ELDER VIEIRA DOS SANTOS (*)
Múmia fosse, Machado de Assis estaria hoje a arrastar mais de um século de bandagens pelos corredores da Academia Brasileira de Letras, ou a empoar de cinzas os cômodos de seu sobrado no Cosme Velho. Como seu corpo mestiço está disperso em átomos sob uma campa do cemitério carioca de São João Batista, memoramos hoje o natalício do gênio – o maior da prosa de ficção em Língua Portuguesa; perpétuo paradigma da literatura brasileira e de além-mar.
Machado de Assis nasceu José Maria aos 21 de junho de 1839, no morro do Livramento, de mãe portuguesa e pai brasileiro preto, ele também filho da mestiçagem. Educado, de início, por um pároco, muito cedo se meteu com as letras. Escreveu quatro romances na chave romântica – Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena e Iaiá Garcia -, por meio dos quais afia as armas com que nos ofertará, n’outra fase, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.
Da primeira fase, a romântica, destaco A Mão e a Luva, que o excerto seguinte justifica:
“A manhã daquele dia trajava um manto de neblina cerrada, que o nosso inverno lhe pôs aos ombros, como para resguardá-la do rigor benigno da temperatura, manto que ela sacudiu dali a nada, a fim de se mostrar qual era, uma deliciosa e fresca manhã fluminense”.
Como se vê, Machado já mostrava nesse seu segundo romance predileção pela alegoria como figura de linguagem, ao tempo em que também dava as primeiras notícias de seu estilo, marcado pela contenção, pela economia de recursos e pelo distanciamento, e que lhe propiciou a observação acurada de personalidades e situações.
Sua inacreditável alquimia viria plenamente à luz, no entanto, com as narrativas, longas e curtas, de sua segunda fase, inaugurada pelo Brás Cubas e extremada em Dom Casmurro e inúmeros contos. Ao lermos atentamente as peças desta fase, vemos, num mesmo cadinho, a mistura entre a exata medida da frase, dimensão expressiva do texto, e o lavor refinado das imagens conotativas, sua dimensão representativa.
Foi com essa fórmula que Machado conjurou o monstro dos monstros da literatura universal: Bentinho, de Dom Casmurro – abismo de egoísmo possessivo, que levou à destruição Capitu e o enigma intraduzível de seus olhos. Nossa tradição machista mais se ocupou com especular se a vítima “traiu” ou não seu algoz do que atentar para a sutil construção machadiana da gênese e desenvolvimento do que hoje classificaríamos como um psicopata.
Esse tema, o do inexplicável destruído pela “psicose” das convenções aristocráticas, Machado já abordaria em Helena, romance da primeira fase de sua carreira. Nele, o feminino encarnou, como encarnaria em outras obras, o frescor da novidade e o inusitado da inteligência, enquanto o masculino foi expressão da obtusidade provinciana de uma sociedade com fumaças de Europa.
Essa capacidade de descer a camadas psíquicas mais profundas dos personagens fez de Machado o lídimo desvelador da alma e das taras, não somente de tipos representativos da sociedade, mas, sobretudo, das elites brasileiras.
E aqui chegamos ao título deste artigo.
Machado faleceu em 1908, cem anos após a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Nasceu sob o Segundo Reinado e morreu no Brasil República. Escreveu parte de sua obra sob o Império regido por Pedro II. De Quincas Borba em diante, escreverá sob o regime republicano.
A tradição marxista reza que as contradições de um dado tempo engendram os gênios destinados a resolvê-las. Essa máxima parece se confirmar no Bruxo do Cosme Velho. Machado de Assis cresceu como sujeito histórico e literário num Brasil que vivia contradições desde o Descobrimento, mas que as viu se acirrar desde a chegada de João VI. Brasil que se urbanizava, se modernizava, se desenvolvia, que se conscientizava de seu peso no concerto internacional, mas que vivia preso ao espírito e às convenções de uma província colonial por obra e desgraça de uma elite tacanha, que não fazia, e nunca faria jus, nem ao povo, nem a seus melhores intelectuais, nem a determinados homens de Estado.
Machado capturou nas teias de sua prosa essas contradições e soube dar a elas o tratamento merecido. Sobre a transição da Monarquia para a República, escreveu Esaú e Jacó, obra primorosa em que faz, de novo por intermédio da alegoria, o inventário de uma época e de sua elite.
Pedro e Paulo, irmãos gêmeos, brigavam entre si desde o útero materno de Dona Natividade. Crescidos, apaixonam-se pela mesma donzela, Flora, que também nutre por ambos imenso interesse. Lançando mão de um tema que lhe é muito caro, o do espelho, Machado faz, de Pedro, a Monarquia; de Paulo, a República; de Flora, a Pátria, e, dessa tripla confrontação, apreende o significado profundo de uma Nação cindida e em processo de transição no verdor de seus anos. Ao fazê-lo, deposita, grânulos, germes de reflexões sobre o trajeto percorrido pelo País e os rumos a tomar.
Machado, por intermédio do personagem Conselheiro Ayres, seu alter ego, nem aplaude, nem condena a República, tampouco lamenta a Monarquia. Seu objeto é o Brasil. Seu alvo, as elites.
Perdoem-me o textão, preclaro leitor, caríssima leitora. É que Machado, vocês puderam ver, é do tamanho do Brasil, e cabe como uma luva nestes tempos em que nossa combalida República é aviltada ainda mais do que outrora.
Em tempos assim, a experiência sugere que invoquemos, sempre, o espírito dos grandes. Fosse um egípcio, invocaria algum faraó. Sendo brasileiro…
– Evoé, Machado!
(*) Publicado originalmente em 21/06/2017 no Portal Vermelho.
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