O caso em que o economista Roberto Giannetti da Fonseca – coordenador de programa da campanha de João Dória ao governo de São Paulo, amigo íntimo de Geraldo Alckmin e ex-presidente da Câmara de Comércio Exterior no governo Fernando Henrique – está sendo investigado pela Operação Zelotes é uma espécie de miniatura de como a corrupção tornou-se a norma na vida pública do país, isto é, naqueles partidos que se tornaram organizações criminosas.
Segundo a investigação, Giannetti, através de sua empresa de “consultoria”, a Kaduna Brasilis, recebeu R$ 8 milhões da Paranapanema – dona da Caraíba Metais, empresa privatizada que atua na fundição, refino e produção de artigos de cobre – para subornar membros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que anularam uma dívida de R$ 650 milhões da Caraíba com a Receita Federal, advinda de irregularidades cometidas na importação de insumos.
Desses R$ 8 milhões recebidos por Giannetti, R$ 5 milhões e 700 mil foram repassados para dois escritórios de advocacia, que, por sua vez, repassaram propinas para conselheiros do CARF.
Giannetti ficou com R$ 2,3 milhões.
“As articulações, revestidas de inúmeras ilegalidades, obtiveram êxito e a isenção da dívida foi total”, diz o Ministério Público em sua denúncia. “As empresas contratadas e os envolvidos que nelas atuavam tinham acesso a informações privilegiadas, bem como contatos com pessoas-chave para lograr sucesso nos julgamentos do tribunal administrativo”.
Há, por exemplo, no processo, um e-mail de Giannetti para uma diretora da Paranapanema, após a decisão do CARF, em que ele diz:
“Creio que o ministro Mauro Borges e o Secretario Daniel Godinho do MDIC estarão se empenhando sobre este caso paradigmático, de forma a dialogar com a Fazenda e a PGFN [Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional] sobre a inconveniência de recorrer desta decisão já promulgada” (grifo nosso).
E a Procuradoria da Fazenda, realmente, não recorreu da decisão.
Mauro Borges era ministro de Dilma e Daniel Godinho era titular da Secretaria de Comércio Exterior (SECEX), também do governo Dilma.
Giannetti, um tucano de quatro costados – ou mais – não tinha qualquer inibição ou dificuldade com essas autoridades de um governo do PT.
A anulação da dívida da Caraíba/Paranapanema foi em 2013, também no governo Dilma, e foi realizada pela 1ª Turma da 2ª Câmara da 3ª Seção do CARF.
O leitor pode estranhar que exista uma “1ª Turma da 2ª Câmara da 3ª Seção” no CARF, mas esse órgão, estabelecido no governo Lula com a única função de anular autuações da Receita Federal sobre grandes empresas (o que mais ele faz?), especialmente bancos, é um monstrengo que parece concebido especialmente para angariar propinas.
Atualmente, o CARF tem 130 conselheiros, e somente porque houve uma redução, depois que foi iniciada a Operação Zelotes, que investiga, precisamente, a corrupção no CARF.
CONTRATO
Giannetti, em troca de R$ 2,3 milhões da Paranapanema, não fez nada, exceto repassar os R$ 5 milhões e 700 mil – e fazer lobby no Ministério de Dilma.
Não existe trabalho algum de consultoria da empresa de Giannetti para a Paranapanema. O que existe é um contrato – e o repasse de dinheiro.
Nas palavras do juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Federal Criminal de Brasília, que quebrou os sigilos bancário, fiscal, telemático e telefônico de Giannetti e outros implicados, e emitiu onze mandados de busca e apreensão, em cinco Estados, para investigá-los:
“Embora a Paranapanema fosse regularmente representada pelo advogado Adilson Rodrigues Pires, que apresentou recurso voluntário contra a autuação, tal empresa também celebrou contrato de consultoria com outra empresa, a Kaduna Brasilis Consultoria, para que esta prestasse serviços objetivando a anulação da referida autuação tributária (…).
“A Kaduna, por sua vez, subcontratou um escritório de advocacia, no caso o Rodrigues e Advogados Associados, composto por Edison Rodrigues, ex-presidente do CARF e sua filha, Meigan Sack Rodrigues (que, na época, exercia o mandato de conselheira suplente no CARF) para atuar no caso.
“Além disso, a empresa Kaduna subcontratou, também, a empresa Green Century Consultoria Empresarial e Participações Ltda, integrada por Vladimir Spíndola (advogado com atuação no CARF), para a mesma finalidade, ou seja, segundo a investigação, tudo realizado com o mesmo modus operandi, com o real objetivo de assegurar e pré-estabelecer, de forma ilícita, o resultado do julgamento final do aludido processo administrativo fiscal no CARF” (todos os grifos são nossos).
Os indícios, aponta o juiz, são “o fluxo de comunicações entre os suspeitos, como trocas de mensagens eletrônicas (e-mails), cujos trechos ou menções foram registrados e detalhados na petição MPF e/ou nos Relatórios da COGER/MF [Corregedoria do Ministério da Fazenda], bem como a realização de transferências de valores entre os envolvidos”.
Giannetti, relata o juiz Vallisney de Souza Oliveira, “funcionava como a ligação entre a Paranapanema e os investigados Vladimir Spíndola e Meigan Sack, os quais articulavam junto ao CARF para possibilitar o julgamento favorável a esta última empresa de forma indevida”.
