O texto abaixo, de autoria do maestro Marcus Vinícius de Andrade, uma das nossas mais lúcidas inteligências no campo da cultura nacional, foi apresentado, pelo Instituto Claudio Campos (em processo de registro), ao Observatório da Democracia.
Trata-se de um sucinto, e, por isso mesmo, contundente balanço da devastação do governo Bolsonaro na área cultural, da sua quase incrível – se não estivéssemos vendo, sentindo e vivendo – ignorância, obscurantismo e monstruosidade.
Devido à importância, neste momento, de conhecer essa desgraça – para que possamos superá-la – e devido às qualidades do texto, reproduzimo-lo aqui (C.L.).
MARCUS VINÍCIUS DE ANDRADE
Quando o Capitão Bolsonaro assumiu a Presidência, em 2018, a Cultura brasileira, começando a superar as dificuldades de sempre, tinha pela frente uma perspectiva econômico-financeira bastante promissora. Esse quadro positivo justificaria por que o “Capetão”, mesmo sendo um culturófobo nato, animava-se a meter a mão na Economia Criativa da nação: fosse outra a situação, ele não teria o que destruir.
É sabido que, entre 2015 e 2020, o mercado cultural do Brasil e de quase todo o mundo passou por fortes turbulências, devidas principalmente ao avanço predatório da globalização, aos desníveis sócio-econômicos regionais e, principalmente, à irrupção das novas tecnologias digitais que alteraram profundamente as formas de produção cultural em todo o planeta. A partir de então, como diria Marshall Berman citando o barbudo, tudo que era sólido em termos de cultura se desmancharia no ar – ou, melhor dizendo, se diluiria no tal ciberespaço, que ninguém vê nem sabe onde fica, mas que efetivamente existe, como os nossos fantasmas de infância.
Na época, os palpiteiros mais sabichões decretavam o fim próximo do cinema, do disco, da TV, do livro, etc., causando pânico aos que, alheios ao Leopardo de Lampedusa, não entendiam que as coisas tinham que mudar para que pudessem continuar a existir. O fato é que muitas indústrias culturais de então não reagiram ao terremoto digital que lhes sacudia os pés e de sua paralisia rapidamente resultaram hecatombes financeiras majestosas, naufrágios empresariais titânicos. Era imprescindível entender-se o novo mercado cultural mundial, daí por diante hegemonizado pelas megacorporações da tecnologia e do entretenimento.
A partir de 2016, mesmo anunciada como estando à beira do desastre, a Indústria Criativa do Brasil encontrou meios de sobreviver, para tanto passando a priorizar os novos modelos de negócios do mundo digital, especialmente na área das produções musicais e audiovisuais, onde historicamente ela sempre foi mais forte. Entre 2016 e 2017, com licenças de streamings, downloads, vendas físicas, direitos de execução pública e royalties de sincronização, o mercado de música gravada no Brasil teve um crescimento de 17,9%, enquanto a média mundial não ultrapassou 8,1%. O segmento digital já despontava como a maior fonte de receita para o mercado fonográfico do Brasil, onde só o negócio do streaming interativo (on demand) crescera 64% frente ao ano anterior, gerando uma receita US$ 162,8 milhões para o setor produtivo, segundo dados da associação Pro-Musica (1).
Com dados tão alentadores, naquele mesmo ano o Brasil foi apontado pela Pricewaterhouse Coopers como um dos países de maior vigor no campo das indústrias criativas, sendo-lhe projetada uma taxa de crescimento anual composta de 4,6% entre 2016-2021, superior aos 4,2% da média mundial, ainda segundo o estudo da Price para os segmentos de mídia e entretenimento na economia da cultura (2). Já um estudo do BNDES apontava a possibilidade de, em igual período, o Brasil gerar uma receita da ordem de US$ 43,7 bilhões com entretenimento e mídia, sendo-lhe também estimada uma taxa de crescimento anual de 6,8% para o cinema, 8% para a música e 8,8% para vídeo na internet. (3)
Tudo ia razoavelmente bem quando, em dezembro de 2019, a China anunciou ter identificado em Wuhan, na província de Hubei, o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), que em pouco tempo iria alastrar-se pelo planeta, dando o ar de sua (des)graça no Brasil mais precisamente no dia 26 de fevereiro de 2020, quando foi constatada a primeira morte por COVID-19 no país. Desde então, a vida não foi mais a mesma em quase todos os quadrantes da terra: mesmo combatida pela dedicação extrema de cientistas e profissionais da saúde, a quem toda a Humanidade deverá ser grata, a pandemia vem ceifando milhares de vidas humanas, destroçando economias, arruinando sonhos e adiando projetos. As boas expectativas que se vislumbravam para a Economia da Cultura brasileira, então, esfumaram-se como no livro de Berman.
