“Respaldados pelo CFM, “kits covid” são receitados no sistema público de saúde e em planos e hospitais privados”, denunciam os autores
Foi com estupefação que lemos recentes entrevistas em que o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) continua a alegar ser direito do médico prescrever o chamado “tratamento precoce”. Segundo ele, não haveria evidências científicas que permitiriam definir a eficácia ou a ineficácia do “kit”, em particular da cloroquina. Não sabemos se o presidente do CFM desconhece o processo de desenvolvimento de medicamentos, ou se não se atualiza desde meados do ano passado.
No começo da pandemia, na França, o Dr. Didier Raoult publicou um artigo indicando que a hidroxicloroquina teria espetacular ação em eliminar o vírus de pacientes com Covid-19. O Dr. Raoult, alvo de ação por charlatanismo, admitiu que o artigo é incorreto, e o uso de cloroquina para tratamento de Covid-19 é proibido na França desde maio de 2020.
Desde a publicação original de Raoult, pesquisas demonstraram que a cloroquina: 1) não impede a replicação do vírus em células pulmonares; 2) foi ineficaz nos três modelos animais de Covid-19 em que foi testada; e 3) foi ineficaz em todos os estudos prospectivos com tamanho amostral adequado realizados. Quando todos os 35 estudos prospectivos existentes na literatura são considerados, não só a cloroquina foi ineficaz, como seu uso se associou com maior risco de óbito (ver em http://metaevidence.org/covid19.aspx).
Por isso, não há mais estudos avaliando a sua eficácia, e todas as sociedades profissionais do mundo contraindicam seu uso para prevenção ou tratamento de Covid-19. O mesmo se aplica à azitromicina, vitamina D e zinco, testados em estudos de fase 3, sem sucesso.
Quanto à ivermectina, é consensual que, para que seja atingida a concentração que, no tubo de ensaio, inibe a multiplicação do vírus, seria necessário utilizar uma dose provavelmente letal para seres humanos. Por isso, todas as sociedades científicas contraindicam seu uso fora de estudos clínicos. Convém lembrar que a ivermectina é contraindicada durante a gravidez pelo risco de causar malformações congênitas.
Em resumo, o presidente do CFM parece esquecer o mais importante do juramento médico: primeiro, não fazer mal. Estimular o uso de drogas comprovadamente ineficazes, mas que podem fazer mal — vide excesso de óbitos com uso de cloroquina em estudos clínicos, fila de transplante hepático por uso indiscriminado de ivermectina e possíveis malformações congênitas —, é conceder carteira de registro médico de número 007, com licença para matar.
Respaldados pelo CFM, “kits covid” são receitados no sistema público de saúde e em planos e hospitais privados. Planos privados têm sido denunciados por coagir médicos a prescrevê-los indiscriminadamente, sem examinar o paciente ou colher seu histórico. Alguns dos medicamentos incluídos, como corticoides e anticoagulantes, que jamais devem ser usados sem supervisão médica, são enviados por “delivery”. Outros, como antibióticos, cuja receita deveria ser retida na farmácia, também são remetidos por entregadores.
Se, no início, sendo bastante generosos, havia algum motivo para que o CFM defendesse a “autonomia do médico” para prescrever qualquer coisa, porque, afinal, mal não faria, essa afirmação não mais se sustenta diante dos dados há muitos meses disponíveis. Some-se a isso a recente denúncia de médicos forçados a prescrever o “kit covid”. Quem defende a autonomia dos médicos coagidos?
Enquanto durar a atual postura do CFM, a Medicina no Brasil estará, na prática, sem regulamentação. Estamos diante do desmonte da Medicina brasileira.
Mauro Schechter é professor titular de Infectologia da UFRJ, adjunto da Universidade de Pittsburgh e associado da Universidade Johns Hopkins
Natalia Pasternak é Doutora em microbiologia, presidente do Instituto Questão de Ciência e membro do Committee for Skeptical Inquiry
Artigo reproduzido do jornal O Globo