O magistrado aponta ainda a compra de três conselheiros do CARF por Vladimir Spíndola, por sua vez contratado por Giannetti. Além disso:
“… Vladimir Spíndola, além do enviar diversas mensagens eletrônicas comprometedoras aos demais investigados, principalmente para Meigan Sack, teria repassado para sua mãe, Lytha Spíndola, um e-mail suspeito encaminhado anteriormente por Roberto Giannetti da Fonseca, em que se autodenomina presidente da Kaduna.
“Na referida mensagem, Roberto Giannetti comunicou sobre o encaminhamento do processo para a PGFN [Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional], mencionando o nome do então Ministro Mauro Borges e do Secretário Daniel Godinho, ambos do MDIC [Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços], os quais se ‘empenhariam sobre esse caso junto ao Ministério da Fazenda e à PGFN sobre a inconveniência de recorrer da decisão tomada pela CARF’”.
O que chamou a atenção do Ministério Público – e do juiz – para o caso foram os relatórios de análise da própria Corregedoria-Geral do Ministério da Fazenda (COGER/MF), que revelaram “a existência de fortes indícios de delitos contra a Administração Pública, ou seja, sobre a participação dos investigados (pessoas físicas e jurídicas) no direcionamento do julgamento do processo administrativo fiscal envolvendo, especificamente, a empresa Paranapanema”.
DRAWBACK
A Caraíba/Paranapanema fora autuada por irregularidades no uso do “drawback” – e isso exige uma explicação.
O “drawback” é um sistema de isenção de impostos, em que uma empresa que produz para exportação pode pedir ressarcimento ao Tesouro (através de isenções de impostos) dos tributos que pagou sobre insumos importados.
Significa, em suma, que aquilo que é importado para fabricar um produto para exportação é isento de impostos, mas essa isenção é posterior à importação, ou seja, como ressarcimento do que foi pago.
A Caraíba/Paranapanema, durante quatro anos, no entanto, usou o “drawback” para obter ressarcimento fiscal por insumos que, no momento em que foram importados, já eram isentos de Imposto de Importação (II) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).
Como isso foi possível?
Alguns especialistas na matéria dizem que, na época (2002 a 2006), não havia um entendimento “consolidado” sobre o assunto.
Duvidamos dessa interpretação, pois roubar o Tesouro jamais foi permitido pela lei. E pedir (pior ainda, obter) ressarcimento por um gasto com impostos que não existiu, significa, precisamente, roubar o Tesouro.
O próprio relator do caso no CARF, Daniel Mariz Gudiño, afirmou que jamais houve um caso desses na instituição da qual faz parte. Literalmente: “Registre-se, desde logo, que não há precedentes neste Conselho Administrativo de Recursos Fiscais especificamente sobre drawback isenção requerido em função de importação de insumos sujeitos à alíquota zero de Imposto de Importação (II) e de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) por força de políticas de comércio exterior”.
TERATOLOGIA
No entanto, a 1ª Turma da 2ª Câmara da 3ª Seção do CARF, por cinco votos a um, anulou a autuação da Receita sobre a Caraíba/Paranapanema, sob a alegação de que a legislação da época permitia o ressarcimento de gastos inexistentes com impostos.
Surpreendentemente, a Procuradoria da Fazenda não recorreu ao pleno do CARF, segundo o procurador Arão Bezerra Andrade, porque “não foi possível localizar divergência de outra câmara, turma de câmara, turma especial ou turma da Câmara Superior, bem como das turmas e câmaras que integravam o antigo Conselho de Contribuintes”.
Segundo o procurador, pelas regras do CARF, para que fosse possível recurso, era preciso que houvesse divergência de alguma outra instância do próprio CARF, em relação à questão.
Trata-se de algo manifestamente absurdo: como encontrar divergências, em outras instâncias do CARF, quando o caso é (como era) inédito? Claro que isso era (e é) impossível.
Além disso, se as regras são essas, por que Giannetti escreveu, em seu e-mail à diretoria da Paranapanema: “Creio que o ministro Mauro Borges e o Secretario Daniel Godinho do MDIC estarão se empenhando (…) de forma a dialogar com a Fazenda e a PGFN sobre a inconveniência de recorrer desta decisão já promulgada”?
Ou será que Giannetti estava, simplesmente, enrolando a diretoria da Paranapanema, para valorizar-se, inclusive (e sobretudo) monetariamente?
Será que a Paranapanema, através de seu advogado oficial, não sabia quais eram as regras no CARF?
Tudo parece muito absurdo – e cada vez mais.
Embora, se for verdade o que disse o procurador da Fazenda sobre a impossibilidade de recurso, essa não é a única aberração do CARF, que, por si mesmo, é uma aberração.
Pela lei, assinada por Lula, que o instituiu, apenas as empresas podem recorrer à Justiça contra decisões do CARF.
A Receita (isto é, o Estado, o Erário) é proibida de recorrer à Justiça contra uma decisão do CARF.
O caso Giannetti evidencia mais uma vez as relações corruptas que passaram a ser a regra para certos indivíduos, desde que o neoliberalismo se instalou neste país – com a participação impoluta do PT –, dentro da oligarquia política e econômica.
Evidencia, também, que um órgão teratológico, como o CARF, merece ser extinto.
C.L.