Mas, justiça seja feita, isso não se deveu apenas à pandemia: antes de o corona sentar praça em nossas terras, já o Bozovírus chegara primeiro e havia iniciado sua tarefa de devastação cultural nacional.
IGNORÂNCIA ACIMA DE TUDO, BARBÁRIE ACIMA DE TODOS
Eleito com um perfil de autoritarismo, arrogância, despreparo, despotismo não-esclarecido e ligações com milícias e outros segmentos pouco recomendáveis, o Cap. Bolsonaro (promovido por praxe, após reforma compulsória do Exército), já em sua campanha à Presidência exibia o anti-intelectualismo e a intolerância à cultura que depois justificaria como “compromissos eleitorais.”
Em 2019, instalando-se no Planalto com a sutileza de um elefante em loja de louças, o Presidente levou consigo a mais notável trupe de nulidades jamais vista em qualquer desgoverno, especialmente na área da cultura. Já os primeiros atos das anônimas incompetências governamentais continham alto poder de culturofobia. Sob os eflúvios luminares do Min. Paulo Guedes, Bolsonaro fez sua opção preferencial pelos pobres de espírito: vetou logo o patrocínio cultural pelas empresas estatais e declarou instalada a Era da Mediocridade no país. Embora a extinção do Ministério da Cultura e sua transferência (rebaixado como Secretaria Especial) para um puxadinho do Ministério da Cidadania só viessem a ocorrer em 7 de novembro, já no dia 2 de abril a Instrução Normativa n° 2 cumpria algumas persecutórias “promessas de campanha”: dentre elas, as limitações à Lei de Incentivo à Cultura nº 8.318/1991 (a célebre Lei Rouanet, odiada pelos bolsominions por supostamente favorecer o enriquecimento dos artistas), cujo teto de captação por projeto caiu de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão; além disso, outras exigências iriam dificultar, ou mesmo inviabilizar, a mais popular política de incentivos à cultura praticada no país. Com uma ou outra providência inócua e de falsa eficácia protetiva às camadas de baixa renda, o que dela resultou foi a diminuição do número de eventos patrocinados (e a quase extinção dos de grande porte), o inflacionamento nos preços de ingressos e produtos e o engessamento da produção cultural via medidas burocráticas altamente restritivas.
Outros controles excessivos foram impostos aos criadores e produtores de cultura, talvez para levá-los à asfixia pelas mãos de funcionários despreparados e alheios às contingências da área: a carência de políticas públicas até hoje faz com que não haja, por parte do “governo”, qualquer agenda objetiva e permanente para a cultura, com o que grande parte dos projetos em curso vêm sendo paralisados ou arquivados definitivamente, devido ao cancelamento de editais, suspensão de recursos e/ou pela pura inépcia e bateção de cabeça entre as diversas áreas da hoje chamada SECULT. Esta, como se fora um estabelecimento de alta rotatividade, só entre o início de 2019 e junho de 2020 teve o comando de cinco secretários especiais, sofrendo também o troca-troca intermitente de assessorias, sub-assessorias e asponagens diversas, afora sua natural instabilidade como órgão deambulatório, levado a vagar da pasta da Cultura para as da Cidadania e do Turismo, isso apenas até agora. Mas nada garante que outras mudanças não venham a ocorrer: o setor cultural já viu que a instabilidade é a única constância do atual desgoverno.
