CARLOS LOPES
(HP nº 2.841, 26/02/2010)
Antes de prosseguir, ajustemos contas em três questões. A primeira é um erro nosso – mas a favor dos “multinacionalistas” & cia., portanto, nada que altere a argumentação (muito menos os dados), exceto a nosso favor. As outras são duas ilusões econômicas, sempre mais perniciosas – porque fazem muito mais gente sofrer – do que as ilusões psicopatológicas.
No fim da primeira parte deste artigo publicada no HP de 19/02/2010, escrevemos que “existe, realmente, uma diferença entre enfrentar as multinacionais americanas, europeias e japonesas dentro ou fora do Brasil, além do fato de que aqui existe o Estado brasileiro, portanto as condições políticas são imensamente melhores para as empresas brasileiras. A diferença é que, dentro do Brasil, o estoque de investimento nacional equivale a 81,3% do PIB, enquanto o estoque estrangeiro equivale a 18,3% do PIB. Enquanto isso, no exterior, 10 países têm ‘investimentos diretos’ em outros países equivalentes a 8 vezes o nosso PIB – e o estoque de um só deles equivale a duas vezes o PIB brasileiro”.
O valor do estoque de “investimento direto estrangeiro” (IDE), pelos dados oficiais, realmente equivale ao valor de 18,3% do PIB brasileiro de 2008. No entanto, isso não quer dizer que o valor do estoque de investimento nacional seja equivalente ao valor de apenas 81,3% do PIB. Evidentemente, ele é muito maior do que isso, pois reúne todo o investimento e reinvestimento nacional (menos desinvestimento) desde que o país foi descoberto – ou, pelo menos, desde que o Brasil proclamou sua independência política. Ao acompanharmos a comparação que a UNCTAD faz entre valor do estoque de IDE e valor do PIB, acabamos por chancelar – e expor – a debilidade dessa forma de mostrar a magnitude relativa dos valores econômicos: trata-se de uma comparação entre coisas distintas. O PIB se refere à produção, ao valor dos serviços e mercadorias produzidas dentro do país durante um ano; já o “estoque de investimento” refere-se ao patrimônio – ao valor da propriedade do capital, historicamente acumulado, das empresas. Portanto, seu valor total é muito maior do que o valor do PIB. De onde se pode concluir que, apesar de toda a desnacionalização, estamos no nosso país – uma conclusão demasiado pedestre, mas não faz mal lembrar disso de vez em quando…
FUNDAMENTO
Passemos agora às ilusões, na forma como elas são expressas pelos apóstolos da multinacionalização da economia brasileira.
1) O IDE é fundamental para o nosso desenvolvimento. A China está conseguindo 8 ou 10% de crescimento anual graças ao IDE. Por que não podemos conseguir o mesmo?
Se o IDE fosse tão fundamental para o nosso desenvolvimento, as multinacionais não viveriam se abastecendo de dinheiro no BNDES – ou seja, mesmo quando estão supostamente investindo, o fazem com recursos nossos, nacionais e públicos, e não com recursos delas.
A China não está conseguindo 10% de crescimento devido ao IDE. O estoque total de IDE dentro da China, em 2008, é, segundo a UNCTAD, US$ 378 bilhões – o que equivale a 8,7% do PIB chinês.
Quanto à entrada anual de IDE, ela tem se mantido em bem menos de 10% do investimento total (Formação Bruta de Capital Fixo – FBCF) da economia chinesa. Mais precisamente: 8,3% (2003); 7,7% (2004); outra vez 7,7% (2005); 6,4% (2006); 6% (2007); e, outra vez, 6% da FBCF em 2008 (cf. UNCTAD, “Inward FDI flows as a percentage of Gross Fixed Capital Formation, by host region and economy, 1970 – 2008”).
Mas voltemos à “fundamentalidade” do IDE. Além da falsificação da realidade, um dos modos mais banais de fugir a uma questão é torná-la uma generalidade vazia. Evidentemente, estamos discutindo aqui a invasão de IDE desde 1995 no Brasil – e não qualquer “investimento direto estrangeiro” realizado em qualquer país ou em qualquer época, ou sob qualquer política. Ao arremessar o problema para a generalidade, pode-se fazer qualquer coisa com ele, até mesmo transformar Lenin e os bolcheviques em fervorosos crentes do IDE, por terem estabelecido uma política para o investimento estrangeiro na URSS durante a Nova Política Econômica (NEP).
Trata-se aqui de situações e de países concretos. A questão é a política para o IDE em cada caso, em cada situação – e em cada país.
