem, hoje, confortáveis neste próprio país. A negativa desta realidade, com afirmações do tipo “não existem raças humanas, portanto não existe racismo”, é particularmente repugnante. O fato de não existirem raças humanas, torna o racismo uma aberração maior ainda. No Brasil, o racismo é resultante da escravidão – e uma forma do imperialismo impor sua dominação sobre o povo, inculcando, inclusive nele, uma suposta e falsa inferioridade. Mas não é apenas o racismo que torna a nossa vida desconfortável. São as próprias condições gerais de vida da população que o fazem. Os afrodescendentes construíram a Nação, mas não sentem esta Nação como sua. Exatamente por isso, é nesse sentido que precisamos avançar.

15. O Brasil é nosso – e, se não for, tal como pretendem os traidores da Pátria, aqueles que prestam genuflexão aos interesses imperialistas norte-americanos, o Brasil é nada. Entretanto, cada vez mais, essa infâmia fascista é desmascarada diante dos olhos do povo. Mas o Brasil é nosso e precisamos assumi-lo, por inteiro, ao invés de aceitar submissamente ou pretender que nos cabe meramente um modesto recanto dentro do país. Nós somos maioria e não cabemos dentro de nenhuma camisa de força.

16. Assumir o país significa assumir a nacionalidade brasileira como nossa. O que formamos aqui não é uma mera transplantação da cultura (muito menos da economia ou do Estado) que existia na África. É uma nova cultura, assim como uma nova economia e um novo Estado.

17. Nesta época em que nossa economia e nosso Estado foram devastados desde fora, assumir a nossa nacionalidade significa recuperar nossa economia e nosso Estado. Isto é, tornar, outra vez, nacional a nossa economia e o nosso Estado. Sem isso, inclusive, é impossível manter e resgatar a cultura nacional, hoje também sob ameaça externa.

18. Esta é a única forma de tornar o país confortável para nós, negros e mestiços, afrodescendentes. Assumindo a nacionalidade como nossa. O combate à opressão e exploração imperialistas – isto é, ao colonialismo e ao neocolonialismo – define essa nossa conquista. Só podemos nos sentir confortáveis naquilo que é nosso. Que este país seja nosso – porque ele é nosso.

19. Nós somos milhões – no Brasil, e, mesmo, no mundo. O imperialismo, como demonstra o recente ataque de Trump ao nosso país, nunca foi tão frágil, apesar da sua aparente agressividade. O futuro, portanto, é nosso, assim como esta Nação.

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