Se existe algo de que o país não precisava neste momento, com Bolsonaro no Planalto, é essa confusão aprontada pelo ex-procurador geral da República Rodrigo Janot – com o sr. Gilmar Mendes autopromovido a semi-mártir; a PF – por ordem “de ofício” (ou seja, sem nenhum pedido, seja da polícia ou do Ministério Público) do ministro Alexandre de Moraes, em um inquérito que nada tem a ver com Janot – fazendo batidas na casa do ex-procurador para encontrar uma pistola velha; o exumado Eduardo Cunha protestando que foi acusado por um procurador “psicopata e assassino”; um ex-ministro de Dilma Rousseff, e ex-amigo de Janot, garantindo que ele “sempre foi impulsivo e desequilibrado” (deve ser por isso que foi nomeado procurador geral da República, exatamente, pela senhora Rousseff), etc., etc., etc., etc., & etc.
Não sabemos se é verdade, como contou o ex-procurador, que, para vingar a difamação da sua filha por Gilmar Mendes, “cheguei a entrar no Supremo. Ele estava na sala, na entrada da sala de sessão. Não ia ser ameaça não. Ia ser assassinato mesmo. Ia matar ele e depois me suicidar. Eu vi, olhei, e aí veio uma ‘mão’ mesmo. Foi a mão de Deus”.
Que muita gente perca as estribeiras (ou quase) quando tem a filha atacada – ou a mãe, ou a mulher, ou a si mesmo – é fato.
Mas se existe algo que nós não necessitamos, no momento, é elevar essa perda de estribeiras ao status de ato heroico.
Porque também é fato que o atual presidente da República, ou seus seguidores milicianos, prefeririam, se pudessem, tratar os desafetos por meios, digamos, extrajudiciais. O caso da vereadora Marielle Franco – assassinada por um vizinho de Bolsonaro, pertencente ao Escritório do Crime – é demasiado recente para ser esquecido.
Então, com o país já levado ao caos – político e econômico – por Bolsonaro, Guedes e caterva, com a ideologia do assassinato e da tortura promovida à ideologia oficial da Presidência, aparece Janot para, com suas declarações, revelar que Bolsonaro não é o único por essas bandas.
É difícil encontrar melhor maneira de apagar as diferenças entre alhos e carambolas.
A Operação Lava Jato, apesar de seus grandes serviços ao país, não tem sorte. O juiz resolve entrar no Ministério de Bolsonaro e portar-se como um bajulador bem reles. O chefe da força-tarefa, o malfadado Dallagnol, faz suas inúmeras piruetas à margem do interesse público. Por fim, o sr. Janot resolve fazer o que poderia fazer para colocar em suspeição o seu desempenho como procurador geral da República.
A Operação Lava Jato é aquela em que, aparentemente, ninguém se acha responsável pela obra – o ego e as pretensões são mais importantes do que esta última (aqui, evidentemente, não estamos nos referindo aos abnegados procuradores e policiais, sem os quais, é verdade, a operação não existiria) – mas todos esses mesmos indivíduos querem surfar em sua popularidade como se fossem, exatamente, responsáveis pela obra. O problema é que, as duas coisas ao mesmo tempo, é algo difícil.
Até porque somente serve para açular outros egos e pretensões. Por exemplo, há muito é notório que o sr. Gilmar Mendes se refere ao ex-procurador como “o bêbado do Janot” (v. Janot surpreende ao contar que pensou em matar Gilmar Mendes e se suicidar, Migalhas 27/09/2019).
Em relação à filha de Janot, o ataque foi no pleno do STF, quando o procurador solicitou a suspeição de Mendes, que era relator de um dos processos de Eike Batista, porque este era defendido pelo mesmo escritório de que fazia parte a sua esposa, Guiomar Mendes. Disse Gilmar Mendes:
“Logo em seguida à presente arguição, foi amplamente noticiado que a filha do Procurador-Geral da República é advogada de empresas implicadas na Lava Jato. (…) Se o argumento do crédito fosse levado à última instância, talvez a atuação do Procurador-Geral da República pudesse ser desafiada, visto que sua filha pode ser credora por honorários advocatícios de pessoas jurídicas envolvidas na Lava Jato.”