Por exemplo: o maior estoque de “investimento direto estrangeiro” do mundo está dentro dos EUA (US$ 2,3 trilhões em 2008). Perto dele, os US$ 378 bilhões de estoque dentro da China são um mero troco. No entanto, não há perigo de que a economia norte-americana seja desnacionalizada por causa disso, ou de que o capital nacional seja esmagado pelas multinacionais de outros países. E não apenas porque a propriedade em mãos norte-americanas é colossalmente superior, mas porque, da mesma forma que outros países (a própria China, por exemplo), os EUA não permitem que o “investimento direto estrangeiro” compre ou faça qualquer coisa que lhe dê na telha. O governo e o Congresso norte-americanos determinam o que estrangeiros podem ou não comprar – como aprenderam os japoneses e os sauditas.
Esse investimento “direto” estrangeiro de US$ 2,3 trilhões nos EUA serve perfeitamente à casta econômica dominante naquele país. De certa forma, é uma “americanização” dos recursos de outros países e não uma desnacionalização da economia dos EUA – apesar de que esse estoque equivale a 16% do PIB norte-americano (v. base de dados da UNCTAD e a última edição do seu relatório anual, “World Investment Report 2009”).
A diferença entre o IDE nos EUA e o IDE no Brasil é, fundamentalmente, àquela, já referida, entre um país imperialista e um país que não é imperialista. A dinâmica não é a mesma. Aliás, é oposta.
Mas é forçoso reconhecer que os EUA estão certos em não deixar o IDE à solta dentro do país, estabelecendo os limites em que ele pode estar presente – ou seja, os EUA dirigem o IDE, não são dirigidos por ele.
A mesma coisa faz a China: a produção das multinacionais nesse país não está dirigida para o mercado interno, mas para a exportação; a lei chinesa não permite que capitais externos entrem e saiam quando bem quiserem – e não se reconhecem as patentes das multinacionais (v. “O crescimento econômico e a competitividade chinesa”, de M.B. Nonnenberg, P.M. Levy, F. Negri e K.P. Costa, IPEA, ab./2008, pág. 20).
A figura da “clonagem” foi usada por Márcio Pochman para descrever parte desse processo: não são as fábricas das multinacionais que abastecem o mercado chinês, mas “clones” chineses dessas fábricas, além das indústrias chinesas que nada têm de clones. Em suma, os chineses tratam o mercado interno, como diz a nossa Constituição, como “patrimônio nacional” (art. 219) – e de uma forma mais rígida do que jamais pensaram os constituintes de 1988.
Nessas condições, o IDE pode ter papel positivo para a economia de um país, porque está submetido aos interesses desse país. O que determina esse papel positivo não é o IDE, mas a política que se tem para ele, considerando que “o fator determinante da capacidade de investimentos dos países é a dinâmica interna da economia. Na média, 90% da Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), o total dos investimentos públicos e privados dos países, é realizada com recursos próprios” (Antonio Corrêa de Lacerda, “O papel do investimento estrangeiro para os países”, nov./2006).
NADA
Já que citamos o professor A. C. Lacerda, autor de “Globalização e Investimento Estrangeiro no Brasil”, vejamos uma ilusão, combatida por ele, que, como se dizia antigamente, é de cabo de esquadra:
2) A hipervalorização do real seria um estímulo ao investimento, pois baratearia a importação de máquinas e equipamentos, tendo como consequência a “modernização” das empresas e o aumento da produtividade, logo, da competitividade dos produtos brasileiros.
Se fosse verdade, significaria não apenas a destruição completa do setor interno de máquinas e equipamentos, mas a renúncia eterna a produzir bens de capital, tornando-nos, para todo o sempre, dependentes dos países centrais. Porém, o mais importante é que tudo isso é falso:
“O câmbio valorizado diminui a competitividade dos produtos fabricados localmente relativamente aos concorrentes internacionais, seja no mercado internacional ou doméstico. Portanto, (….) inviabiliza a agregação local de valor e é um incentivo às importações de produtos prontos”.
Logo, importaríamos máquinas para nada produzir, pois a produção interna não poderia enfrentar os produtos prontos, que também seriam importados, até porque “…. esse verdadeiro ‘subsídio’ às importações não se restringe aos bens de capital e matérias primas, mas é estendido a toda a gama de produtos, inclusive de bens intermediários e consumo, desincentivando a produção no Brasil e, consequentemente, prejudicando a geração de empregos e salários, a cadeia local de fornecedores e prestadores de serviços, além da receita tributária” (Antonio Corrêa de Lacerda, “Câmbio, competitividade e IOF”, out./2009).
HIPERVALORIZAÇÃO
Detenhamo-nos, devido ao seu peso, na questão do câmbio.