Assim tem sido a gestão cultural do Capetão, cujo fracasso não deve medir-se por perdas pequenas ou isoladas, como um outro espetáculo não produzido, um ou outro filme ausente das telas ou algum livro ou CD jamais levado ao grande público que, aliás, é quem os patrocina. A catástrofe cultural bolsonarista, como os velhos filmes de Cecil B. de Mille, não se compraz em ser modesta: ela se expressa em cifras grandiloquentes, como um grande épico da miséria coletiva nacional. Os indicadores sócio-econômicos da crise cultural gerada pelo conúbio Coronaro-Bolsovírus são efetivamente preocupantes, para não dizer aterradores, como se constata no mais recente e talvez mais acurado estudo sobre a área, a pesquisa Percepção dos Impactos da Covid-19 nos setores cultural e criativo do Brasil (4). Elaborada entre junho e setembro de 2020 por um grupo qualificado de instituições, entre as quais a UNESCO, o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, o SESC, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e outras, esta pesquisa revela que o setor cultural e criativo do Brasil, que até 2017 representava 2,61% de toda a riqueza produzida em território nacional (com a capacidade de geração anual de 25,5 mil postos de trabalho), tinha a previsão de contribuir com U$ 43,7 bilhões para o Produto Interno Bruto Nacional (PIB), até 2021. No entanto, com a crise Bozo-Corona, só o período maio-agosto de 2020 representou uma perda de receita de 44,4% para o segmento. Antes do final da coleta dos dados da pesquisa, a maioria dos entrevistados acreditava que essa perda iria estender-se até os primeiros meses de 2021, podendo inclusive agravar-se (o que efetivamente ocorreu), não obstante os benefícios emergenciais advindos da Lei Aldir Blanc.
Como apontam outros informes, Bolsonaro não só é o comandante de um Titanic cultural prestes a ir a pique, como é incapaz de perceber minimamente a gravidade do naufrágio que ajuda a realizar. Veja-se o estudo da Associação Brasileira de Promotores de Eventos (ABRAPE) que, em abril de 2020, registrou que 51,9% dos eventos previstos para o ano haviam sido cancelados, adiados ou tinham situação incerta, o que poderia causar a demissão de 580 mil profissionais da área (5). Só o cancelamento de grande quantidade de eventos musicais no mercado de São Paulo apontou um prejuízo de R$ 442 milhões (6). Em outro estudo, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) estimou que a diminuição das despesas familiares com atividades culturais extra-residenciais durante a pandemia resultaria em uma perda estimada de R$ 11,1 bilhões no valor adicionado (7).
Também indicativo do desastre cultural bolsonarista é o minucioso estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pelo SEBRAE, com apoio do governo de São Paulo, em maio-junho de 2020. Nesse estudo foram ouvidas 546 empresas do segmento cultural e criativo brasileiro, segundo as quais o setor representava R$ 190,5 bilhões em 2019, após ter crescido 4,6% ante 2018. Já em 2020, 86,6% dessas empresas registraram forte queda no faturamento, enquanto 63,4% paralisaram suas atividades e 19,3% efetuaram demissões devido à pandemia. Segundo o estudo, somente em 2022 o setor conseguirá retornar ao PIB de 2019, havendo uma perda estimada de R$ 69,2 bilhões (-18,2%) entre 2020-2021. Em razão disso, mais de 80% das empresas consultadas consideram imprescindível a ampliação de patrocínios culturais, quer públicos, quer privados, principalmente como forma de facilitar o acesso ao crédito às inúmeras micros e pequenas empresas do segmento, que não costumam contrair dívidas e cujos ativos são em geral intangíveis, o que muitas vezes escapa aos cálculos bancários de risco e garantias (8).
Embora a crise econômica tenha afetado indistintamente toda a área da cultura, alguns segmentos da criação e da produção estão sofrendo impactos pontuais e peculiares, podendo gerar mudanças que “vão ficar” de agora por diante. O distanciamento social e as normas de proteção sanitária não só reduziram o número de eventos culturais públicos, como também fecharam salas de espetáculos, limitaram as plateias, distanciaram as poltronas e até ressuscitaram a prática do drive-in no setor do cinema, onde as bilheterias mundiais tiveram uma queda de 71% em 2020. Nesta nova realidade, onde pelo menos 1,7 bilhão de pessoas estão em isolamento residencial, a fruição doméstica de bens culturais ganha relevância e a questão do consumo público/privado da cultura tem de ser redimensionada, visto requerer novas estratégias para a economia criativa.
Na pandemia, muitas livrarias ficaram até 100 dias de portas fechadas, e “quem não repensou seu modelo de negócio, não conseguiu se manter”, segundo Vitor Tavares da Silva Filho, presidente da Câmara Brasileira do Livro. Já que os compradores haviam sumido das livrarias físicas, a maioria delas empresas de pequeno porte, os livreiros chegaram a crer que o mundo iria acabar em março: mas em maio e junho o vento mudou um pouco e os leitores, confinados pela quarentena, descobriram as compras on-line de produtos físicos. Voltando a ler, os brasileiros compraram mais livros na pandemia e o ano de 2020 ‘milagrou escaposamente’, com faturamento apenas 5,3% menor que o de 2019. Isso seria até um sinal de recuperação, mas o governo casca-grossa do Capetão, além de não ter políticas de apoio ao setor, ainda o ameaça com o fim da imunidade tributária de que este há muito dispõe. (9).