Para o leitor que quiser conhecer na íntegra o que disse Gilmar Mendes: Manifestação Gilmar Mendes AIMP 45.
Vejamos com um pouco mais de detalhe, agora, o caso de Janot.
É óbvio que existe, previsto pelo Código Penal, o homicídio praticado “por motivo de relevante valor social ou moral”.
Mas a função do procurador geral da República é promover – ou perpetrar – essa espécie de homicídio?
É possível entender que Janot, com o ataque de Mendes à sua filha, estivesse, como também diz o Código Penal, “sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima”.
Mas isso foi há dois anos. Que necessidade há de revelar que, há dois anos, esteve prestes a cometer um desatino?
A importância disso, se for verdade, é nenhuma – até porque a “mão de Deus”, segundo o ex-procurador, o impediu.
Entretanto, serve para levar água ao moinho de Bolsonaro. Se o procurador geral da República era assim, por que Bolsonaro não pode ser?
Ou, ao invés, serve para Bolsonaro se vitimizar, porque levou uma facada de um doente mental, que ele quer fantasiar, como fez na ONU, de “militante de esquerda”. As declarações de Janot, que ninguém acusou até agora de doente mental, servem muito para a falsificação de Bolsonaro.
Obviamente, tudo isso está no campo da farsa. Mesmo assim, nem Janot nem Bolsonaro podem ser assim – um porque era procurador geral da República e o outro porque é presidente, aliás, da mesma República.
E, claro, se todos resolverem questões desse tipo atirando uns nos outros… bom, o leitor sabe o resto. O artigo do Código Penal, a que nos referimos, existe para homens do povo que não conseguiram justiça através dos canais institucionais ou não puderam encontrá-los.
No caso de Janot, como frisou o jurista, professor de Direito Penal e desembargador Walter Fanganiello Maierovitch, além da falta de civilização, há outro problema: a função do procurador geral da República é buscar justiça através da Justiça (ou seja, pela via das instituições do Judiciário).
Se Janot quase cometeu esse ato, significa que não acredita – pelo menos, naquele momento, não acreditava – na Justiça, no Poder Judiciário.
Pode ter sido um momento de fraqueza – e, segundo ele, foi mesmo, tanto assim que a “mão de Deus” o impediu, tal como, na Bíblia, impediu Abraão de matar Isaque.
Mas, considerando que Janot não é Abraão e que Gilmar Mendes não é Isaque (Deus nos livre!), esse momento, se existiu, deveria ser algo para esquecer, como, provavelmente, o ex-procurador fez com outros momentos de fraqueza (quem é que vive exibindo em público os seus momentos de fraqueza? Ninguém, até porque os outros não têm obrigação de suportar essas exibições).
Entretanto, Janot não apenas resolveu contar esse momento de fraqueza, como também frisá-lo, como se fosse um momento muito importante, um momento de força, ou de graça, e não de fraqueza.
Será apenas, como alguns disseram, para vender mais livros de memórias?
Mas, se for isso, o caso é o mesmo: irresponsabilidade.
Não é à toa que, a partir do comportamento de Janot (o comportamento de agora), alguns exegetas da turvação já concluíram que Temer era inocente no caso JBS – apesar da gravação de seu diálogo com Joesley Batista e até do vídeo em que o seu preposto, Rocha Loures, sai correndo com uma mala cheia de dinheiro…
Escreve o desembargador Maierovitch:
“Pelo narrado, Janot, embora procurador de Justiça, cogitou e se preparou para fazer justiça com as próprias mãos: justiça de mão própria.
“Não pretendia o ‘procurador’ Janot ‘procurar’ a Justiça, que é monopólio do Estado-nação e não do Janot.
“O seu relato é assustador. Janot demonstrou não confiar na Justiça. Mais ainda, Janot sabia bem que fazer Justiça pelas próprias mãos é crime. E o Código Penal chama a isso de ‘exercício arbitrário das próprias razões’.