A cotação média do dólar caiu de R$ 3,07 em 2003 para R$ 1,83 em 2008. Depois de aumentar para R$ 2,31 no primeiro trimestre de 2009, devido principalmente à troca de ativos, com preços ameaçados de soçobrar, por dinheiro, o dólar caiu outra vez – para R$ 1,74 no quarto trimestre.
Evidentemente, quanto mais baixa é a cotação do dólar, mais alta a do real, portanto, mais baratas ficam as mercadorias importadas – e mais caras, em relação a estas, ficam as mercadorias produzidas internamente.
Apesar da guerra cambial dos EUA contra os outros países, com sua super-emissão de dólares, ter-se tornado um pesadelo em todo o mundo a partir do último trimestre de 2008, o que piorou a situação em nosso país foi o fato do Banco Central (BC) estar hipervalorizando o real desde 2004. Eis uma descrição do câmbio no período imediatamente anterior à quebra do Lehman Brothers, portanto, antes do início da guerra cambial pelos EUA:
“… entre julho de 2007 e julho de 2008 a apreciação da moeda brasileira [em relação ao dólar] foi de 17%, frente aos 9,6% da nova lira turca, 8,6% do peso mexicano, 8,3% do rublo russo, 6% do ringgit malaio, 3,4% do peso chileno, 2,5% do peso argentino e 1,4% da rúpia Indonésia. Já o bath tailândes, o won coreano e a rúpia indiana sofreram depreciação no período (de, respectivamente, 11,5%, 9,9% e 5,3%). Na comparação com o euro, a apreciação foi de 5,2%, o que constitui uma adicional indicação de que a valorização da moeda brasileira não foi mero reflexo da depreciação da moeda-chave no mercado internacional, como alguns analistas têm argumentado” (Daniela Prates e Maryse Farhi, “A crise financeira internacional, o grau de investimento e a taxa de câmbio do real”, IE/Unicamp, jun./2009).
Como notam as autoras, “um regime cambial de flutuação pura, além de não levar ao ajustamento automático dos balanços de pagamentos, acentua a inter-relação entre taxa de juros e taxa de câmbio e a influência das decisões de portfólio dos investidores globais [isto é, a influência da especulação, sobretudo externa] sobre esses preços-chave” (Prates e Farhi, pág. 23).
No entanto, o que existe no Brasil é o chamado regime cambial de “flutuação suja” (do inglês “dirty float”), em que o BC intervém, comprando e/ou vendendo dólares. A flutuação “pura” seria aquela manipulada exclusivamente pelos especuladores privados, isto é, pelos grandes bancos privados – mas, no Brasil, o Banco Central é (ou voltou a ser, desde 2005) o maior cliente do “mercado de câmbio”.
Isso coloca na berlinda o seguinte fato: não foi somente através da alta taxa de juros que o BC artificialmente hipervalorizou o real, ao atrair, para dentro do país, bilhões de dólares sequiosos de ganhar mais e mais com esses juros. Também o fez através de gigantescas compras de dólares.
Para a maioria das pessoas, pareceria que as compras do BC no mercado de câmbio, ao aumentar o lado da procura, tinham o objetivo, e tiveram como efeito, impedir uma maior sobrevalorização do real, “enxugando” dólares, fazendo a oferta subir de preço – portanto, segurando, ao menos em parte, a desvalorização da moeda norte-americana.
Pois não foram quaisquer compras – o BC comprou US$ 21,5 bilhões em 2005; US$ 34,3 bilhões em 2006; e US$ 78,6 bilhões em 2007. Ao que se somaram as compras do Tesouro (US$ 9,3 bilhões em 2005; US$ 12,3 bilhões em 2006; e US$ 14 bilhões em 2007). Em três anos, as “intervenções” do BC e do Tesouro compraram US$ 170 bilhões (cf. no trabalho de Prates e Farhi, página 7, tabela 1, itens “a.2”, “b.2”, “c.1” e “d.1”).
Apesar disso, o real sofreu uma sobrevalorização inédita, a maior do mundo, maior até do que a da desmoralizada “nova lira” que os fernandos-henriques da Turquia impingiram ao povo daquele país. Como isso é possível, com compras de 170 bilhões de dólares?
Infelizmente, o mercado de câmbio não é uma quitanda localizada numa vila remota, onde não existem supermercados nem fornecedores de fora, em que as virtudes da lei da oferta e da procura determinam o preço da melancia.
No “mercado de câmbio”, é preciso antes de tudo pertencer à patota. O próprio BC não atua diretamente, mas através de “dealers”, isto é, intermediários que atuam em seu nome – e que são 11 bancos estrangeiros, 4 bancos privados brasileiros e um único estatal (o Banco do Brasil). Ou seja, esses bancos sabem qual a política de compras do BC.