Com as salas de espetáculos esvaziadas pela pandemia, as áreas do cinema, do teatro e da música também tiveram de reinventar-se: tendo estreias e eventos cancelados e recordes negativos de bilheteria, uma saída possível para estas áreas tem sido o mercado doméstico de bens culturais, tal como ocorreu com o livro. A crise obrigou a indústria cinematográfica a rever suas estratégias e investir maciçamente em lançamentos de filmes em plataformas de streaming e vídeo sob demanda, muitas vezes simultaneamente às suas estreias nos cinemas, o que significou repactuação com os exibidores, prejuízos vultosos e incertezas várias. Não se sabe quando, como e se os filmes brasileiros produzidos nos dois últimos anos chegarão ao público. Também as produções teatrais e shows musicais têm buscado sobreviver com transmissões de lives, a maioria modestas e de louvável esforço cultural, mas insuficientes como alternativa profissional. Se a aposta no digital tem ajudado a minorar a crise da indústria cinematográfica, dado o expressivo aumento das assinaturas de filmes e séries pelo público, no teatro e na música seus efeitos quase não se notam: apenas as produções e lives patrocinadas, estreladas por ícones do show-bizz e exibidas nas grandes plataformas, têm viabilidade financeira; as demais, com receitas precárias ou inexistentes estão condenadas à submonetização, à informalidade invisível e, assim como as pequenas casas de espetáculos no mundo físico, tendem a sucumbir ante o domínio dos monopólios do mainstream cultural, que controlam e ocupam majoritariamente o trânsito de bens culturais no mundo digital.
Mas talvez seja exatamente isso o que o Capetão Bolsonaro deseja: em dois anos de poder, incapaz de apresentar políticas públicas para a cultura brasileira, seu “governo” prefere deixá-la ao sabor do mercado, da vulgaridade consumista promovida pelas corporações do entretenimento, às quais o Planalto se associa e a quem serve no projeto de mediocrização nacional. Quando inviabiliza economicamente o cinema, a música, o teatro, o livro, as escolas e museus, o Capetão fere o corpo da cultura nacional. Mas quando agride artistas,
intelectuais, professores, jornalistas, juristas, cientistas e profissionais do saber e do talento, ele ataca sua alma. O Capetão faz tudo isso enquanto louva a pandemia, sem perceber que ele próprio é um vírus também.
Contra o coronavírus, vacina, vacina e mais vacina! Contra a barbárie do Bozovírus, cultura, cultura e mais cultura. Salve-se, Brasil!
NOTAS
- Disponível em: https://pro-musicabr.org.br/2018/04/25/mercado-fonografico-mundial-e-brasileiro-em-2017/#:~:text=Em%202017%20o%20mercado%20de,foi%20de%208%2C1%25.
- Perspectives from the Global Entertainment and Media Outlook 2017–2021. Disponível em: https://www.pwc.com/gx/en/entertainment-media/pdf/outlook-2017-curtain-up.pdf
- Visão 2035: Brasil, país desenvolvido: agendas setoriais para alcance da meta / Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/16040/3/PRLiv214078_Visao_2035_compl_P.pdf
- Disponível em: https://datastudio.google.com/reporting/88bf6daa-3f58-4f5a-bb3f-9d4f5c3dc73b/page/4c7WB?s=gUJpgJdXnvQ
- Disponível em: https://www.abrape.com.br/os-numeros-do-impacto-da-pandemia-no-mercado-nacional-de-shows/
- Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/21/O-impacto-do-coronav%C3%ADrus-na-cultura.-E-o-papel-dos–governos
- Disponível em: https://cedeplar.ufmg.br/noticias/1235-nota-tecnica-efeitos-da-covid-19-na-economia-da-cultura-no-brasil
- Disponível em: http://www.transparenciacultura.sp.gov.br/wp-content/uploads/2018/10/Pesquisa-FGV-Impacto-pandemia_2020.pdf
- Disponível em: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/economia/2020/10/763520-brasileiros-compraram-mais-livros-na-pandemia-mas-pequenas-livrarias-e-novo-tributo-preocupam.html
gosteivBOZOVIRUS..BOZOCORONA legal demais o anunciando