“Segundo Janot, o ministro Gilmar – que dispensa comentários – quis, por divulgação falsa, envolver a filha do procurador-geral, que é advogada, com criminosos pegos pela Lava Jato.
“Ora, nada, entre civilizados, justifica o se fazer Justiça pelas próprias mãos. É algo primitivo. Inaceitável. E se agrava quando a cogitação parte de procurador da Justiça, aliás, o representante do direito de punir (jus puniendi) do Estado-nação.
“Felizmente, tudo ficou na imaginação, na cogitação de Janot.
“Por isso, cabe uma última colocação irônica.
“Caso tivesse se consumado o crime de homicídio doloso, Janot – perante a verdadeira e civilizada Justiça – certamente invocaria o homicídio privilegiado.
“Para a lei penal material, o homicídio será privilegiado ‘se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou, sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço (Artigo 121, parágrafo primeiro, do Código Penal)’ (cf. Walter Fanganiello Maierovitch, “Nau desgovernada e faroeste”, OESP 28/09/2019).
A equipe do Sensacionalista foi um pouco mais sucinta: Janot só não matou Gilmar porque depois não haveria quem o soltasse.
A NAU DO STF
Apesar de não ser o nosso assunto nesta matéria, não resistimos à tentação – pela sua importância e clareza – de transcrever os trechos precedentes àqueles que citamos do artigo do professor Maierovitch:
“Não é exagero afirmar que no Supremo está a acontecer de tudo. Uma fase de surpresas e inseguranças.
“Como ato de administração, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, mandou instaurar inquérito sem poder (sem legitimação constitucional).
“Não bastasse, sem corar nem consultar os seus pares, resolveu mandar apurar, com um outro ministro no papel de inquisidor à Torquemada (Alexandre de Moraes), ofensas à honra até de esposas e parentes de ministros.
“No particular, um reprovado no exame de qualificação profissional da OAB saberia que tais crimes, com relação aos tais parentes e cônjuges, são de iniciativa privada.
“Com relação aos supremos ministros, tais ilícitos são de ação pública condicionada à representação (anuência) do ofendido.
“No que toca ao campo jurisdicional, muitas apreensões. Vale lembrar a última Plenária, em que houve um inusual contorcionismo jurídico.
“Em nome das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, reconheceu-se nulidade, sem que houvesse prejuízo real, efetivo.
“Enquanto a ministra Cármen Lúcia falava tratar-se de nulidade relativa, portanto sanável se não demonstrado prejuízo para a defesa e referentemente ao fato de réu delator ter, em alegações finais, pronunciado-se no mesmo prazo de réu delatado, o ministro decano, Celso de Mello, afirmava ser hipótese de nulidade insanável, portanto presumido o prejuízo.
“Desprezou-se o alertado por Francisco Campos, apelidado de ‘Chico Ciência’, ministro da Justiça elaborador, a mando do presidente Getúlio Vargas, do Código de Processo Penal.
“Para Francisco Campos, o processo penal brasileiro não é lugar para se ‘espiolhar nugas’, ou seja, catar quinquilharias, se pescar inutilidades.
“Francisco Campos – na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, que é uma fonte de interpretação doutrinária – ressaltou não ter a lei processual deixado ‘respiradouro para o frívolo curialismo que se compraz em espiolhar nulidades’.
“Aliás, e não se deve esquecer, não existindo nulidades insanáveis no processo penal moderno ou, em outras palavras, o processo é marcha adiante e, não existindo prejuízo para a defesa, não haverá razão para se reconhecer nulidade processual.
“Frise-se que a nossa lei processual repetiu o consagrado princípio do código de processo penal francês do “pas de nullité sans grief”, ou seja, não há (não existe) nulidade sem prejuízo.
“Mas, depois de um julgamento deslocado da Turma ao plenário pela repercussão geral, a sessão da última quinta-feira foi prorrogada. Isso para discutir se a decisão majoritária vai valer apenas para favorecer o paciente, ex-gerente da Petrobrás, ou também a outros e como isso se dará.”
C.L.