Mas o problema principal é a própria política de compras de dólares do BC. O efeito das compras depende da maneira como se compra. A rigor, essas compras que o BC fez ao “atuar no final do dia, absorvendo as ‘sobras’ de dólares aos preços vigentes no mercado interbancário” (trab. cit., pág. 14 – grifo nosso), não tiveram e não podiam ter qualquer efeito sobre a hipervalorização do real, até porque Meirelles e cia. consideravam-na “fundamental para a eficácia da política de metas de inflação”.
Essencialmente, essas compras, apresentadas como a constituição de um “colchão de liquidez” para “reduzir a volatilidade cambial”, respaldavam a ação dos especuladores sobre o real, ao adquirir suas “sobras” (e que sobras!), depois de realizadas as transações do dia, e ao preço que eles determinavam. Em resumo, o BC estava trocando reais valorizados por dólares desvalorizados, nas condições que os bancos estabeleciam.
DIFICULDADES
Certamente, essa política cambial desastrosa teve um efeito explosivo sobre as importações e sobre as contas externas. Mas a que conclusões se pode chegar a partir disso?
1) Nas condições atuais, no Brasil, a entrada em massa de IDE e o importacionismo também em massa são irmãos siameses. Como grandes companhias importadoras, as filiais de multinacionais estão interessadas em manter o dólar baixo – isto é, o real hipervalorizado – para baratear suas importações, pois, apesar de exportarem, sua atividade está voltada principalmente para o mercado interno, com a estratégia de importar ao máximo da matriz. Não por acaso, tanto a entrada de bilhões de dólares em IDE, quanto as importações de toda espécie de mercadoria, quanto a hipervalorização do real, foram a política de Fernando Henrique – até o seu estouro, em 1999.
2) O Banco Central tem atuado para beneficiar – além dos bancos e outros especuladores – as multinacionais, ao baratear as importações com a deliberada sobrevalorização da moeda. A esse respeito, sem que haja risco algum de surto inflacionário, a chamada “política de metas de inflação” implica – e tem sido o pretexto – não somente em manter juros altos para que a produção interna e o consumo permaneçam baixos, como em manter artificialmente baratas as importações. O que significa fazer do mercado interno, em boa parte, uma reserva para os importados das (e pelas) multinacionais, bloqueando a indústria nacional e travando a elevação do investimento.
3) Se, devido à política do presidente Lula, conseguimos superávits comerciais crescentes de 2003 a 2007 e um crescimento muito promissor no segundo mandato, o resultado inevitável da entrada em massa de IDE, juros altos e sobrevalorização do real são as atuais dificuldades nas contas externas. Por um lado, a entrada sem controle de IDE e o consequente aumento do seu estoque dentro do país fazem com que as remessas para o exterior adquiram características quase de avalanche. Por outro, essa entrada de IDE e o subsídio cambial do BC catapultam as importações. As entradas de IDE passaram de US$ 2,1 bilhões em 1994 para US$ 32,7 bilhões em 2000 e US$ 45 bilhões em 2008; as remessas para o exterior, de US$ 14,7 bilhões em 1994, foram para US$ 25 bilhões em 2000 e US$ 57,2 bilhões em 2008; as importações foram de US$ 33 bilhões em 1994 para US$ 55,8 bilhões em 2000 e US$ 173,1 bilhões em 2008 (ver tabela).
4) A hipervalorização do real também beneficia a alguns monopólios internos que se tornaram dependentes de importações, mais ou menos como certos indivíduos se tornam dependentes de algumas substâncias estranhas. Mas esses últimos não têm o BC para baratear o preço da droga. No entanto, os monopólios internos se beneficiam de uma política feita para as multinacionais, e não para eles.
5) Mas, como têm – ou obtêm no BNDES – reais hipervalorizados, esses monopólios internos também são beneficiados na aquisição de ativos em dólar – ou seja, na aquisição de empresas no exterior. Turbinado pelo BNDES, o “investimento direto” no exterior passou de US$ 69,2 bilhões em 2004 para US$ 162,2 bilhões em 2008. O salto foi dado em 2006, quando o BC acirrou a hipervalorização do real.
6) Portanto, a ideia das “multinacionais brasileiras”, do ponto de vista prático, está se sustentando na hipervalorização da moeda, que torna os ativos no exterior mais baratos para quem tem reais e os converte em dólar. Em prejuízo de todo o conjunto da indústria nacional, a hipervalorização está subsidiando a compra de empresas em outros países por um reduzidíssimo grupo de monopólios, que sacam a maior parte dos reais fornecidos pelo BNDES.
Prosseguiremos, depois, com o exame de alguns aspectos particulares do quadro que descrevemos nas três partes deste artigo. Por enquanto, leitor, entregamos a você estas mal traçadas – para a sua crítica, sugestões, e, se possível, concordância.
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